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Para além das várias opções teóricas, os cuidados médicos no século XVIII eram, em muito, devedores das circunstâncias locais e/ou imperiais em que estavam inseridos, razão pela qual importa observar que os saberes médicos não estavam e não podem ser analisados de modo descontextualizado do ambiente em que foram produzidos. Por exemplos, as cidades portuárias e as com maior concentração populacional apresentavam cuidados clínicos e epidémicos mais acurados que as demais323; os impérios em frequente estado de guerra dedicaram uma atenção

considerável a teorias e práticas cirúrgicas 324 ; as zonas com economias

essencialmente escravistas desenvolveram teorias e terapêuticas dedicadas à saúde explicitamente voltada para a manutenção desta mão-de-obra325. De modo

semelhante, as universidades não estavam deslocadas de seus contextos sócio- político-culturais e geográficos. Esta interconexão se refletia nas preocupações dos membros das diferentes faculdades e na formação que passavam para seus alunos.

323 Importa notar a atenção de José Pinto de Azeredo para com as zonas portuárias em Ensaios sobre

algumas enfermidades de Angola [1799], Lisboa, Colibri, 2013. Para uma análise sobre a febre

amarela, inclusivamente com as suas implicações sociopolíticas e económicas em zonas portuárias, cf. Thomas Apel, Feverish bodies, enlightened minds: science and the yellow fever controversy in the Early

American Republic, Tese de Doutoramento, Washington DC, Georgetown University, 2012; Katerina

Konstantinidou et al., “Venetian Rule and Control of Plague Epidemics on the Ionian Islands during 17th and 18th Centuries”, Emerging Infectious Diseases, vol. 15, n. 1, 2009.

324 David Boyd Haycock and Sally Archer (eds.), Health and Medicine at Sea, 1700-1900, Woodbridge,

Boydell Press, 2009, chaps. 1–3; Laurence Brockliss et al., “The naval surgeon during the French Wars”, in Nelson’s surgeon: William Beatty, naval medicine, and the battle of Trafalgar, Oxford, Oxford University Press, 2005; Antonio Álvarez de Morales, La ilustración y la reforma de la

Universidad en la España del siglo XVIII, 3rd ed., Madrid, Ediciones Pegaso, 1985, pp. 224–225.

325 Dr. Collins, Practical rules for the management and medical treatment of negro slaves, in the sugar

colonies, London, Printed by J. Barfield, Wardour Street, printer to His Royal Highness the Prince of

Wales, for Vernor and Hood, in the Poultry, 1803; R. Shannon, Practical observations on the operation

and effects of certain medicines, in the prevention and cure of diseases to which Europeans are subject in hot climates, and in these kingdoms; particularly those of the liver, flux, and yellow fever: applicable also to the prevention and cure of the scurvy. Written in a familiar style. Recommended to the perusal of every person going to sea, and residing abroad. To which are added, plain directions for private use in the absence of a Physician; and Observations on the diseases and diet of Negroes, London, printed

for the author; and sold by Vernor and Hood, Birchin Lane, Cornhill, 1794; Jean Barthélemy Dazille,

Observações sobre as enfermidades dos negros, suas causas, seus tratamentos, e os meios de as prevenir; Richard B. Sheridan, Doctors and slaves: a medical and demographic history of slavery in the British West Indies, 1680-1834, Cambridge, Cambridge University Press, 1985; Alisson Eugênio,

“Ilustração, escravidão e as condições de saúde dos escravos no Novo Mundo”; André Nogueira, “Universos coloniais e “enfermidades dos negros” pelos cirurgiões régios Dazille e Vieira de Carvalho”; Peter McCandless, Slavery, Disease, and Suffering in the Southern Lowcountry, Cambridge, Cambridge University Press, 2011.

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Montpellier possuía um dos portos transoceânicos mais importantes para o império francês, garantindo-lhe uma economia pujante e permitindo assim a formação de uma elite significativamente enriquecida, bem como a ascensão social destes grandes locais. Em 1706 foi fundada uma sociedade de ciências em Montpellier, a Société Royale des Sciences, que consagrava os valores de uma elite local virada ao comércio transoceânico que valorizava o colecionismo e a ostentação, e que passava a abrir mão das coleções antiquárias e seus símbolos humanistas. Com a mudança de orientação, foram privilegiados os valores associados a uma ciência útil e classificatória, apresentados para a França e para a Europa como representativos de sua nascente cultura científica e artística326,

transformando, pois, os antigos gabinetes de curiosidade em organizados salões de Filosofia Natural327.

