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Quando Wendy Churchill procurou verificar no âmbito da prática médica se a validade do modelo analítico que argumenta que a visão do corpo feminino no século XVII e princípios do XVIII seria uma versão menos perfeita do congénere masculino, havia uma concordância na historiografia da medicina de que os princípios teóricos deste modelo respeitavam os elementos documentais da

172 Ibid., p. VIII.

173 Marlon M. Fiori et al., “Doenças e parasitos tropicais na expansão interior do Império colonial

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época174. Mas Churchill notou que, ao menos para o universo inglês, quando era o

caso de doenças venéreas, varíola ou malária, o tratamento tinha em conta as diferenças fisiológicas entre os corpos, o que tornava imprecisa a perceção absoluta do corpo masculino adulto como elemento normativo (superior) da visão médica em princípios do século XVIII175. A análise de Churchill permite-nos perceber que,

quando se tratava de curar alguém, conseguia-se minimamente observar as diferenças corpóreas entre os sexos. Todavia, essa capacidade não modificou a visão sobre as mulheres, negros e indígenas, que continuava a dar-se com desfavor176.

É dizer em outras palavras que as doenças não atingem igualmente os diferentes segmentos sociais. Por isso, seria interessante observarmos em que medida a desigualdade pode conferir maior suscetibilidade a determinadas doenças, especialmente num contexto imperial onde a disparidade entre os diferentes níveis sociais estava estabelecida e grande parte de sua economia era baseada na mão de obra escrava.

Em situação semelhante estavam também os pobres, que nas cidades coloniais cada vez maiores do século XVIII, conheceram quão mortal era a desnutrição associada à doença177. Concomitantemente com este segmento de

vulnerabilidade sanitária e social, se observarmos a extenuante condição de trabalho forçado por longas horas, a parca alimentação, a insalubridade das habitações e condições de higiene, podemos dizer que os escravos foram vítimas privilegiadas, pois para além de melhor nutridas e alojadas, as elites podiam sair das regiões urbanas em tempos de crises epidémicas e viajar para as casas de campo178.

174 Referimo-nos ao modelo, amplamente aceite, de Thomas Laqueur conhecido por “one-sex / two-

sex theory”. Para mais, cf. o artigo de Wendy Churchill onde é feita uma referência de autores que endossam o modelo.

175 Wendy D. Churchill, “The medical practice of the sexed body: Women, men, and disease in Britain,

circa 1600–1740”, Social History of Medicine, vol. 18, n. 1, April 2005.

176 Londa Schiebinger, Nature’s Body: Gender in the Making of Modern Science, 2nd ed., New

Brunswick, Rutgers University Press, 2004.

177 Maria Antónia Lopes, Protecção social em Portugal na Idade Moderna: guia de estudo e

investigação, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p. 173; Benoît Garnot, Les Villes en France aux XVIe, XVIIe, XVIIIe siècles, p. 58.

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As doenças acometeram mais os social e economicamente menos favorecidos, assim como a mortalidade foi maior na cidade que no campo179. Nos

impérios em que a escravidão era base da economia produtiva, como foi o caso de Portugal, da França e de suas colónias na América, diversas foram as tentativas de eliminar ou diminuir a mortalidade dos negros. Durante o século XVIII, a França foi a principal fornecedora de mercadorias coloniais para a Europa e, neste contexto, Bordeaux afirmou-se como seu principal porto, tendo sido responsável por dois quintos do comércio colonial francês em fins de século180.

A preocupação económica refletida pela morte dos escravos foi elemento essencial para o lançamento de um concurso em 1778 pela Académie des Sciences,

Belles-Lettres et Arts de Bordeaux, intitulado Quels sont les meilleurs moyens de préserver les nègres qu’on transporte de l’Afrique dans les Colonies, des maladies fréquentes et si souvent funestes qu’ils éprouvent dans ce trajet? [Quais são os

melhores meios de preservar os negros que transportamos da África[,] nas Colónias, das doenças frequentes e tantas vezes fatais que eles experimentam nesta viagem?]181.

No entanto, nenhuma memória apresentada a este concurso saiu vitoriosa182.

