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Educação do Campo e MST: compartilhando as vozes próprias

3. EM PORTA-RETRATOS: AS VOZES ALHEIAS E AS

3.3 Na Educação do Campo um anúncio das vozes próprias

3.3.1 Educação do Campo e MST: compartilhando as vozes próprias

Autores como Caldart (2004), Souza (2006), Molina (2003), Freitas (2007), Arroyo (2004), Munarim (2007), Vendramini (2002), Beltrame (2004), entre outros, têm apontado para a convergência entre movimentos sociais e educação do campo numa perspectiva de problematização que busca consolidar uma concepção política pedagógica em torno desta temática.

Um dos movimentos sociais que mais impulsionou o debate político pedagógico em torno da educação do campo é o MST. Tendo FRPR HL[R FRQGXWRU D GLVFXVVmR VREUH RV SUREOHPDV ³HFRQ{PLFRV VRFLDLV H HGXFDFLRQDLV GH DVVHQWDPHQWRVDFDPSDPHQWRV´ 02/,1$ 2004, p. 49), realizou-se em julho de 1997, em Brasília, o 1º Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária ± 1º ENERA. Reuniram-se 700 pessoas entre assentados, acampados, representantes de universidades e de outras instituições apoiadoras e atuantes em projetos de educação em áreas de reforma agrária, apoiados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância ± UNICEF, Universidade de Brasília - UnB, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ± CNBB. Aqui surgiram os primeiros debates acerca da Educação do Campo e não mais da educação rural ou para o meio rural.

&RQIRUPH 0ROLQD  S   ³DV SULQFLSDLV FRQFOXV}HV mostraram que apesar do descaso e do abandono do governo federal, efervesciam experiências, frutos de concepções pedagógicas GHVHQYROYLGDVQDOXWDSHODUHIRUPDDJUiULD´2GHVDILRGHFRQVWLWXLUFRP as Instituições de Ensino Superior uma rede nacional para enfrentar o analfabetismo e as dificuldades da escolarização nos assentamentos e acampamentos foi proposto no ENERA. Entre as entidades presentes no

ENERA, evidenciou-se a necessidade de continuidade e ampliação nacional das discussões ali instauradas. Para tanto, foram preparadas pautas e calendários para encontros estaduais, de maio a julho de 1998, FRPR WHPD³3RU XPDHGXFDomREiVLFDGR&DPSR´HD,&RQIHUrQFLD Nacional, realizada em julho de 1998, no estado de Goiás marca um compromisso de mobilizar sociedade e órgãos governamentais para as políticas públicas de direito à educação para os povos do campo, inexistentes ou não efetivadas. Nessa perspectiva, e conforme Munarim (2008, p. 2) é na década de 1990 que

se constituem o momento histórico em que começou a nascer o que estou chamando de Movimento de Educação do Campo no Brasil. 1HVVH FRQWH[WR R ³,ž (QFRQWUR 1DFLRQDO GH HGXFDGRUDVH(GXFDGRUHVGDUHIRUPD$JUiULD´ ,ž ENERA), realizado em julho de 1997, na Universidade de Brasília pode ser eleito como fato que melhor simboliza esse acontecimento histórico.

Conforme Arroyo (1999) ao prefaciar o primeiro caderno42 de ³3RUXPD(GXFDomR%iVLFDGR&DPSR´D,&RQIHUrQFLDWHYHFRPRILR condutor da discussão dois aspectos que se contrapõem: uma visão de educação dominante que propõe um modelo único e adaptável de HGXFDomRHPGHWULPHQWRjFRQFHSomRGHHGXFDomRTXHFRQVLGHUD³TXHR campo existe e está vivo, que está acontecendo um movimento social e FXOWXUDO H WDPEpP MXQWR D HOH XP PRYLPHQWR HGXFDWLYR UHQRYDGRU´ (ARROYO, 1999, p. 7).

Como desdobramento da Iª Conferência Nacional por uma (GXFDomR %iVLFD GR &DPSR IRL ³FULDGD D ³$UWLFXODomR SRU XPD (GXFDomR GR &DPSR´ HQWLGDGH VXSUD-organizacional que passou a promover e gerir as ações conjuntas pela escolarização dos povos do FDPSRHPQtYHOQDFLRQDO´ 0(&6(&$'07, p. 12). A mobilização e a visibilidade que esta Conferência proporcionou e que a partir dela, dentre tantas outras ações, foram instauradas nas esferas político educacionais, pode-se citar: - Criação do PRONERA a partir do

42Este primeiro caderno é parte de uma série de sete que são editados desde 1999, após os HQFRQWURV GH GLVFXVVmR VREUH D HGXFDomR GR FDPSR SHOD ³$UWLFXODomR 1DFLRQDO SRU XPD (GXFDomRGR&DPSR´

ENERA; Encontros Estaduais43; Conferências Nacionais; Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (instituído em 2002, pelo Conselho Nacional de Educação); - composição do Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo ± GPT44 em

2003.