Ambas compartilhavam a condição de serem, desde há muito, cidades universitárias. No entanto, a universidade lusa era o único centro de formação de seu tipo em Portugal. Este fator condicionou a composição de seus professores e as exigências e expectativas de seus alunos, como se verá, não apenas por restringir as possibilidades de “contratação”, praticamente limitando o ingresso de professores na Universidade aos próprios alumni, mas também por não permitir aos estudantes outra possibilidade de escolha dentro do império, chegando inclusivamente a interferir mais vigorosamente na formulação dos currículos académicos, o que lhe deu contornos diferentes das universidades em outros impérios, nomeadamente na existência duma menor dificuldade para se implementarem reformas, se se comparar com o caso francês, espanhol, ou inglês.

326 Flore César, “Territoire et pratique de collections: Montpellier au XVIIIe siècle”, Liame, n. 26, 2016. 327 Importa percerber este espírito colecionista e de curiosidade ganhou uma orientação nova e

bastante abrangente. A História e a Filosofia Natural, embora fossem complementares não eram sinónimas. A primeira detinha-se na observação, classificação e descrição do mundo natural e seus seres, ou seja, dos reinos mineral, vegetal e animal. Já com a Filosofia Natural, procurava-se analisar as relações causais entre os seres, investigar funções do corpo, desenvolver leis matemáticas, debater a origem da vida ou perceber possíveis usos comerciais dos seres naturais, como por exemplo o desenvolvimento de estudos de viabilidade económica, especialmente relacionados com a mineralogia e a agricultura. Para mais, cf. Martin J. S. Rudwick, Bursting the Limits of Time: The

Reconstruction of Geohistory in the Age of Revolution, Chicago, University of Chicago Press, 2005, pp.

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A universidade era então essencial para a representação do poder régio, enquanto protetor do saber ali produzido e do bem público, mas também era fundamental para a concretização de políticas a longo prazo. O monarca jurava proteger a instituição, garantindo os recursos para a sua sobrevivência, mas em contrapartida detinha prerrogativas importantes, tais como o poder de tomar decisões finais relacionadas com a gestão universitária, o que é essencial para entender as diversas transformações pelas quais a universidade passou328.

Como consequência desta relação direta com o monarca, Coimbra foi responsável por uma uniformização ideológica-científica-pedagógica nos espaços imperais (tanto entre as diferentes regiões de Portugal, quanto as dos territórios d’além-mar); identidades que se aproximaram especialmente devido a formação conjunta dos súditos, mas também pelo convívio continuado e pelos interesses corporativos e individuais em se alcançar postos no serviço régio. Não por acaso, Fernando Taveira da Fonseca assinalou as possibilidades de se perceber a universidade lusa simultaneamente como um pólo atrativo e disseminador de pessoas e ideias, mas também enquanto um instrumento de poder político e eclesiástico, manifesto na formação e no enraizamento, “conformação” segundo o autor, das elites governantes e culturais329.

Cientes desta fonte de poderes, diferentes monarcas procuraram ao longo dos anos dominar as instâncias de poder da instituição330, colocando-a efetivamente

sob a batuta régia. Este processo, perceber-se, por exemplo, na escolha dos reitores e também dos professores. Seguindo mais uma vez a análise de Fonseca, nesta história institucional de longa duração, podemos notar que, se num primeiro momento, o reitor era investido no cargo antes da confirmação régia, com o passar dos anos (do século XVI para o XVIII), a universidade foi vendo esta autonomia

328 Fernando Taveira da Fonseca, “The social and cultural roles of the University of Coimbra (1537-

1820). Some considerations”, e-Journal of Portuguese History, vol. 5, n. 1, 2007, p. 14.

