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Reformas no ensino universitário e as suas relações com as Faculdades de Medicina

A Faculdade de Medicina de Coimbra no contexto da reforma

Já salientamos que Coimbra, enquanto centro formador por excelência de todo o império português, possuía uma condição muito diferente de Montpellier e de outras faculdades de Medicina em França, Espanha e Reino Unido, pois estas não tinham a atenção, a responsabilidade ou mesmo os privilégios da exclusividade

414 Estas passagens estão transcritas no próprio opúsculo de Constâncio, In: Francisco Solano

Constâncio, An appeal to the gentlemen studying medicine at the University of Edinburgh, p. 20.

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educacional. Também sugerimos que este processo de reestruturação das universidades europeias só foi possível devido à influência das Luzes, pois com a inserção cada vez maior das ideias iluministas nas respetivas sociedades imperiais, as universidades foram defrontadas com uma realidade que contradizia as expectativas dos grupos que então propalavam a defesa de uma racionalidade Ilustrada. É verdade que estes confrontos ainda são por vezes analisados sob uma ótica dicotómica de trevas contra luzes, de fé contra razão. Mas, como bem ponderou Francisco Falcon na ocasião do Congresso História da Universidade416, importa

analisar a retórica dos autores de então, não considerando-as como verdade absoluta, bem como observando as vicissitudes destas mudanças, especialmente quanto ao tempo, posto que tais reformas e transformações não ocorreram à velocidade descrita por eles.

Assim, a retomar a discussão, parece estar claro não ter sido ao acaso que o elemento conservador das universidades e de seus membros passou a ser efetivamente contestado, como acabamos de discutir. Mas, se é possível assinalar que esta era uma postura influenciada pelas Luzes, importa destacar que ela não se prendeu apenas ao mundo académico, pois foi parte de um amplo processo de reorganização político-administrativa, que inclusivamente contou com o desenvolvimento de diferentes estratégias, como o reconhecimento dos territórios ultramarinos por meio das viagens filosóficas ou a implementação de museus ou as academias e sociedades científicas.

No entanto, se faz necessário enfatizar que este movimento de reorganização não objetivava a remodelação do Estado, mas sim de aspetos da administração pública. Foi por essa razão que muitas críticas propunham reformas no ensino, mas de modo algum relacionavam estas transformações educacionais com elementos mais diretos das discussões políticas. Dito de outra forma, o conjunto de ideias Ilustradas influiu profundamente na história das universidades europeias, nomeadamente na definição de decisões a serem tomadas nas faculdades e em

416 Francisco José Calazans Falcon, “Luzes e revolução na colónia: a importância da Universidade da

pós-reforma pombalina”, in Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do Congresso

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relação à introdução de novas teorias e conceções nos cursos académicos e foi, especialmente na segunda metade do século XVIII, o propulsor para a defesa de ideias reformistas no universo académico, apesar de não ter se relacionado, em Portugal, com as vertentes mais radicais da Ilustração (como a mudança de sistema político, por exemplo)417.

Assim, estas reformas evidenciam a existência de uma “margem” de transformação que o Estado português e suas grandes casas senhoriais, entre elas, se permitiam apoiar. Eram mudanças que, de modo algum, sugeriam a transformação do sistema político, mas apenas o que entendiam como aperfeiçoamento do Estado. Elementos suficientes para nos permitir perceber que o discurso dos mais variados ilustrados acerca das condições de atraso do Estado português era parte de uma crítica frontal às compreensões de grupos estabelecidos, mas não implicava a reconstrução das estruturas político-sociais.

As reformas estavam, e não apenas para o caso português, enquadradas neste conjunto renovador do próprio aparato estatal e tinham como premissa inquebrantável a manutenção da ordem reinol e colonial. Nos impérios ultramarinos foi possível perceber a existência de tentativas de aperfeiçoamento das próprias relações coloniais. Em sentido genérico, nota-se tais mudanças no caso espanhol, por exemplo, por meio das Reformas Borbónicas e a sua (relativa) descentralização do Estado imperial, sendo possível perceber, para citarmos um dos elementos específicos, a ocorrência de tentativas de aprimoramento nas universidades que efetivamente receberam alunos destas regiões ou que se encontravam nestes domínios, nomeadamente através de propostas de reforma do ensino em universidades da América, mas também pela formação de “centros intelectuais” coloniais, as sociedades económicas e patrióticas formadas na América418.