Sobre a mesma prova, Christine Damis ressaltou a posição colonialista onde os africanos eram considerados mercadorias 183 ; uma relação já evidenciada

anteriormente, quando enfatizámos a necessidade de se perceber os elementos imperiais nos diferentes contextos do século XVIII (ver Introdução). Segundo esta autora, outra obra dedicada ao universo médico, especificamente dos negros, mas que também tem a economia enquanto objetivo primeiro, foi a conhecida

Observations sur les maladies des negres: leurs causes, leurs traitemens et les

179 Benoît Garnot, Les Villes en France aux XVIe, XVIIe, XVIIIe siècles, p. 58. 180 Hélène Lafont-Couturier et al. (eds.), Regards sur les Antilles, pp. 85–86.

181 Albert Rèche, Mille ans de médecine et de pharmacie à Bordeaux, Bordeaux, Mollat, 2012, p. 55. 182 Jeremy L. Caradonna, “Appendix F: Prize Contests Offered by Academies, Scholarly Societies, and

Agricultural Societies in Continental France from 1670 to 1794”, in The Enlightenment in Practice:

Academic Prize Contests and Intellectual Culture in France, 1670–1794, Ithaca, NY, Cornell University

Press, 2012, p. 377.

183 Christine Damis, “Le philosophe connu pour sa peau noire: Anton Wilhelm Amo”, Rue Descartes, n.

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moyens de les prevenir (1776)184. Traduzida por Antônio José Vieira de Carvalho,

cirurgião-mor do regimento da cavalaria regular na Capitania de Minas Gerais, foi publicada em Portugal por meio da Calcografia do Arco do Cego185, que na

apresentação defendeu princípios semelhantes:

[…] fazendo-lhes a vida pezada, e adiantando-lhes a morte, levaõ à sepultura o melhor dos cabedaes daquella, e das outras Colonias da America Portugueza; enterrando com elles o mesmo ouro, que os seus braços haviaõ desenterrado; e seccando assim na sua origem hum dos primeiros mananciaes das riquezas da Coroa, e do Estado186.

Podemos observar que sendo “vítimas preferenciais”, os negros fizeram parte da literatura médica essencialmente na medida em que sua sobrevivência significava a redução de gastos e consequente maior lucratividade187. A obra de Dazille foi alvo

da análise de André Nogueira, que para além de ter notado toda uma rede não exclusiva do Império português a promover a circulação de informações, discutiu contextualmente as enfermidades concebidas por Dazille e as relações estabelecidas pelo autor no que diz respeito às suas conceções e a condição dos escravos. Neste sentido, é de maior interesse para a presente investigação a distinção de Dazille

184 Jean Barthélemy Dazille, Observations sur les maladies des negres: leurs causes, leurs traitemens et

les moyens de les prévenir, Paris, Didot le jeune, 1776.

185 Cf. sobre, Diogo Ramada Curto (ed.), A Casa Literária do Arco do Cego: bicentenário, (1799-1801):

“sem livros não há instrução,” Lisboa, Biblioteca Nacional, Imprensa Nacional — Casa da Moeda,

1999; Felipe Matos, “A circulação dos livros da Tipografia do Arco do Cego em Nossa Senhora do Desterro (Florianóplis, século XVIII)”, in Andréa Doré and Antonio Cesar de Almeida Santos (eds.),

Temas setecentistas: governos e populações no Império português, Curitiba, UFPR, 2009; Christian

Fausto Moraes dos Santos et al., “Da calcografia do Arco do Cego: divulgação e uso das ciências no século XVIII”, in Christian Fausto Moraes dos Santos (ed.), História das ideias: viajantes, naturalistas e

ciências na modernidade, Maringá, Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2010.

186 Jean Barthélemy Dazille, Observações sobre as enfermidades dos negros, suas causas, seus

tratamentos, e os meios de as prevenir, Lisboa, Typographia Chalcographica, Typoplastica, e Litteraria

do Arco do Cego, 1801.

187 Alisson Eugênio analisou o aumento de obras dedicadas a saúde dos negros, tendo notado uma

maior atenção quanto à prevenção de enfermidades e a maior problematização da alta mortalidade dos negros. O autor listou como fatores impulsionadores desta maior atenção à saúde negra “o aumento da demanda por escravos, o encarecimento dos seus preços na Guerra dos Sete Anos (1756- 1763), a formação do movimento antiescravista na Inglaterra e o amadurecimento da concepção pragmática sobre a função social da ciência promovido durante a Ilustração”. Alisson Eugênio, “Ilustração, escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo”, Varia História, vol. 25, n. 41, 2009, p. 229.