329 Ibid., p. 4.

330 Uma interessante introdução à análise das universidades enquanto instrumento de ação do poder

régio, para o caso das universidades espanholas, cf. Manuel Martínez Neira and Enrique Villalba Pérez, “Control regio y visitas universitarias: la reforma de la Universidad de Alcalá”, in Doctores y

escolares: II Congreso internacional de historia de las Universidades Hispánicas, vol. 2, Valencia,

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dissipada, sendo então obrigada a encaminhar listas ao rei para que a partir delas fosse escolhido a quem seria dada a graça real. Já no século XVIII, a instituição deixou de sugerir esta lista e vários reitores foram nomeados diretamente pelo rei Dom João V331, de forma totalmente autónoma à universidade332. Também no que

toca à eleição dos professores catedráticos e dos lentes, o processo não foi muito diferente, tendo igualmente havido uma marcha centralizadora: da designação pelos próprios alunos passou-se para a seleção por um corpo administrativo com decisão final da Mesa de Consciência e Ordens333.

Este processo centralizador, todavia, não ocorreu apenas em Portugal, sendo igualmente percebido em Espanha, França, Inglaterra e diversos outros contextos334.

Uma relação mutuamente benéfica para as universidades e para o Estado, com aquelas a formar indivíduos aptos a integrar o corpo político-administrativo atuante nos espaços imperiais; e a receber benefícios e proteções para executar sua função científico-pedagógica335; e com a clara diminuição do poder religioso nos bancos

académicos e, principalmente, uma intervenção cada vez maior do Estado.

As universidades francesas sofreram interferências similares. Também ali houve um processo de controlo por parte dos monarcas. Em Paris336, mas não só337,

a universidade deixou de ser uma instituição corporativa e autônoma, para passar a ser um estabelecimento controlado pelo Estado. É claro que para analisar estas mudanças, também devemos levar em consideração o processo de formação territorial de alguns destes impérios, pois foi geral e marcante a perceção de que

331 Fernando Taveira da Fonseca, “The social and cultural roles of the University of Coimbra”, pp. 15–

16.

332 J. J. Carvalhão Santos, “Rotina e renovação na Faculdade de Medicina: as oposições de 1739”, in

Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade,” vol.

1, Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso, 1991, p. 135.

333 Fernando Taveira da Fonseca, “The social and cultural roles of the University of Coimbra”, p. 16. 334 José Luis Peset, “Enlightenment and Renovation in the Spanish University”, in Mordechai Feingold

(ed.), Universities and science in the early modern period, Dordrecht, Springer, 2006, (Archimedes. New Studies in the History and Philosophy of Science and Technology); Laurence Brockliss, “Corporatisme, Église et État: l’Université de Paris, c. 1200-1968”, Histoire de l’éducation, vol. 77, n. 1, 1998; Vivian Green, “The University and the Nation”, in John Prest (ed.), The Illustrated History of

Oxford University, Oxford, Oxford University Press, 1993.

335 Vivian Green, “The University and the Nation”, pp. 40–41. 336 Laurence Brockliss, “Corporatisme, Église et État”, pp. 41–43.

337 Emmanuelle Picard, “Recovering the History of the French University”, Studium: Revue d’Histoire

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seria necessário centralizar o poder justamente nas províncias recém- conquistadas338.

Em Inglaterra, a Universidade de Oxford viu no princípio da era moderna que o poder de ação da Coroa e do Parlamento não só aumentara como de facto começou a ser utilizado, passando a haver uma interferência constante do Estado nas eleições e nos assuntos académicos. De modo geral, o que se viu foi uma estratégia de controle do poder muito semelhante ao que ocorreu em Portugal, com a redução da capacidade de decisão na esfera de deliberação universitária339. Pode-

se perceber que o poder do Estado ficou ainda maior com a Reforma Anglicana e foi a partir de então que a intervenção régia e parlamentar efetivamente se fez sentir nas instituições universitárias340.

Outro elemento que corrobora nesta direcção são os diferentes estatutos que a Universidade de Coimbra produziu ao longo dos séculos. Da leitura dos Regimento de 1653 depreende-se uma singular autoridade da Igreja e uma menor capacidade de intervenção do Estado na instituição. Não queremos dizer que esta fosse inexistente, mas é notório que a reforma de 1772 procurou fazer valer a assunção do poder régio sobre o religioso. Em fins do século XVIII, a religião continuava a ser um dos pilares sociais, mas já não era um corpo quase autónomo no seio da universidade.