417 Luiz Carlos Villalta, Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura, pp. 76, 115.

418 Mauricio Nieto Olarte, Remedios para el imperio: historia natural y la apropiación del Nuevo

Mundo, 2nd ed., Bogotá, Ediciones Uniandes, 2006, pp. 31–32, 219–227; Regina Grafe and Alejandra

Irigoin, “A stakeholder empire: the political economy of Spanish imperial rule in America”, The

Economic History Review, vol. 65, n. 2, 2012; Matthew James Crawford, Empire’s experts: the politics of knowledge in Spain’s royal monopoly of quina (1751-1808), Tese de Doutoramento, San Diego,

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Portanto, quando se fala em reforma da universidade necessariamente se está a discutir a reestruturação própria do Estado imperial e da composição do seu aparelho institucional e administrativo, e até mesmo do lugar social que determinados súbditos passariam a ocupar nessas estruturas, mas de modo algum se enquadrava enquanto possível a mudança da estrutura reinol e colonial. Procuramos enfatizar esta relação, especialmente porque a participação cada vez maior de portugueses oriundos da América neste processo de reorganização do Estado pode, quando observado isoladamente, dar a perceber a construção de relações que, na verdade, não estavam pensadas e que efetivamente não se colocaram no momento419. Dito em outras palavras, a possibilidade de ascensão

social de alguns não afetou a organização do sistema colonial, posto que as reformas em Portugal, apesar de terem por conceção basilar a ideia de modernizar o império, não se dispunham a alterar o status quo da monarquia pluricontinental lusa.

Para além destes aspetos intelectual e sociopolítico que motivaram as reformas político-institucionais, com seus reflexos no mundo académico, não podemos deixar de enfatizar que a relativa decadência das mesmas também foi uma das razões que motivaram as reformas, embora tenha havido alguma ênfase adicional para o caso português, como bem salientou Taveira da Fonseca420,

especialmente porque a perceção da fraca qualidade do ensino universitário era generalizada.

De qualquer modo, este declínio se mensura mais pela proliferação das academias do que pelo decréscimo das matrículas efetuadas ao longo dos anos, como propôs Flávio Rey de Carvalho421. Isso porque, apesar de ver seu poder cada

vez mais enfraquecido, as universidades nunca chegaram a efetivamente perder a

segue é exemplar deste movimento de reforma que não pretendia alterar as relações sociopolíticas estabelecidas: Victoriano de Villava, Apuentes para un reforma de España, sin trastorno del gobierno

monarquico, ni la religion, Buenos Aires, Imprenta de Alvarez, 1822. Para uma breve introdução sobre

a academia cubana, cf. Diana Iznaga and Yolanda Vidal, “Apuntes para la historia de la Sociedad Económica de Amigos del País de La Habana durante la época colonial”, Revista de la Biblioteca

Nacional José Martí [Cuba], n. 1, 1981.

419 Luiz Carlos Villalta, Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura, pp. 141–142.

420 Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra (1700-1771) (Estudo Social e Económico),

pp. 101–102.

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sua condição privilegiada — especialmente na conferência dos graus académicos necessários para o exercício regular em altos postos públicos em diferentes áreas e, portanto, indispensáveis para diversos setores desta sociedade imperial. Esta é a razão pela qual sempre houve, apesar das variações, um afluxo de matrículas considerável (como se perceberá mais detalhadamente a seguir).

As reformas universitárias se deram em meio a um contexto conflituoso entre diferentes instituições, num processo de readequação que pode ser percebido como uma “resposta” das universidades à ascensão das academias e colégios profissionais, como as escolas de cirurgia, por exemplo. Um dos factores a levar em consideração nesta análise do processo de decadência da universidade entre a opinião pública portuguesa é que diversos alunos, apesar de formados em universidades célebres, passaram a enfatizar nos frontispícios de seus livros e até mesmo em suas teses académicas a sua pertença a academias e sociedades de letras e ciências.

Foram reformas significativas pensadas em todo o continente e estavam a ser levadas a cabo especialmente através do aparecimento e consolidação de estabelecimentos científicos concorrentes às universidades. Mas também em relação à cada vez menor autonomia universitária face à ingerência do poder régio422.