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entre as doenças que seriam comuns a todos os colonos e aquelas específicas dos pretos188.

Convém observar que embora estivesse embasado num pensamento racialista189, que procurava observar os negros enquanto alvo potencial de moléstias

específicas e, como já foi dito, essencialmente na medida em que suas condições de saúde representavam maior lucratividade, não percebemos na discussão deste cirurgião traços a definir a cor de pele como algo negativo por si. Embora ligada a este contexto, a produção de Dazille não os pontuou como essencialmente inferiores ou portadores de moléstias pelo facto de não serem brancos.

Relativamente distante desta onda mercantil e pragmática, houve pesquisas que intentaram perceber, por exemplo, porquê os pretos tinham tal cor, ou em outros termos, quais as causas físicas da pele negra. O autor supostamente anónimo do opúsculo Dissertation sur la cause physique de la couleur des nègres era o médico Pierre Barrère, membro da Societé Royale des Sciences de Montpellier e correspondente da Académie des Sciences de Paris. Ele afirmou ter realizado diversos experimentos com pretos a fim de determinar de onde viria a cor de pele destes. Sua ideia para atestar se a cor deles ficava restrita à epiderme lembra-nos ensaios ocultos e certamente hoje proibidos pelos conselhos de ética.

Como já procurámos discutir em outras situações, há uma certa imprecisão historiográfica quanto à visão inferiorizante sobre o negro durante o século XVIII, sendo que advogamos que estes eram tidos como subespécies, hominídeos, mas não Homo sapiens190. Se assim for, seria compreensível que o naturalista Pierre

Barrère não visse como problemáticos os experimentos em que a epiderme era

188 André Nogueira, “Universos coloniais e “enfermidades dos negros” pelos cirurgiões régios Dazille e

Vieira de Carvalho”, História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 19, n. Suplemento 1, 2012.

189 Uma vez que não há “racismo” no séculoo XVIII, preferimos a utilização deste termo a fim de

apresentar anterioridade às correntes racistas e racistas científicas que existiram ao longo do século XIX, posto que há diferenças profundas no pensamento acerca da “raça” nos séculos XVIII e subsequente. Convém observar que a concepção geral oitocentista do negro enquanto um ser de raça inferior pontuava este como um ser humano menos perfeito, enquanto que muitas das concepções de raça no século XVIII pensavam o negro como que numa espécie inferior, um ser distante, ainda que em certa medida próximo ao homem. Para mais, cf. artigo na nota seguinte.

190 Christian Fausto Moraes dos Santos and Rafael Dias da Silva Campos, “Apontamentos acerca da

Cadeia do Ser e o lugar dos negros na filosofia natural na Europa setecentista”, História, Ciências,

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raspada e macerada longamente em água para se saber qual a cor sob sua pele191.

Se nossa visão estiver mais próxima daquilo que foi a compreensão geral dos filósofos naturais de setecentos, experimentos como o acima citado estariam conectados com uma ideia de superioridade branca onde massacrar a pele de um negro não seria o mesmo que mutilar um ser humano.

De facto, o próprio Barrère discutiu o problema no final de seu breve exame. Ele contraria a opinião geral de que o mulato era o híbrido entre o preto e o branco (e, por isso, não geraria descendentes férteis) ao analisar a ideia, corrente na altura, que associava os miscigenados às mulas192. Esta obra permite uma análise mais

pormenorizada de sua conceção de geração (reprodução, nos termos atuais) e história natural. É estranho que sua análise possa em diversos momentos apresentar-se como uma exceção que não via os negros com desfavor: para ele a cor preta não seria provocada internamente, mas apenas apareceria no tecido externo. Seria, portanto, o tipo de humor que provocava a pigmentação da pele. Isto porque a bile se separaria do fígado e também dos vasos quase impercetíveis da epiderme e as partes mais grosseiras dessa bile, por sua permanência no tecido, dariam uma cor enegrecida, enquanto que as partes mais finas seriam exaladas pelos poros da pele (razão do mau cheiro, diz ele). Seu entendimento parte de uma visão onde “as partes pré-existentes se desenvolveriam, ampliariam e floresceriam” (nasceriam). Assim, a dar preponderância à teoria da geração, o autor afirmou que as diferentes degenerações ocorreriam devido à desarmonia do fluído seminal com o germe (óvulo), e que os “monstros” seriam uma prova destas desarmonias193.

