• Nenhum resultado encontrado

1. Terapia Celular Em Cardiologia – O Estado Da Arte

1.1 Doenças Cardíacas E O Potencial Da Terapia Celular

1.1.2 Doenças cardíacas e as limitações das terapêuticas atuais

1.1.2.3 Doença isquémica crónica

A doença isquémica crónica inclui duas entidades patológicas com especial interesse para a Terapia Celular: a cardiomiopatia isquémica; e a angina de peito refratária à terapêutica convencional.

O termo cardiomiopatia isquémica descreve a existência de um compromisso significativo da função sistólica ventricular motivado pela presença de doença coronária 57. Este compromisso da função contráctil resulta da perda de

miocárdio, após um ou múltiplos enfartes, ou da presença de uma extensão considerável de miocárdio não funcionante por deficiente irrigação coronária, ou seja por isquémia, embora permaneça viável se supridas as suas necessidades metabólicas. De realçar que em muitos doentes estes dois mecanismos estão presentes e contribuem em simultâneo para a disfunção ventricular.

A cardiomiopatia isquémica é a principal causa de insuficiência cardíaca por disfunção sistólica na maioria dos países, representando mais de metade dos casos na Europa e América do Norte e um terço na Ásia e América do Sul 58. O tratamento da cardiomiopatia isquémia partilha com todas as outras causas de insuficiência cardíaca das estratégias já referidas de inibição da ativação neuroendócrina e de utilização de dispositivos implantados. Além destas, na cardiomiopatia isquémia existe evidência do benefício da prevenção secundária, com o controlo adequado dos fatores de risco de doença coronária, a antiagregação plaquetária e a utilização de estatinas. Na presença de angina ou de evidência de miocárdio viável, a medicação antisquémica e/ou a revascularização coronária são outras opções terapêuticas a considerar na doença isquémica 18.

Cerca de 30 a 50% dos doentes com cardiomiopatia isquémica têm miocárdio viável em quantidade suficiente para ser expectável que, com a sua revascularização, ocorra uma melhoria da função ventricular, das queixas e do seu prognóstico 59,60. Estão descritos um aumento da contractilidade e da

espessura do miocárdio nos segmentos isquémicos, um aumento médio de 8% da FEVE e uma redução de 80% do risco anual de morte após a revascularização coronária 61–63. A maioria desta evidência vem de estudos observacionais ou com populações pequenas, porém, num estudo recente de grande dimensão, com 1212 doentes randomizados para terapêutica médica ou para a sua associação com revascularização cirúrgica, não houve benefício desta última quanto há mortalidade total, embora tenha sido observada uma redução significativa da mortalidade cardiovascular e das hospitalizações 64. Merecem atenção os resultados de uma análise posterior

deste estudo, que mostraram uma concentração do benefício observado nas formas menos graves da doença, sendo que nos doentes com um compromisso mais marcado da função sistólica e maior dilatação do ventrículo esquerdo a revascularização cirúrgica teve mesmo um efeito negativo no seu prognóstico 65.

Embora o papel da revascularização miocárdica seja um tema ainda em aberto, ela está preconizada nas orientações terapêuticas atuais, e o estudo da viabilidade miocárdica e da anatomia coronária, para considerar a possibilidade de uma estratégia de revascularização, continua a fazer parte da prática clínica diária. No entanto, a decisão sobre a revascularização mecânica é complexa e depende da existência de comorbilidades que aumentem o risco da intervenção, e da anatomia coronária, sendo que não é possível uma revascularização completa em cerca de 20% dos casos (incluindo 7% dos doentes sem possibilidade de qualquer revascularização), por doença coronária difusa, estenoses distais ou envolvimento de pequenos vasos 66. Por outro lado, a FEVE não melhora com a revascularização coronária em um terço dos doentes com viabilidade miocárdica demonstrada

67.

Em alguns doentes a principal manifestação da doença isquémia crónica é a angina de peito, a qual é definida como refratária no caso de causar um compromisso significativo da qualidade de vida e de estarem esgotadas as opções terapêuticas convencionais. A isquémia do miocárdio, e

consequentemente a angina ou um seu equivalente (dispneia ou intolerância ao esforço), resulta de um desequilíbrio entre as necessidades de oxigénio do músculo cardíaco e o seu fornecimento, sendo a sua principal causa a doença coronária.

O tratamento atual da angina assenta há quase 40 anos em fármacos com propriedades antianginosas (ß-bloqueantes, antagonistas dos canais de cálcio ou nitratos) e na revascularização miocárdica, cirúrgica ou percutânea

68–70. Apesar de muito eficaz, estima-se que esta estratégia terapêutica não é

possível ou suficiente em cerca de 5 a 15 % dos doentes com angor estável, sendo ainda previsível um aumento da prevalência da angina refratária com a melhoria da sobrevida dos doentes coronários 71. Também numa proporção

importante dos casos existe mesmo falência da revascularização mecânica prévia, por progressão da doença, reestenose dos stents ou oclusão das pontagens coronárias 72,73.

Apesar da maioria dos doentes ter a função ventricular sistólica preservada, a angina refratária tem um impacto marcado na sua qualidade de vida, ao condicionar a execução das suas tarefas diárias, assim como na redução da sua esperança de vida 73. Nos últimos anos têm sido exploradas várias modalidades terapêuticas com a expectativa de constituírem uma alternativa para estes doentes. Novos fármacos como a ranolazina 74 e a ivabradina 75, bem como novas estratégias mecânicas como a contrapulsação externa 76, a estimulação elétrica da medula espinal 77 e a revascularização miocárdica por laser 78, têm mostrando algum benefício, mas nenhum se implementou ainda como verdadeiro modificador da história natural da angina refratária.

A capacidade de promover a formação de novos capilares - angiogénese, ou de novos vasos arteriais - arteriogénese, nas regiões subperfundidas do coração, terá provavelmente a capacidade de reduzir a isquémia do miocárdio e levar a uma melhoria clínica expressiva 79. A utilização de fatores

de crescimento, a Terapia Genética e a Terapia Celular têm sido exploradas com esse objetivo 80.