Não espanta, portanto, que o “outono das universidades” tenha sido utilizado pelos próprios atores de então enquanto um elemento de justificação perante os monarcas para forçar a realização de mudanças na estrutura destas instituições. Processo esse que, como temos salientado, não ocorreu apenas em Portugal: tais reformas foram pensadas em âmbito institucional, como parte da referida readequação dos modernos estados imperiais. Assim, concordamos com a análise de Flávio Rey de Carvalho, baseado em Fernando Taveira da Fonseca, quando este procurou criticar análises que estabeleceram relações diretas entre uma decadência universitária (absoluta) e o muitas vezes referido atraso português423. O

422 Laurence Brockliss, “Le contenu de l’enseignement et la diffusion des idées nouvelles”. 423 Flávio Rey de Carvalho, Um iluminismo português?, p. 33.

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processo de reformas foi amplo e não esteve circunscrito apenas às regiões usualmente classificadas como periféricas.

O caso concreto da reforma na Universidade de Coimbra e suas consequências diretas

Em Portugal, a reforma da universidade gerou resultados diversos, mas antes importa ressaltar a necessidade de se contextualizar este conjunto de ideias, fruto duma época concreta, que colocava as ciências do império luso de rastos, completamente atrasadas e sedentas por desenvolvimento. É imperativo perceber esta documentação não como uma fiel informação de seu tempo, como queriam seus “ilustrados” autores, mas examinar seus argumentos enquanto parte do conjunto de interesses que foram especialmente adotados por estes homens no confronto pelo controle do poder educacional. Com a reforma, um conjunto de ideias e valores médicos e educacionais associados aos privilégios e hierarquias de Antigo Regime foi posto em causa em prol de conceções iluministas de educação médica; antigos professores foram desligados da universidade424; e temas

anteriormente caros à formação coimbrã, tais como as interpretações teóricas de Avicena e da “escola árabe”, abriram espaço para visões de saúde que, apesar de díspares, tinham em comum uma representação de racionalidade, modernidade e pragmatismo.

Neste sentido, não podemos deixar de notar que os defensores da reforma institucional na universidade coimbrã, especialmente aqueles inseridos nos círculos letrados que de alguma maneira eram apoiados pelo marquês de Pombal, tingiram a negro o estado em que anteriormente se encontrava o ensino. Assim foi que os poetas encomiásticos publicaram diversos versos a ressaltar os feitos da reforma, sempre, é claro, enfatizando o papel desempenhado pelo poderoso secretário de Estado ao longo do processo. No conjunto destas produções literárias, Manoel Inácio da Silva Alvarenga indicou Sebastião José de Carvalho e Melo como uma espécie de

424 Joaquim Ferreira Gomes, O Marquês de Pombal e as reformas do ensino, Coimbra, Almedina, 1982,

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salvador, um restituidor da glória e das Luzes até então perdidas na histórica universidade lusa. Em seu O desertor, o autor comemora com euforia as reformas implementadas em Coimbra, inclusivamente comparando as mudanças executadas “por” Pombal enquanto restauradoras do poder imperial perdido: “Restaurador do seu império antigo”425.

Filinto Elísio, por sua vez, deixava bem clara suas críticas ao universo educacional vivenciado até então. Na ode No tempo da reforma da Universidade de

Coimbra, o poeta defendia que era a ação reformadora de Pombal que estava a

transformá-lo:

[…] Sem fasto ia a rançosa Teologia/ A pé, com a toga suja, mal traçada;/ Carregada de tomos grandes grossos, / Que mais não serão lidos. […] Que tropel de Tomistas e Escotistas/ Arrepelam as barbas e os cabelos;/ Porque estes Estatutos os privaram/ De gritar sobre nada426.

O texto elogiava as mudanças curriculares, ao mesmo tempo que condenava as disciplinas e os manuais seguidos até então como rançosas ou antiquadas, apresentando a ideia de que a reforma pombalina era mais do que necessária. Seria a efetivação das Luzes na universidade, numa perspetiva que também pode ser encontrada no controverso Reino da Estupidez, obra que teria se inspirado, segundo Teófilo Braga, nos aspetos pitorescos desta ode de Filinto Elísio427.

De outra parte, já num período posterior, do reitor Dom Francisco de Castro (1786-1799), a preocupação de autores como António Ribeiro dos Santos, crítico de Pombal428, passava a ser a efetivação das mudanças projetadas na reforma de 1772.

425 Manuel Inácio da Silva Alvarenga, O desertor: Poema heroi-comico, Coimbra, Na Real Officina de

Universidade, 1774, p. 9; Afonso Carlos Marques dos Santos, “Da Universidade reformada ao brasil colonial: duas trajetórias iluministas”, in Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do

Congresso “História da Universidade,” vol. 5, Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso, 1991, p.

122.