De modo semelhante, outros tratados desenvolveram análises “médicas” acerca da tonalidade da pele preta. No verbete Peau, há explicações acerca das doenças de pele ou aquelas que acabaram por afetar a sua aparência corrente, mas um subitem denominado Peau des negres chama à vista. De acordo a Encyclopédie,

191 Pierre Barrère, Dissertation sur la cause physique de la couleur des nègres, de la qualité de leurs

cheveux, et de la dégénération de l’un et de l’autre, Paris, chez Pierre-Guillaume Simon, 1741, p. 4.

192 Ibid., p. 11.

193 Sobre as teorias da geração, cf. Clara Pinto Correia, O ovário de Eva: ovo e esperma e preformação,

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os anatomistas teriam procurado a causa da pele “negra dos negros”194. Com

divergências sobre o tema, alguns defendiam uma relação direta entre o sangue, supostamente mais escuro que o dos brancos, e a cor da epiderme. Outros ainda desenvolveram explicações em que a bile era o agente causador da coloração da pele, tal como foi o caso do já citado Pierre Barrère. E para além das reflexões relacionadas com a área médica, o referido subitem citou contribuições de filósofos, mais precisamente de Buffon. O pensamento deste a respeito da inferioridade/degenerescência dos negros é bastante conhecido, sendo para ele o calor e o clima os principais agentes dessa coloração195. O texto de Buffon, que

inclusivamente serviu de “inspiração” ao artigo da Encyclopédie , critica as conceções de Barrère, uma vez que para o filósofo natural francês se a causa da pigmentação estivesse na bile ou no sangue, dever-se-ia questionar porquê a bile ou o sangue dos negros eram daquela cor, observando então que ambas explicações apenas afastavam a questão, ao invés de respondê-la196.

No entanto, se a escrita de Barrère no que diz respeito à degeneração (aqui entendida como o que deixa de ser puro) podia ser encarada, à primeira vista, como desprovida de conotações racialistas, porque é que a sua pesquisa se dedicava a perceber a causa física da cor dos pretos e não a “dos homens”? Em outras palavras, não é porque Barrère não defendeu abertamente a inferioridade negra (como fez Buffon) que a sua conceção pode ser automaticamente identificada como uma face da visão igualitária entre os homens. Parece-nos que tal conceito lato sensus de humanidade chegou a ser percebido por uns poucos homens oriundos de camadas abastadas, que não partilhavam dos estereótipos de perfeição preconizados pelo saber ilustrado setecentista (europeu, masculino e branco).

194 Fortuné Barthélemy de Félice and Denis Diderot, Encyclopedie ou dictionnaire universel raisonne

des connoissances humaines mis en ordre par M. De Felice, vol. 32, 1774, p. 574.

195 Georges Louis Leclerc Buffon Conde de, “Sur la couleur des Nègres”, in Histoire naturelle générale

et particulière : avec la description du Cabinet du Roy, vol. Suplemento, Tomo 4, Paris, De l’Imprimerie

Royale, 1777.

196 Georges Louis Leclerc Buffon Conde de, “Variétés dans l’espèce humaine”, in Histoire naturelle

générale et particulière : avec la description du Cabinet du Roy, vol. 3, Paris, De l’Imprimerie Royale,

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O mais conhecido dos estudantes luso-brasileiros da Faculdade de Medicina de Montpellier, Manoel Arruda da Câmara, foi autor de uma tese que, acima de tudo, procurou discutir as relações entre a Química e a Medicina modernas. Mas ao argumentar sobre a causa da coloração da pele, não diferenciou negros, mulatos, brancos, ou quaisquer outros. Seu trabalho indagou questões sobre o processo de manutenção do calor corpóreo e as causas dos diferentes tipos de cores de pele nos homens e não apenas nos negros197. Portanto, a análise de Arruda da Câmara difere

daquela proposta por Barrère, posto que este havia investigado a pele negra, numa conceção que a via apenas com estranheza, enquanto que o luso-brasileiro apontou suas investigações para o geral da humanidade.