Em 2004, no âmbito do Ministério da Educação, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD é criada a &RRUGHQDomR*HUDOGH(GXFDomRGR&DPSRTXH³VLJQLILFDDLQFOXVmRQD estrutura estatal federal de uma instância responsável, especificamente, pelo atendimento dessa demanda a partir do reconhecimento de suas QHFHVVLGDGHVHVLQJXODULGDGHV´ 0(&6(&$'S 

Deste modo, a histórica omissão, das políticas educacionais às necessidades educativas específicas aos povos que vivem fora das cidades, parece encontrar na definição das diretrizes para a Educação do Campo indicativos de um possível reconhecimento da sua diversidade sócio cultural e suas necessidades específicas. O Parecer CEB nº 36/2001 do Conselho Nacional de Educação, deliberando sobre as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo, UHIHUHQGD RV GLUHLWRV H HVSHFLILFLGDGHV GDV SHVVRDV GR FDPSR D ³XPD educação de qualidade, adequada ao modo de viver, pensar e produzir das populações identificadas com o campo ± agricultores, criadores, extrativistas, pescadores, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas, VHULQJXHLURV´ 0(&6(&$'S 1RHQWDQWRQHVVHFRQWH[WRH apesar das lutas históricas dos trabalhadores/as do Campo, pode-se compreender que as proposições de adequar ou mesmo adaptar calendários escolares a calendários agrícolas ainda não expressam todas

43 Santa Catarina constituiu seu Iº Seminário Estadual de Educação do Campo em dezembro de 2004, buscando, além de sensibilizar os gestores públicos para a implementação da Educação do Campo, mapear as demandas específicas para a formatação de um Banco de dados com as experiências locais desenvolvidas pelos Governos Estadual e Municipal, organizações não- governamentais e movimentos sociais. Para a continuidade dos trabalhos no estado foi instituído, na solenidade de encerramento, um Comitê Executivo para implementação das Diretrizes que, independente dos esforços de algumas instituições presentes no Seminário e no Comitê, não se efetivaram naquele momento, mas constituíram as bases para o que viria a ser o Fórum Catarinense de Educação do Campo (FOCEC). Essa organização auto-gerida, criado em 29 de maio de 2008, é uma articulação política que congrega movimentos e organizações sociais vinculadas às questões do campo no âmbito de Santa Catarina, juntamente com outras organizações da sociedade civil, universidades públicas e comunitárias, assim como representantes de órgãos governamentais, todos vinculados à temática da educação do campo e do desenvolvimento territorial rural. Acesso em julho de 2010, disponível em: http://www.educampo.ufsc.br/index.php/focec.

44 GPT foi instituído no âmbito do Ministério da Educação, portaria nº 1374 em 03/06/03, tendo como atribuição divulgar e debater a implementação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (CADERNO DE SUBSÍDIOS, 2004, p. 8).

as mudanças necessárias para que se efetivem melhores condições de acesso e permanência, ou ainda, em materializar garantias instituídas aos sujeitos analfabetos ou pouco escolarizados do Campo. Nessa perspectiva, a Educação do Campo, tal qual a escola já pontuada por Calazans em 1993 (p. 16), parece ainda reeditar uma perspectiva ³GHVFRQWtQXD´MiTXHWDQWRDV³DGDSWDo}HV´TXDQWR³DGHTXDo}HV´WUD]HP enunciativamente filiações a propósitos mantenedores de interdições históricas às especificidades da escolarização de homens e mulheres do Campo.

Assim, e em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 e em especial com o Art. 2845 que propõe adequações, e não mais a adaptação, da escola à vida do campo, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo indicam atenção às reivindicações e sugestões feitas pelos movimentos sociais que, no parágrafo único do seu art. 2º, dispõe:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (MEC/SECAD, 2007, p. 69).

Em seu conjunto, as Diretrizes, regulamentando e dando um passo à frente em relação à LDB, instituem: garantia ao respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia; autonomia institucional na elaboração de propostas pedagógicas para escolas do campo; flexibilização na organização do calendário escolar; gestão democrática

45LDB 9394/96 Capítulo II - EDUCAÇÃO BÁSICA - Seção I - Das Disposições Gerais - $57  ³1D RIHUWD GH HGXFDomR EiVLFD SDUD D SRSXODomR UXUDO RV VLVWHPDV GH HQVLQR promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - DGHTXDomRjQDWXUH]DGRWUDEDOKRQD]RQDUXUDO´

Disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.pdf. Acesso em julho de 2008.

das escolas com estímulo à autogestão e fortalecimento da organização de conselhos que implementem programas de desenvolvimento para as populações do campo; e por fim propõe, sob responsabilidade da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, o atendimento escolar à Educação Infantil e Ensino Fundamental nas comunidades rurais, incluindo a alfabetização para aqueles que não concluíram a escolaridade na infância e juventude (ANDRADE e DI PIERRO, 2004). Edla de Araújo Lira Soares (2001), que elaborou e relatou o Parecer da Diretriz, afirma no texto do relatório que:

A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana. Assim focalizada, a compreensão de campo não se identifica com o tom de nostalgia de um passado rural de abundância e felicidade que perpassa parte da literatura, posição que subestima a evidência dos conflitos que mobilizam as forças econômicas, sociais e políticas em torno da posse da terra no país.

