• Nenhum resultado encontrado

2.3 Prédios históricos tombados em Pelotas: Registros Patrimoniais

2.3.7 O Doce de Pelotas

Figura 12 - Doces Tradicionais de Pelotas (doces de gemas de ovos e frutas cristalizadas). Fonte: da Autora (2016)

Este município tem um dos mais importantes bens culturais imateriais que estão inventariados aos saberes, às habilidades, às crenças, às práticas, aos modos de ser das pessoas, dentro do departamento do patrimônio imaterial do IPHAN26. Nesta cidade temos os Doces de Pelotas (Figura 12), uma tradição que perpetua a várias gerações, com procedimentos e saberes artesanais com seu modo de fazer, na forma de medir os ingredientes, como enfeitá-los etc. A este conhecimento, juntam-se as relações sociais e familiares para também preservar e conservar este modo de fazer, revelando assim os diversos aspectos da cultura cotidiana de um grupo ou de uma comunidade, a exemplo dos imigrantes que ao chegarem à região traziam em sua mala, suas receitas.

Daí considerar-se pertinente a inclusão desse subcapítulo sobre um patrimônio da gastronomia pelotense, memória certamente conservada pela Baronesa de Três Serros e suas filhas quando não apenas trocavam receitas em conversas cotidianas, mas também as preservavam nos antigos cadernos de receitas, feitos tradicionalmente à mão, com ilustrações recortadas de revistas de época e coladas ao lado das principais receitas e dos segredos culinários.

_____________________________________________________________________

43

Segundo nos coloca o Almanaque Bicentenário de Pelotas, as precursoras do doce de Pelotas foram as irmãs Cordeiro, cuja época remete à Pelotas do século XIX, quando a matriarca Josefa Maria de Azevedo Sá (1852-1928), egressa de uma família de charqueadores de origem portuguesa, perdeu o marido, no ano de 1894. Para sustentar seus nove filhos, Josefa passa a fazer doces para serem vendidos em tabuleiros nas ruas.

Ao chegarem às novas terras, famílias procuram conservar suas origens e tradições e junto à bagagem, traziam consigo diversas receitas de doces tradicionais de suas regiões de origem. Da região de Aveiro, por exemplo, foi trazida a receita de ovos moles. Um creme feito unicamente de ovos e seu modo de fazer deve-se originalmente às freiras dos conventos espalhados por toda região até o século XIX. Como as freiras Franciscanas, Carmelitas e Dominicanas, que eram designadas para o Mosteiro de Jesus de Aveiro. As claras de ovo eram utilizadas pelas irmãs para engomar os hábitos e para que as gemas não fossem desperdiçadas, elas criaram uma base para ser usada em vários doces, como o doce de ovos moles.

Com o passar dos anos alguns conventos foram fechados, mas a produção do doce foi preservada; o conhecimento e a preservação do saber fazer havia sido passado pelas irmãs, às senhoras moradoras da comunidade. A massa deste doce de ovos moles27era comercializada em barris de madeira pintados com motivos de barcos moliceiros ou outros motivos da Ria de Aveiro, foz do Vouga ou ainda em cumbuquinha28 de cerâmica. Ainda tem-se, de outras regiões de Portugal, o pão-de-ló de Ovar, da Murtosa ou de Serradelo, uma especialidade regional, os pastéis de Águeda, que são confeccionados à base de ovos, açúcar, manteiga e amêndoa, têm uma delicada textura com uma cobertura estaladiça fazendo ser uma das melhores iguarias de Águeda. O arroz doce de Ilhavo, que é feito com açúcar, gemas, casca de limão, sal, manteiga e canela a gosto, entre tantas outras iguarias.