É fácil entender que a cor natural do homem não seja a branca, como afirmam alguns autores europeus, conduzidos pelo amor a sua pátria, entre os quais enumeram-se Buffon & Bomar; desde que a pátria natural dos homens está entre os trópicos, como comprovou excelentemente Lineu (Amenitates Academicae, t.6), na dissertação sobre frutos comestíveis, conclui-se que deve existir uma cor natural entre os trópicos, que não é a branca198.

Arruda da Câmara discordava da opinião de autores que eram referência na altura, como Buffon, e terminou sua tese a afirmar, de forma veemente, que a cor natural dos homens não era a branca: “sequitur quod color naturalis existere debet intrà tropicos, ubi naturalis non est color albus” [segue-se que a cor natural da existência deve ser mantida dentro dos trópicos, onde não há cor branca natural]. Para este natural da América portuguesa, os europeus deixavam-se levar pelo “amor a sua pátria” e este sentimento era responsável por compreensões erróneas, como a que a Europa possuía melhores condições ambientais ou que era a região originária do homem (e de sua cor)199.

197 Manuel Arruda da Câmara, Disquisitiones quædam physiologico-chemicæ de influentia oxigenii in

œconomia animali, principue in calore et colore hominum, Monspelii [Montpellier], Apud Joannem

Martel, 1791.

198 Ibid., Apud Argus Vasconcelos de Almeida and Francisco de Oliveira Magalhães, “As

“Disquisitiones” do naturalista Arruda da Câmara (1752-1811) e as relações entre a Química e a Fisiologia no final do Século das Luzes”, Química Nova, vol. 20, n. 4, 1997. Griffos nossos.

199 Maria Rachel Fróes da Fonseca observa outro elemento desta perspectiva de Arruda Camara,

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Assim, se tomarmos discussões encetadas ao longo do Século das Luzes, tais como a da coloração da pele negra (sendo Arruda da Câmara uma exceção), podemos perceber que ainda mais árdua foi a disparidade entre as condições de escravos e não escravos. A perspetiva de que os negros seriam “naturalmente” inferiores (fosse no sentido de que eram espécies menos perfeitas ou de que eram humanos degenerados devido às exposições adversas ao clima 200 ) foi

complementada pela condição dos negros enquanto socialmente inferiores, fatores que conferiram a estes um pior acesso à saúde; numa assimetria que apenas foi amainada devido os interesses mercantis em garantir a sobrevivência da mão de obra escrava.

Além de escravos, mulheres e pobres, as sociedades afastadas dos centros urbanos também experimentaram um menor acesso aos serviços de saúde oficiais. O alto índice de mortalidade infantil era vivenciado nas vilas e povoados do interior de modo ainda mais intenso que nas regiões mais povoadas. Sebastião Leite de Faria e Souza referiu-se apenas ao contexto do Reino, mas esta realidade também se verificava no interior da América portuguesa, onde as populações que habitavam regiões distantes tinham pouco acesso não só a boticários, como também a cirurgiões e médicos201.

Esta carência não redundou apenas numa alta mortalidade, como também reforçou a ideia generalizada que as populações rurais seriam mais afeitas às

noticias más útiles y la medicina en México y Brazil coloniales: José Ignácio Bartolache y Manuel Arruda da Câmara”, Montalbán, vol. 36, 2003, p. 40. Para uma discussão acerca das diversas leituras luso-brasileiras que contestaram as ideias buffonianas de inferioridade da América, cf. Maria Margaret Lopes, “‘Raras petrificações’: registros e considerações sobre os fósseis na América Portuguesa”, in Actas do Congresso Internacional Atlântico do Antigo Regime: poderes e sociedade, Lisboa, 2005.

200 Sobre este tema e a ideia de uma humanidade originalmente branca, cf. Paola Martínez Pestana,

“«Des hommes noirs et non pas des nègres»: Piel y raza en el siglo XVIII”, Asclepio, vol. 63, n. 1, June 2011.

201 Obras como a citada Governo de Mineiros mui necessario para os que vivem distantes de

professores seis, oito, dez, e mais legoas, padecendo por esta cauza os seus domesticos e escravos queixas, que pela dilaçam dos remedios se fazem incuraveis, e as mais das vezes mortaes

exemplificam bem a carência de agentes de cura no interior. Em pesquisa recente sobre o universo médico em Mariana, Minas Gerais, Ricardo Coelho encontrou grande soma de cirurgiões a curar na região; fato que reforça essa diferença entre a assistência de saúde no campo e na cidade. Ricardo