Na perspectiva de Molina (2003, p. 76), as discussões em torno da diferenciação entre o conceito Educação Rural e Educação do Campo ocorre inicialmente pela via da Articulação Nacional em audiências públicas com o Conselho de Educação Básica - CEB. A articulação Nacional recusa o conceito de educação rural historicamente

associado a uma educação precária, atrasada, com pouca qualidade e poucos recursos [e em contrapartida] concebe o campo como espaço de vida e resistência, onde camponeses lutam por acesso e permanência na terra para edificar e garantir um modus vivendi que respeite as diferenças quanto à relação com a natureza, com o

trabalho, sua cultura, suas relações sociais (MOLINA, 2003, p. 76).

Na esteira desses acontecimentos é possível observar que os princípios da Educação do Campo nascem no contexto das discussões e propostas sociais do MST, já TXH FRQIRUPH 6RX]D  S   ³QD academia pouco se fala[va] em Educação do Campo. A didática, a prática de ensino e os estágios curriculares são disciplinas orientadas para as discussões da realidade urbano-industrial, deixando à margem o debate sobre a realidade brasileira e nela as relações sociais que FDUDFWHUL]DPRFDPSR´

5HOHPEUDQGRTXHKLVWRULFDPHQWHRWHUPRµUXUDO¶WUD]HPVLXP UHFRQKHFLPHQWRGHXPOXJDUGHDWUDVRHLQIHULRURQGHYLYHPRV³MHFDV WDWX´ RX DTXHOHV TXH SRU QmR WHUHP WLGR RXWUD ³FKDQFH´ QD YLGD aceitaram e ficaram num lugar que é desprovido de acesso aos bens culturais, atribuindo modernidade somente aos centros urbanos. Se de um lado esta visão corresponde a um modo de vida camponês subordinado à concepção de uma cultura moderna urbanocêntrica que, além de escapar à tríade Campo-Política-Educação, proposta por Caldart (2008, p. 70), rejeita ou desqualifica os homens e mulheres do campo, de outro sobra a estes adultos analfabetos ou pouco HVFRODUL]DGRV XPD HGXFDomR ³RIHUWDGD´ pelo Estado e, portanto, como recompensa/compensatória e não como direito.

A diferenciação nos conceitos rural e campo está estreitamente YLQFXODGDDXPDFRPSUHHQVmRGHHGXFDomRFRPR³SROtWLFDHGXFDFLRQDO que atenda sua diversidade e amplitude e entenda a população camponesa como protagonista propositiva de políticas e não como EHQHILFLiULRV H RX XVXiULRV´ )(51$1'(6  S   e QHVVD perspectiva que Fernandes (2006) coloca em evidência a expressão campo para fazer, política e pedagogicamente, frente à expressão rural, FRQFHEHQGR R FDPSR FRPR ³XP HVSDoR VRFLDO FRP YLGD LGHQWLGDGH FXOWXUDO SUySULD H SUiWLFDV FRPSDUWLOKDGDV SRU DTXHOHV TXH D YLYHP´ (FERNANDES, 2006, p.28-30) e não como espaço demarcado de um determinado território.

A Educação do Campo foi impulsionada, em grande medida, pelo MST de tal modo que é possível, neste contexto, dizer que tem sua historicidade tramada às lutas dos movimentos sociais por políticas públicas educacionais para os assentamentos das áreas de Reforma Agrária, compreendendo-se que a especificidade da Educação do Campo

não é qualquer particularidade, nem uma particularidade menor. Ela diz respeito a uma boa parte da população do país; se refere a processos produtivos que são a base da sustentação da vida humana, em qualquer país. Não é possível pensar um projeto de país, de nação, sem pensar um projeto de campo, um lugar social para seus sujeitos concretos, para seus processos produtivos, de trabalho, de cultura, de educação (CALDART, 2008, p. 74).

É na articulação indissociável desse horizonte social mais amplo que se insere o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária ± PRONERA ± como uma iniciativa articulada fora da esfera governamental e, portanto, marcada por um contexto histórico social e ideológico na medida em que as pessoas do campo, vinculadas ao MST e a esse Programa passam a ser interpeladas como sujeitos.