Também na obra Almanaque do Bicentenário de Pelotas (volume 2, caderno 4), além da obra de Mario Osorio Magalhães, que foi consultor do INRC29, tem-se uma segunda

_____________________________________________________________________

27 Este doce de ovos-moles é colocado principalmente em folhas de hóstia (massa especial de farinha de trigo), formando vários docinhos com a forma de amêijoas, peixes, bateiras, conchas e búzios, que depois de moldados são passados em uma calda de açúcar para ficarem mais opacos e dar mais forma.

28 Entende-se por cumbuca ou cumbuquinha, vaso ou panela feito de cerâmica para guardar líquidos ou para cozinhar.

29 INRC - O Inventário Nacional de Referências Culturais é uma metodologia de pesquisa desenvolvida para a identificação e documentação de bens culturais e, consequentemente, para as possibilidades de preservação desses bens. Vale enfatizar que o INRC significa a disponibilização de um instrumento essencial para a identificação de bens culturais tanto imateriais quanto materiais.

44

referência historiográfica importante, a qual localiza a cidade de Pelotas na geografia do doce no país, que é Gilberto Freyre. Na terceira edição do livro Açúcar (1997) o mesmo menciona que a existência de doces finos no Sul, “rivalizavam em qualidade com os doces produzidos no Nordeste”. Tais doces eram produzidos em área não produtora de açúcar, sua feitura só era possível a partir do sistema de trocas que aconteciam no porto da cidade do Rio de Janeiro, o charque de Pelotas pelo açúcar do Nordeste.

O Rio Grande do Sul também importava o açúcar dos Estados da Bahia, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo, pois esta iguaria era a principal matéria prima para a fabricação dos doces.

No século XIX já haviam grandes pomares e a produção de frutas como laranja, pêssego, maça, figo, marmelo, goiaba, bergamota era em grande quantidade. Começa assim, a produção de doces em calda ou doces de tacho, que são as famosas compotas para fazer parte da mesa das famílias pelotenses. É nessa mesma época que surgem os doces cristalizados e os de passas, estes doces são produzidos em larga escala; feitos por escravas eram depois vendidos pelas ruas.

No ano de 1870, com o desenvolvimento econômico da cidade, a elite pelotense organizava belíssimas festas, e os doces que até então eram caseiros ganharam o requinte dos doces típicos portugueses, como camafeus, bem-casados, fios de ovos, fatias de Braga, ninhos e pastéis de Santa Clara.

Entre outros países que aqui se estabeleceram, podemos destacar imigrantes de Portugal que aqui chegaram de várias regiões contribuíram para que hoje tenhamos este patrimônio gastronômico, que nos prova através do ensinamento que passa de geração em geração que é possível conservar as receitas tradicionais de doces vindas do além-mar, deixando na memória dos indivíduos o sentimento de pertencimento de uma cultura que veio de outro território de identidade, mas se incorporou à nossa.

Com o passar dos séculos e a tradição de fazer o doce sendo mantida, várias confeitarias foram criadas e espalhadas pela cidade, chegando ao ponto de ser criada uma das festas mais importantes do país, a “Fenadoce - Feira Nacional do Doce”.

Existem várias definições de festas ou eventos. Como nos cita Zanella (2006, p.13): Evento é uma concentração ou reunião formal e solene de pessoas ou entidades realizadas em data e local especial, com objetivo de celebrar acontecimentos importantes e significativos e estabelecer contatos de natureza comercial, cultural, esportiva, social, familiar, religiosa, científica, etc.

45

O espaço onde acontece a Festa do Doce atualmente é composto de 22 mil metros quadrados de área coberta com 300 expositores, com opções de moda, casa e decoração, comércio e serviços e artesanato, praça de alimentação com restaurantes, lancheiras e palcos com diversos shows de artistas e apresentações de dança e música. No lado externo existem várias atrações permanentes como: passeio de helicóptero, oficinas do Tholl30, escola de trânsito, parque de diversão, praças de alimentação com restaurantes e lancheiras. Esta festa ocorre no mês de junho com dezenove dias de intenso divertimento e bons negócios.

