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O fato de os documentos e os artefatos ampliarem os alcances espacial e temporal da comunicação humana não significa que sejam os únicos recursos disponíveis para atender a essa necessidade. As tradições orais e rituais podem desempenhar funções similares, mas realmente se pode afirmar que a memória

reside na missão institucional de organizações como arquivos, museus, bibliotecas, universidades, algumas agências governamentais e outras similares (FOOTE, 1990, p. 379-380). Cada uma dessas instituições pode preservar representação do passado específica de sua jurisdição institucional e as representações podem até mesmo estar inter-relacionadas. A importância dessa perspectiva é que ela previne contra a idéia de assumir que a memória possa ou deva estar investida em qualquer tipo específico de instituição humana, como o arquivo. Em determinadas sociedades, as tradições orais e rituais podem predominar, enquanto em outras a memória estará associada a documentos arquivísticos, documentos da literatura e mesmo elementos da cultura material como monumentos e memoriais.

Contemporaneamente, o conceito de memória pode ser tomado em dois sentidos complementares: a memória-hábito ou memória de repetição, que constitui a memória psicofisiológica; e a memória representativa, que constitui a própria essência da consciência. É nesse segundo sentido que se pode afirmar que a memória é o ser essencial do homem como entidade espiritual, distinguindo-o, assim dos demais seres. O homem, nos diz Bergson, é "o ser que tem memória", que conserva seu passado e o atualiza no presente, que tem, por conseguinte, história e tradição. Em decorrência dos trabalhos iniciados por Durkheim e desenvolvidos por Halbwachs, é possível distinguir, atualmente, duas vias de análise: a via da memória individual como fato social e a via da memória coletiva ou memória social no sentido da identidade de grupos, classes, etnias, nações (DUARTE, 1986).

Encontra-se a origem da palavra memória em mnemon na Grécia arcaica.

Mnemon era a pessoa encarregada de guardar a lembrança do passado em vista de

uma decisão da justiça. Essa atribuição podia ser função ocasional ou duradoura. Os mnemones eram usados pelas cidades como "magistrados" encarregados de

conservar na sua memória, o que era útil em matéria religiosa e jurídica. Na mitologia e na lenda grega, o mnemon é o servidor de um herói, que o acompanha sem cessar para lembrar-lhe da ordem divina cujo esquecimento lhe traria a morte. A memória era tão importante para a cultura que os gregos a elegeram deusa,

Mnemosine45. A deusa lembra aos homens de seus heróis e seus feitos e preside a

poesia lírica46 (LE GOFF, 1984b, p. 20).

Nas sociedades sem escrita, a memória parecia ordenar-se em torno de três grandes interesses: a identidade coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem; o prestígio das famílias dominantes que se exprimem pelas genealogias; e o saber técnico transmitido por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa. Nessas sociedades, a memória parecia funcionar segundo reconstrução generativa e não segundo memorização mecânica. O papel importante cabia à dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos (LE GOFF, 1984b, p. 16).

O advento da escrita permitiu ao homem desenvolver duas formas de registro: a inscrição e o documento escrito. A primeira representa a celebração de acontecimento memorável através de obra notável. A segunda consiste na escrita em suporte especialmente projetado para a função. O documento escrito possibilitou armazenar informação para comunicação através do tempo e do espaço e assegurar a passagem da esfera auditiva para a visual através do reexame, reordenação, retificação de frases e até palavras isoladas. A escrita permitiu também abstração e, acredita-se, profundas alterações psicológicas nos indivíduos. A evolução do

45 Mnemosine é mãe de nove musas, protetoras das artes e da história, procriadas no decurso de nove noites

passadas com Zeus.

46 O poeta seria um homem possuído pela memória paralelamente ao aedo que seria o adivinho do passado, e o

documento escrito está intimamente associada à evolução social e sobretudo ao desenvolvimento urbano.

A coexistência dos sistemas de escrita e das primeiras civilizações fornece exemplo de relacionamento entre o uso de documentos e o alcance comunicacional. Embora diversos fatores estivessem envolvidos na ascensão das novas civilizações, o início da organização social complexa pareceu exigir meios para anotar a palavra oral. A escrita permitiu que a informação fosse transferida de local a local e de ano a ano, mesmo que a informação pertencesse inicialmente a determinado grupo, pois os documentos escritos favoreceram a transferência de informação, difícil de atingir através de meios como o oral e a tradição ritual (FOOTE, 1990, p. 379).

Na Idade Média, o documento escrito assumiu papel considerável no mundo social, no mundo cultural e no mundo escolástico e nas formas elementares da historiografia. O escrito desenvolveu-se paralelamente ao oral e, pelo menos no grupo dos clérigos e literatos, houve equilíbrio entre memória oral e memória escrita, intensificando-se o recurso ao escrito como suporte da memória. Nesse período surgem, também, os primeiros tratados sobre a memória (LE GOFF, 1984b, p. 28- 33).

No início da Idade Moderna, a imprensa revolucionou a memória ocidental. O processo mecânico de se imprimir a escrita possibilitou ao leitor não somente grande quantidade de documentos escritos, cuja matéria não seria mais capaz de se fixar integralmente, como a exploração de novos mundos e novas idéias. A partir daí, assistiu-se a crescente exteriorização da memória individual.