A reforma pombalina procurou efetivamente colocar a Universidade a serviço do Estado341. A observar comparativamente ambos estatutos, se os de 1653

lembram o regimento de uma instituição religiosa no que toca a definir o culto

338 Sobre este processo de centralização universitária na região citada, cf. Bernard Lavillat,

“L’Université de Besançon au XVIIIe Siècle (1691-1793)”, in Maurice Gresset and François Lassus (eds.), Institutions et vie universitaires dans l’Europe d’hier et d’aujourd’hui (Actes du colloque de

l’Association interuniversitaire de l’Est – Besançon, 27-28 septembre 1991), Besançon, Université de

Besançon, 1992, p. 61.

339 John Roach, “The Cambridge Colleges, Seven Hundred Years of Growth”, Paedagogica Europaea,

vol. 3, 1967, p. 241.

340 Vivian Green, “The University and the Nation”, pp. 44–45. 341 Flávio Rey de Carvalho, Um iluminismo português?, p. 53.

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divino, com visitações, enterramentos e procissões342, pode-se notar que o de 1772

apresenta uma maior definição dos curricula disciplinares, das disciplinas a serem ministradas e do ano letivo em que seriam dadas as aulas, das bibliografias e autores a serem lidos ou utilizados nos compêndios, uma melhor categorização dos atos e atividades escolares, como graduação e licença por exemplo, e a reorientação da natureza das cadeiras, como é o caso mais conhecido da Filosofia Natural.

A própria organização do curso teológico mudou343. Reflexo dos novos

tempos, a quantidade de alunos inscritos na faculdade teológica, na esperança de alcançar algum tipo de graça sacerdotal, reduziu-se344. E mesmo o curso jurídico,

essencial para os postos mais cobiçados no exercício da função pública, viu sua “supremacia” abalada pelo conjunto dos cursos das ciências naturais345.

Esse processo de secularização ocorrido em Coimbra não se deu de forma isolada, sendo possível perceber-se em outros locais e contextos uma significativa diminuição da autoridade religiosa na administração e controle das universidades. Em Espanha, a proposta de Pablo de Olavide para uma nova Universidade de Sevilha advogava uma secularização radical: a expulsão dos regulares dos estabelecimentos de ensino nacionais346. Em França, pode-se igualmente notar a interferência do

Estado, particularmente com o Édito de 1707, que sabidamente reduzia a capacidade de ação do Clero347. Para o caso das universidades inglesas, este

processo de secularização aconteceu de modo um tanto diverso, pois a função do rei

342 Estatutos da Uniuersidade de Coimbra: confirmados por el Rey nosso Snor Dom Ioao o 4o em o

anno de 1653, Coimbra, na officina de Thome Carvalho, 1654; Junta de Providência Literária, Estatutos da Universidade de Coimbra.

343 Para uma discussão específica dos debates entorno de uma reforma em teologia, cf. Ana Cristina

Araújo, “Ilustración y reforma de la teología en Portugal en el siglo XVIII”, Cuadernos Dieciochistas, vol. 2, 2001.

344 Fernando Taveira da Fonseca, “The social and cultural roles of the University of Coimbra”, p. 9. 345 Ibid., p. 10.

346 Fernando Liendo Tagle, Pablo de Olavide y la nueva planta de los estudios, Madrid, Universidad

Carlos III de Madrid, 2016, (Historia de las Universidades, 38), p. 72; Juan Luis Castellano, “Las nuevas ideas pedagógicas y la reforma de Olavide”, Chronica Nova, vol. 12, 1981; Francisco Aguilar Piñal, “La reforma universitaria de Olavide”, Cuadernos Dieciochistas, n. 4, 2003.

347 Louis XIV (1638 – 1715), Edit du Roy, portant Reglement pour l’étude & l’exercice de la Medecine:

Donné à Marly, au mois de Mars 1707. Registré en Parlement le 18 Mars 1707, Paris, chez la veuve

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enquanto chefe da Igreja Anglicana lhe facilitou a interferência nas universidades348.

No decurso de uma ampla e turbulenta disputa político-religiosa (que chegou inclusivamente a ter alunos e professores pouco dispostos a acatar as novas regras estabelecidas, ou seja, recusando-se a realizar o controverso juramento de lealdade à coroa e à Igreja Anglicana349), a referida secularização se consolidou em meio à

agitada ascensão de William III e Mary II, juntamente com a Declaração de Direitos de 1689, pois embora essa norma limitasse politicamente a coroa, o facto é que ela restringia ainda mais a capacidade de interferência do poder religioso350.