Essa constatação, de que um evento contemporâneo já se repete desde o ano de 1986, mostra a vitalidade de um bem cultural imaterial; quando bem preservado esse bem mostra um movimento de memória bastante dinâmico, se insere na produção cultural e promove a qualidade de vida dos cidadãos.

3. A FEMINILIDADE NO INTERIOR DAS CASAS E NOS LOCAIS PÚBLICOS

As iniciativas em prol das melhorias para uma vida de mais qualidade e uma organização da sociedade foram se transformando ao longo dos séculos, de forma que:

Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma serie de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade – burguesa – reorganizadora das vivencias familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor”. (D’INCAO, 2015)

Neste período nasce uma nova mulher em relação à família, agora sendo mais valorizada na intimidade e na maternidade. Ainda segundo D’Incao (2015, p 223,225), “a vida burguesa, reorganiza as vivencias domésticas. Um sólido ambiente familiar, um lar acolhedor, filhos educados e a esposa dedicada ao marido e sua companheira na vida social são considerados um verdadeiro tesouro”.

_____________________________________________________________________

30 Grupo Tholl (Patrimônio Cultural do Rio Grande do Sul), foi criado em 1987 na cidade de Pelotas/RS, por João Bachilli.

46

Diversos viajantes por estas terras passaram e vários escritos foram elaborados sobre as mulheres brasileiras, onde a classe social e suas etnias eram muito distintas. Verona (2013, p 28) nos mostra que escravas e mulheres livres e pobres sempre gozavam de considerável liberdade pessoal, principalmente no que diz respeito às possibilidades de ir e vir. Desde os tempos coloniais eram vistas frequentemente nas ruas geralmente trabalhando. É sobre a mulher de elite que recaem, sem dúvida os maiores cuidados. A autora ainda nos fala sobre um provérbio português: A mulher deveria sair de casa somente em três ocasiões durante toda a vida: no seu batizado, no seu casamento e no seu sepultamento.

A menina ao nascer já tinha sua vida traçada por seus familiares, aprendia desde cedo como ser uma boa dona de casa, como cuidar da casa, do seu marido, de seus filhos, aprendia como se comportar em sociedade, enfim qualquer lugar em que fosse solicitada sua presença. Desta forma já estava sendo preparada para o casamento, pois o mesmo seria um descanso para os pais, pois daquele momento em diante seu esposo seria responsável por vida e assim ela obtinha todo respeito da sociedade. Sua conduta de esposa e dona de casa tinha muitas regras, inclusive dentro de sua própria casa, a ela só era permitido ficar e se socializar com o mundo exterior em sua sala de visitas, onde as regras de comportamento eram rígidas e controladas.

Com o desenvolvimento das cidades e da vida burguesa do século XIX, as mudanças começaram a surgir não somente na postura das mulheres, mas com influência direta na organização dos interiores das casas, tornando-as mais aconchegante, mostrando os limites entre as classes sociais, fazendo com que houvesse uma intimidade maior entre os familiares.

Esta mudança na vida doméstica aconteceu em um período em que os proprietários abriram suas residências para o convívio de apreciação pública para um restrito círculo de familiares, parentes e amigos. Segundo D’ Incao (2015, p 228), as salas de visita e os salões, espaços intermediários entre o lar e a rua, eram abertos para realização de saraus noturnos, jantares e festas. Nestes locais a ideia de intimidade se ampliava e a família em especial a mulheres, submetia-se a avaliação e opinião dos “outros”. A mulher da elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida social.

Agora a senhora não era somente vigiada pelo pai ou marido, que controlavam todos seus passos e conduta, mas também por toda sociedade. Estas senhoras e moças tiveram que

47

aprender a se comportar em público, pois para conviver em sociedade teriam que ser extremamente educadas.

