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1. Terapia Celular Em Cardiologia – O Estado Da Arte

1.1 Doenças Cardíacas E O Potencial Da Terapia Celular

1.1.2 Doenças cardíacas e as limitações das terapêuticas atuais

1.1.2.1 Insuficiência cardíaca e remodelação ventricular

A insuficiência cardíaca é definida como a incapacidade do coração entregar sangue oxigenado de forma adequada às necessidades metabólicas dos tecidos, ou apenas fazê-lo às custas do aumento das pressões de enchimento ventricular, sendo esta incapacidade o resultado de alterações da estrutura ou função cardíaca 13. A insuficiência cardíaca é também uma síndrome que engloba as manifestações de baixo débito cardíaco e de congestão vascular, sendo o resultado comum de vários processos patológicos que envolvem o coração.

Com a progressão da doença cardíaca existem alterações dos componentes genéticos, moleculares, celulares e intersticiais do coração, bem como alterações dos mediadores homeostáticos do organismo. A manifestação visível destas alterações é uma alteração no tamanho, na forma e na função ventricular, conhecidas como remodelação ventricular 14. Estas alterações

ventriculares traduzem um processo contínuo de deterioração cardíaca que ocorre mesmo na ausência da agressão inicial. A remodelação ventricular constitui um alvo terapêutico por si, pois a sua prevenção, minimização ou regressão, resultará numa melhoria do estado clínico dos doentes e num melhor prognóstico.

Os mecanismos da remodelação ventricular não estão ainda completamente elucidados, mas acredita-se que os cardiomiócitos têm um envolvimento importante neste processo 14. Após a perda de um número significativo destas células, como resultado de uma agressão miocárdica, a sobrecarga imposta aos cardiomiócitos sobreviventes leva a alterações genéticas que se traduzem na hipertrofia ou alongamento destas células. Isto ocorre como forma de aumentar a sua ação contráctil, para compensar a perda de miocárdio e manter o volume sistólico do ventrículo esquerdo. Este mecanismo de compensação é no entanto insuficiente e a sobrecarga

hemodinâmica mantêm-se, promovendo um ciclo vicioso de aumento da hipertrofia celular, da tensão da parede ventricular, das necessidades metabólicas e da potenciação da isquémia celular. A perda contínua de células através de mecanismos de apoptose e a alteração da matriz extracelular, com a degradação do seu componente colagénico, também têm sido apontados como influentes no processo de remodelação ventricular 15,16.

A ativação de mediadores neurohormonais, resultante da diminuição do débito cardíaco e da congestão vascular, tem um papel importante neste ciclo vicioso, contribuindo para a progressão da remodelação ventricular e para deterioração clinica dos doentes. Os mais conhecidos fazem parte do sistema nervoso simpático e do eixo renina-angiotensina-aldosterona 17. A terapêutica

atual da insuficiência cardíaca baseia-se sobretudo em fármacos que inibem estes mediadores neurohormonais 18. Os inibidores do enzima de conversão da angiotensina (IECA), os antagonistas dos recetores da aldosterona (ARA) e os antagonistas da aldosterona demostraram em ensaios clínicos ter um efeito significativo na redução da morbilidade e mortalidade associada à insuficiência cardíaca e também, no caso dos IECA e ARA, nos doentes com disfunção ventricular sistólica assintomática 19. O mesmo foi demonstrado para os inibidores dos recetores ß-adrenérgicos 20. Estas classes de fármacos influenciam favoravelmente a remodelação ventricular, observando- se inicialmente uma redução das dimensões dos ventrículos e um aumento da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE), ou pelo menos a sua estabilização, sendo esta provavelmente uma causa importante do seu benefício clínico 21–24. No entanto, é reconhecido que na maioria dos doentes a progressão da insuficiência cardíaca não é interrompida pela terapêutica farmacológica, mas apenas atrasada.

Existem atualmente estratégias não farmacológicas que se associam frequentemente à terapêutica medicamentosa. Para diminuir o risco de morte súbita, causado pela ocorrência de disritmias ventriculares graves, os doentes com risco acrescido têm atualmente indicação para colocar um dispositivo mecânico com capacidade de reconhecer e terminar estas

disritmias com a administração de estímulos elétricos. Os cardioversores- desfibrilhadores implantados (CDI) demonstraram uma redução expressiva da mortalidade nesta população 25,26. Contudo, estes dispositivos não têm efeito nos sintomas ou na remodelação cardíaca, prolongando a vida a doentes que podem manter um compromisso funcional significativo. Acresce ainda que os CDI motivam por si só uma morbilidade importante e não têm benefício na fase mais avançada da insuficiência cardíaca.