Portanto, não seria errado apontar que a principal diferença entre a Universidade de Coimbra e suas congéneres europeias acabou por ser a sua condição de único centro de formação em todo o império351. O que permitiu que ela

formasse e uniformizasse mais eficazmente suas elites dominantes, que ocupavam os mais diversos postos no aparelho político e institucional do Estado, desde embaixadores e administradores coloniais, passando por viajantes, professores régios e diretores de hospitais e de jardins botânicos. Uma exclusividade demasiado atrativa para passar desapercebida aos centros decisórios do Estado. Assim, o facto de Coimbra ser a única universidade do império condicionou sua relação com o poder régio e terminou por eliminar diversos filtros que se fizeram presentes em outros locais, elevando a importância e o impacto desta universidade para o próprio mundo português.

Não é por acaso que noutros contextos europeus, se registam maiores dificuldades para implementar mudanças. Para o caso inglês, não houve uma disposição assertiva para a realização de mudanças na estrutura das universidades, de modo que podemos perceber que o interesse era reduzido, ao menos para uma parcela da elite aristocrática. Com efeito, foram justamente a indisposição por

348 C. John Sommerville, The Secularization of Early Modern England: From Religious Culture to

Religious Faith, Oxford, Oxford University Press, 1992, pp. 158–159.

349 John Gascoigne, Cambridge in the age of the Enlightenment: science, religion, and politics from the

restoration to the French Revolution, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p. 73.

350 C. John Sommerville, The Secularization of Early Modern England, p. 15.

351 Morales notou a singularidade lusa, quando analisou comparativamente Coimbra e os centros

espanhóis. Para mais, cf. A. Alvarez de Morales, “La reforma de la enseñanza en España y Portugal en la Ilustración: semejanzas y diferencias”, in Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do

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mudanças e a tentativa de manutenção dum controle senhorial privativo que levaram as universidades inglesas a receberem censuras severas. Foi o caso de Adam Smith em relação a Oxford352, quando propôs a execução de um ensino que

efetivamente utilizasse o mérito como critério, em contraposição às práticas aristocráticas até então seguidas, que revelavam as dificuldades que a instituição tinha para se adequar institucionalmente às mudanças ocorridas na transição de setecentos para oitocentos. Assim, a Universidade de Oxford adentra o século XIX sem reformas efetivas, permanecendo genericamente uma instituição protestante e conservadora, regulada por estatutos do século XVII353.

Mas estes entraves à implementação de mudanças no complexo sistema educacional inglês, importa não omitir, também ocorreram porque qualquer alteração em Oxford e nos seus Colleges implicaria na necessidade de renovação em Cambridge e nos seus respetivos órgãos constituintes (e vice-versa). Sendo que, também neste aspecto, a unicidade da formação em Portugal facilitou as possibilidades de interferência do Estado e a aplicação de reformas na universidade, especialmente se compararmos Coimbra com as universidades de França, Espanha e Inglaterra.

Adicionalmente às questões académicas, importa perceber que diversas faculdades europeias ofereciam um acesso facilitado aos títulos necessários para a obtenção dos graus académicos. Em especial, os preços eram significativamente mais acessíveis que as demais, razão pela qual elas acabavam por serem preferidas às demais: em Espanha, o argumento de que a jesuítica Universidade de Gandía ofuscou sua congénere valenciana oferece baixa margem para erro. Isso explica-se porque diversos alunos da Universidade de Valência optavam por doutorarem-se no exíguo centro gandiense devido os baixo custo e a facilidade para a obtenção do

352 Adam Smith, An inquiry into the nature and causes of the Wealth of Nations, vol. 3, Edinburgh,

Stirling and Slade, 1819, pp. 168–170. Por óbvio, as admoestações Smithianas foram muito seguidas posteriormente. Para mais, cf. Vivian Green, “The University and the Nation”, pp. 55–60.

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grau académico354. Uma situação tão patente que as missivas entre Juan Bautista

Ferrer e Gregorio Mayáns y Siscar chegam a colocar a questão de modo estranhamente franco, como se pode perceber pelo que segue: “[…] a primeira [carta de Campos] me dizia que por causa de muitos contratempos em sua casa, estava forçado a não retornar este ano a Valência e [obrigado] graduar-se este mês em Gandía”355. Esta realidade é ainda mais clara em solo francês, onde, apesar do

regulamento régio exigir uma formação de pelo menos três anos para a graduação