No final do séc. XIX e começo do séc. XX, as transformações em todo o mundo ocorriam em ritmo acelerado, as mulheres agora sentindo-se mais seguras, almejavam ser introduzidas no mercado formal de trabalho. Nas classes mais baixas as mulheres necessitavam trabalhar para sustentar a casa e os filhos, nem todos os homens se preocupavam com o sustento da casa, nem sempre eram os provedores do lar, ficando para elas esta responsabilidade. Aos poucos as mesmas começaram a reivindicar seus direitos como cidadãs para trabalhar fora, um direito pertencente somente os homens. Já as mulheres de classes mais altas não se preocupavam com um emprego o que elas queriam mesmo, era um casamento que fornecesse seu sustento, para que suas preocupações fossem com as tarefas do lar, cuidado com os filhos e esposo.

Esta questão foi discutida por Fonseca 2015, no artigo “Ser mulher, mãe e pobre”:

A mulher pobre enfrentava outra grande barreira, cercada por uma moralidade oficial completamente desligada de sua realidade vivia entre a cruz e a espada. O salário minguado e regular de seu marido chegaria a suprir as necessidades domesticas só por um milagre. Mas a dona, que tentava escapar da miséria por seu próprio trabalho, arriscava sofrer o pejo da “mulher pública”. Em vez de ser admirada “boa trabalhadeira”, como o homem em situação parecida, a mulher com o tralho assalariado tinha de defender sua reputação contra a poluição moral, uma vez que o assédio sexual era lendário.FONSECA (2015, p 516)

Como outros autores já comentaram anteriormente, a moça de classe inferior não tinha de forma algumas condições de estudar, nem que fosse para ter o mínimo de estudo, em primeiro lugar vinham as obrigações da casa, como trabalhar na roça, cuidar dos irmãos mais novos, ajudar na lida da casa, o privilégio de estudar somente pertencia ao homem.

Louro (2015, p 445) em seu artigo “Mulheres na sala de aula”, explana sobre como era a educação feminina, que não poderia ser passada para as moças sem uma sólida formação cristã. É importante lembrar que seria a chave principal de qualquer projeto educativo. Deve- se notar que embora a expressão “Cristã” tenha um caráter mais abrangente, a referência para a sociedade brasileira era sem dúvida o catolicismo. Portanto, algumas ordens religiosas femininas dedicaram-se especialmente à educação das meninas órfãs, com a preocupação de

48

preservá-las da “contaminação dos vícios”; outras religiosas voltaram aos cuidados das moças sem emprego, daquelas que se desviaram do bom caminho

A autora ainda nos explica que a criação das escolas normais teve o intuito de formar educadores que conseguissem dar conta da demanda das solicitações mesmo para as salas de aula. Para a surpresa geral, os estabelecimentos de ensino estavam recebendo mais moças que rapazes para serem educadores. Para entendermos melhor, ela descreve um exemplo: “...Em 1874, o diretor geral da instituição que é a Escola Normal da província do Rio Grande do Sul vinha registrando “um número crescente de alunas, a par da diminuição de alunos”. Essa tendência preocupa o diretor que acrescenta:

O asilo de Santa Tereza proporciona à escola, todos os dias, um bom número de educandas, e o mesmo poderá fazer o asilo de Santa Leopoldina. As educandas têm em geral frequentado com aproveitamento o curso normal e algumas, na regência de cadeira, têm dado provas de excelente vocação para o magistério. Dentro de certo tempo acontecerá que teremos superabundância de professoras habilitadas pela Escola Normal e falta de professores nas mesmas condições. (LOURO, 2015, p 449).

Como para as mulheres ditas “direitas”, haviam poucas profissões honradas, uma destas era a de ser professora, pois era comparada com a “profissão de mãe”, e o “instinto materno nato” da mulher, formando uma junção perfeita com os princípios morais. A carreira de magistério foi bem aceita por toda comunidade, atraindo muitas moças e senhoras e criando assim um meio de sustento para si e muitas vezes para sua família.

Documentos relacionados