Os depósitos centrais de arquivo foram criação do século XVIII e o documento escrito até então acumulado vai explodir na Revolução de 1789 e, talvez, tenha sido seu grande detonador. Na França, a Revolução cria os Arquivos

Nacionais em decreto de 7 de setembro de 1790 e quatro anos depois (1794) determina a divulgação dos documentos neles contidos. Esses fatos deram origem a nova fase: a fase do caráter público dos documentos da memória nacional (LE GOFF, 1984b, p. 36-38).

Depois da França, seguiu-se a Inglaterra com o Public Record Office, em 1838, mesmo ano em que o regente Pedro de Araújo Lima, futuro marquês de Olinda, criou, no Brasil, o Arquivo Público do Império. Em 1881, o papa Leão XIII abriu ao público o arquivo secreto do Vaticano, criado em 1611. Paralelamente, começam a surgir as primeiras instituições para formação de especialistas no tratamento de documentos: a École des Chartes em Paris, em 1821, o Institut für

Österreichische Geschichtsforschung em Viena, em 1854 e a Scuola di Paleografia e Diplomatica em Florença, em 1857.

As comemorações em geral apropriam-se de novos instrumentos de suporte. A partir de meados do século XIX, nova "civilização da inscrição" inunda as nações européias de moedas, medalhas, selos de correio, placas comemorativas. Grande domínio em que a política, a sensibilidade e o folclore se misturam à espera de seus historiadores. O desenvolvimento do turismo dá impulso notável ao comércio de

souvenirs. Os museus, após tímidas tentativas de abertura no século XVIII,

finalmente se abrem ao público. As bibliotecas desenvolvem-se em paralelo. Surgem novas tecnologias ligadas ao documento: a fotografia, o telégrafo, o filme, multiplicando-o e democratizando-o, imprimindo-lhe precisão e verdade nunca antes atingidas (LE GOFF, 1984b, p. 38-39).

A evolução do documento no século XX foi surpreendente, sobretudo após 1950, quando o documento eletrônico surge como fato mais significativo. O mundo assiste à grande explosão da “memória” e, particularmente os arquivos, viram-se

diante de massa documental difícil de gerenciar e preservar. Le Goff (1984b, p. 41- 42) destaca que, além dos serviços prestados nos diferentes domínios técnicos e administrativos, onde a computação encontrou as suas primeiras e principais informações, o documento eletrônico trouxe duas importantes conseqüências. A primeira refere-se à aplicação das 'calculadoras' no domínio das ciências sociais, em particular a história, na qual "a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto". A segunda diz respeito ao efeito da metáfora da memória humana aplicada a outros tipos de “memória”, tais como, memória real, memória artificial, memória central, memória auxiliar, memória principal, memória secundária.

Os documentos, como parte integrante da memória coletiva de indivíduos e grupos, precisam ser reunidos, arranjados, descritos, preservados e disseminados, em seu estado mais puro, para posterior interpretação e garantia da continuidade do “ciclo ação-memória-história”, fenômeno sobre o qual o homem tem apoiado seu desenvolvimento ao longo do tempo, como afirma Bellotto (1991, p. 184). Ademais, é preciso observar que as estruturas de conservação e transmissão de tradição oral estão desaparecendo, deixando indivíduos e grupos “sem aquelas raízes necessárias para a própria consciência, personalidade e identidade" (DELMAS, 1996, p. 443). A redução dos contatos familiares e, por conseguinte, da comunicação entre gerações, tem provocado crescente desvalorização da memória humana. Em contrapartida, a tendência é que o documento preservado se torne, cada vez mais, a principal fonte de memória coletiva.

Segundo Delmas (1996, p. 443-444), nos anos 1980 e 1990, número elevado de genealogistas visitou os arquivos para satisfazer necessidade não somente de ordem técnica, mas também de ordem espiritual, e esse fenômeno não se limitava ao nível individual. Ainda segundo o autor, a história corporativa e

administrativa havia florescido de maneira significativa, da mesma forma que a preocupação com a história da identidade, da cultura e da comunidade e, em nível nacional, as estórias da vida diária, da vida urbana ou rural de grupos sociais vinham seguindo o mesmo desenvolvimento. Concluindo, Delmas afirma que:

Em um mundo que parece cada vez mais desumanizado, o gênero biográfico revivido é a oportunidade para explicar uma era e uma sociedade através de uma pessoa que serve como referência. Desde a metade do século XX, diversos arquivistas têm ocupado espaço regular na imprensa ou programas de rádio para recordar a história do país ou região sob sua responsabilidade.

A função de prova que, por muito tempo, tem sido a justificativa para preservar documentos, continua ainda fundamentada nas idéias proclamadas no período de formação dos estados-nação e no desenvolvimento da história positivista ao fim do século XIX. Sabe-se que, atualmente, os documentos autenticados representam somente pequena parcela da maioria dos acervos arquivísticos47 e os arquivos, cada vez mais, têm exercido, adicionalmente à função de comprovar, as funções de recordar, explicar e comunicar. Nesse contexto, o deslocamento para a função de memória parece inevitável e o reconhecimento da redefinição dos usos dos arquivos é essencial para a definição das políticas de conservação das instituições. “Uma vez que se conhece a razão pela qual o documento arquivístico é criado, é necessário conhecer também a razão pela qual é mantido, ainda que aquela razão original tenha desaparecido" (DELMAS, 1996, p. 445).