Um grupo seletivo de doentes sintomáticos, sem resposta adequada à terapêutica médica e com alargamento do intervalo QRS no eletrocardiograma, tem ainda como estratégia terapêutica a ressincronização cardíaca. Baseada na ação de um pacemaker biventricular, esta tem como objetivo coordenar a contração ventricular, minimizando os atrasos na condução inter e intraventricular e otimizando desta forma o trabalho cardíaco. Estes dispositivos também podem ter associada a função de CDI e prevenir as consequências de disritmias graves. Alguns ensaios clínicos demonstraram uma redução dos sintomas e das rehospitalizações, mas os resultados quanto à sobrevivência variaram entre o benefício e a ausência de um efeito significativo 27–29. Tal como os inibidores neurohormonais, a terapêutica de ressincronização cardíaca provou ser capaz de induzir uma redução das dimensões de ventrículo esquerdo, com alteração da sua forma e melhoria da função sistólica 30. Foi também demostrada uma correlação entre a diminuição dos sintomas e o aumento da tolerância ao esforço com esta remodelação ventricular inversa 31. Porém, estes benefícios só estão ao alcance dos doentes com critérios específicos para a implantação destes dispositivos, e mesmo nesta população cerca de 1/3 dos doentes são não respondedores, não mostrando melhoria sintomática ou alteração da geometria e função ventricular.

Para os doentes com insuficiência cardíaca terminal o transplante cardíaco tem sido uma alternativa terapêutica que prolonga a vida e leva a uma impressionante melhoria funcional, a qual permite frequentemente a retoma da atividade diária com poucas limitações. Estes doentes têm no entanto de

ter condições próprias e de suporte que lhes permita manter a adesão ao exigente programa de tratamento pós transplante. Além disso, as contraindicações são frequentes, o que limita a transplantação a um grupo muito selecionado de doentes. Por outro lado, as comorbilidades associadas à imunossupressão crónica têm um impacto negativo importante na qualidade de vidas dos doentes transplantados. A somar a tudo isto, a escassez de órgãos para doação limita a expansão da transplantação cardíaca, sendo claro que a solução futura para a insuficiência cardíaca dependerá de outras estratégias a desenvolver.

Com exceção da transplantação cardíaca, nenhuma das atuais modalidades terapêuticas têm um efeito direto no seu principal mecanismo desencadeante - a perda de tecido contráctil. Isto explica em parte que os seus benefícios não se observem em todos os doentes e que exista ainda uma elevada morbilidade e mortalidade residual nesta população. A verdade é que a mortalidade associada à insuficiência cardíaca continua elevada e, mais relevante, não se alterou nas últimas duas décadas apesar dos progressos já descritos 32,33.

A Terapia Celular ajusta-se ao modelo biomecânico da insuficiência cardíaca, proposto para substituir o modelo fisiopatológico neuroendócrino. O modelo biomecânico prevê que as terapêuticas que melhorem a função sistólica, e revertam a remodelação ventricular, vão ter a capacidade de interromper a progressão dos mecanismos de insuficiência, o que as terapêuticas farmacológicas atuais não conseguem pois atuam apenas na ativação neurohormonal e não na sua causa 34. Se com a Terapia Celular for possível a renovação do músculo cardíaco, com a introdução de novos cardiomiócitos saudáveis e capazes de recuperar a função contráctil do ventrículo esquerdo, abre-se a possibilidade de, segundo o modelo biomecânico, reverter-se de forma definitiva o processo de remodelação ventricular. Desta forma, com o sucesso da medicina regenerativa e a capacidade de restaurar o músculo cardíaco, os mecanismos viciosos da remodelação cardíaca seriam

abortados, transformando radicalmente a história natural da insuficiência cardíaca.

São três as entidades patológicas que constituem a principal causa de insuficiência cardíaca e que têm concentrado a atenção da investigação focada para a concretização de uma estratégia terapêutica baseada em células: o EAM, a cardiomiopatia isquémica crónica e a cardiomiopatia dilatada não isquémica.