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Desde cedo a investigação biomédica organizou-se em fases, sendo a etapa pré-clínica essencial para o desenvolvimento de novos tratamentos e para evolução do conhecimento sobre os sistemas fisiológicos que nos regem e sobre os mecanismos fisiopatológicos da doença.

A investigação animal garante uma maior segurança da investigação clínica, permite uma primeira exploração do proof of concept de uma determinada ação terapêutica e possibilita a avaliação de parâmetros biológicos com métodos não aplicáveis no ser humano. A análise dos dados fornecidos pela investigação animal está hoje incluída nos requisitos de aprovação de várias entidades regulatórias que lidam com investigação clínica e com a aprovação de medicamentos ou dispositivos médicos.

3.1 Translação dos estudos animais pré-clínicos

A investigação animal baseia-se na noção que os processos fisiológicos e fisiopatológicos, relevantes para a avaliação, são semelhantes aos presentes no ser humano. Este é um conceito simplista, tendo em conta a grande complexidade e variabilidade destes processos, intra e inter-espécies. A validação dos modelos animais utilizados, ou o conhecimento das suas limitações, é fundamental para garantir uma correta interpretação e extrapolação dos dados obtidos 349.

A maioria dos estudos pré-clínicos realizados utilizam animais de pequeno porte (o rato e o ratinho são os mais comuns), sobretudo por questões éticas e de exequibilidade dos estudos, sendo estes de menor custo e com menores e mais simples necessidades logísticas 350. Existem diferenças consideráveis

entre a fisiologia e anatomia do coração do roedor e o humano. Os potenciais de ação dos cardiomiócitos do rato têm uma duração curta e sem plateau, sendo que a sua frequência cardíaca é cerca de 5 vezes superior e a relação força-frequência do coração é inversa, em comparação com a humana 351. Apesar da frequência cardíaca mais elevada, o coração do rato bate cerca de 700 x 106 vezes, nos seus 2 a 3 anos de vida, e o do humano contraí 2500 x 106 vezes, ao longo da sua vida mais longa 352. Ao contrário do humano, o coração do rato possui a fisiologia do torpor, um estado em que o metabolismo pode ser rápida e drasticamente reduzido 352. Nestes evidentes contrastes, residem certamente diferenças biológicas a ter em conta na interpretação dos estudos com estes modelos e na sua extrapolação para o ser humano.

A simples discrepância na dimensão pode ser uma limitação importante na investigação de terapêuticas regenerativas. O coração do rato pesa cerca de 70 mg e o seu ventrículo esquerdo tem 1 mm de espessura, já no homem adulto o ventrículo esquerdo pesa cerca de 500 g e tem 1 cm de espessura

353. Desta forma, compreende-se que a tarefa de regenerar tecido miocárdico

viável e com significado clínico, será muito mais exigente no ser humano.

Apesar de já existirem métodos de imagem e de cateterização do roedor que permitem a avaliação do coração e da sua função, estes são distintos dos utilizados na prática clínica no ser humano. Também está limitada a utilização das técnicas terapêuticas invasivas, endovasculares ou cirúrgicas, o que impossibilita a mimetização dos procedimentos clínicos em uso.

Do balanço entre as mais-valias e as desvantagens da investigação em animais de pequenas dimensões, resulta que seja considerado como fundamental um outro patamar de investigação com animais de maior porte, que se aproximem mais do ser humano em termos evolutivos e de dimensões. Os trabalhos com roedores permitem de forma mais expedita avaliar a sobrevivência e integração das células transplantadas, assim como a exploração dos efeitos biológicos provocados e os potenciais riscos associados, como a formação de tumores. As dificuldades consistem na sensibilidade da avaliação da função cardíaca, na exequibilidade de estudo de dose-efeito, bem como na impossibilidade de comparar diferentes formas de entrega das células.

3.2 Modelo animal de grande porte para investigação em Cardiologia

A escolha do animal de grande porte mais adequado para investigação em Cardiologia depende da sua semelhança com o ser humano, da sua disponibilidade, da sua facilidade de manutenção em cativeiro e das questões éticas e de aceitação social associadas. Nos últimos anos, o porco surgiu como o animal que melhor concilia estes requisitos e é hoje o modelo mais usado em investigação ligada ao coração, substituído o cão, frequentemente utilizado há algumas décadas atrás 354.

A circulação cardíaca do porco é a que se aproxima mais da humana, na anatomia coronária, tamanho, estrutura e distribuição dos vasos, sendo a sua dominância maioritariamente direita e a circulação colateral igualmente mínima 355. O tecido de condução cardíaco também é muito semelhante e a própria razão entre o tamanho do coração e a superfície corporal são idênticas, se considerarmos os animais com cerca de 30 kg 356,357. Também

na perspetiva do seu metabolismo cardíaco o porco assemelha-se ao ser humano, dependendo sobretudo de ácidos gordos não esterificados para a produção de energia em condições de normalidade 357.

As dificuldades em trabalhar com o modelo suíno passam pela sua elevada suscetibilidade para hipertermia maligna durante a indução anestésica, algo que experienciámos durante os trabalhos que conduziram a esta tese, pelo baixo limiar disrítmico durante a manipulação das coronárias e pelo seu rápido crescimento, se existir a necessidade de um seguimento prolongado dos animais. Algumas destas limitações foram ultrapassadas com o desenvolvimento do mini-porco, cuja utilização em investigação é cada vez mais frequente 358.

Ao contrário dos animais de pequeno porte, os animais de maiores dimensões permitem a avaliação do número de células a transplantar, do volume e velocidade da sua administração e da melhor forma e local de entrega. A possibilidade de transportar as técnicas e a tecnologia de intervenção coronária para o laboratório permitem também uma aproximação à realidade clínica, impossível com animais de pequenas dimensões.