426 Teófilo Braga, Filinto Elysio e os dissidentes da Arcadia, Porto, Chardron; Lello & Irmão, 1901, p.

220. Note-se que em edição anterior, publicada em Paris em 1806, o poema é apresentado com grafismos diferentes, a saber, não há itálicos e o trecho citado termina com um ponto de interrogação: “[…] De gritar sobre nada?”, In: “Versos de Filinto Elysio”, Paris, [s.n.], 1806, pp. 77-80.

427 Ibid.

428 José Esteves Pereira, “António Ribeiro dos Santos e a reforma pombalina da Universidade”, in

Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade,” vol.

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Confiante do trabalho do reitor, Ribeiro dos Santos dedicou-lhe uma poesia bem aos moldes daquelas até então endereçadas a Pombal429.

Com todas estas intercalações, é preciso relembrar que os alunos que foram para Montpellier estavam inseridos neste amplo contexto de reformas. Destes quinze alunos luso-brasileiros que foram para o sul de França, seis frequentaram anteriormente a Universidade de Coimbra, e destes apenas um era anterior a este processo reformista: Joaquim Inácio de Seixas Brandão, ao contrário dos outros

montpellerinos, não frequentou Matemática, Filosofia ou outros cursos, por ter tido

uma rápida passagem pela cidade lusa antes da reforma, matriculando-se apenas em Instituta.

Dentre os outros, quatro (Joaquim José de Souza Ribeiro, Faustino José de Azevedo, Manuel Arruda da Câmara e Manuel Joaquim de Souza Ferraz) estudaram concomitantemente em 1786 e 1787, frequentando os cursos de Matemática, Filosofia e Direito, sendo que dois deles (Faustino de Azevedo e Souza Ribeiro) estiveram juntos na instituição por quatro anos consecutivos. Além disso, Manuel A. Câmara juntou-se a estes dois um ano depois, frequentando a universidade lusa conjuntamente por três anos, como se pode perceber pela tabela que segue:

Tabela 2: Os Montpellerinos e o período de permanência em Coimbra430.

429 Ibid., p. 222, nota 17.

430 Esta tabela apresenta alguns dados diferentes daqueles que podem ser encontrados no sistema de

pesquisas online do Arquivo da Universidade de Coimbra: Faustino José de Azevedo obteve uma Carta de Curso em 1790, apesar de não ter sido entregue Certidão de Idade; Joaquim José de Sousa Ribeiro formou-se em Cânones em 25/06/1788; e, apesar de algumas informações bibliográficas em contrário que afirmam que José Joaquim da Maia Barbalho teria estudado em Coimbra até 1785, quando então foi para a França, não encontramos informações no Arquivo que corroborem estas informações. Para mais, cf. as seguintes séries documentais do referido Arquivo: Livro de Matrículas, Certidões de Idade, Livros de Exames, e Processos de Carta de Curso.

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Como bem notaram Ana Lúcia Cruz e Magnus Pereira, não se pode descartar que eles tenham ido para Coimbra, porque a formação académica poderia “propiciar-lhes alternativas de profissionalização”, bem como “promover o estreitamento de laços com a metrópole, visando a obtenção de benesses ulteriores”431. Ressalte-se que para além de interesses pessoais e familiares, estes

cinco montpellerinos foram coimbrões num período em que se começava a colher os frutos das primeiras mudanças estruturais no sistema universitário português. Eles passaram pela formação em Filosofia e Matemática na universidade já reformada. Importa sublinhar que os demais estudantes que foram para a França também não podem ser descartados deste processo, pois embora tenham decidido não ir para o centro português, também tinham a Coimbra das reformas como destino possível. Além do facto de que a França do período em que eles lá estiveram viveu discussões semelhantes a Portugal, como se verá.

A reforma redirecionou a instituição para que esta se tornasse um instrumento das novas políticas do Estado, seja fornecendo um corpo técnico- profissional capaz de recolher, anotar e informar corretamente os “produtos naturais” com potencialidades económicas e os limites geográficos coloniais, provendo-os de meios capazes de receber e investigar as informações colhidas sob a ótica ilustrada432. Em outras palavras, a universidade tornou-se um meio essencial

para a realização de tarefas que interessavam o império pluricontinental português, seja pela formação de agentes para o estabelecimento de limites e para executar as

viagens filosóficas pela América, Angola, Cabo Verde, e Moçambique, seja para a

criação e readequação de infraestruturas que amparassem as novas investigações imperiais, tais como jardins botânicos, bibliotecas433, e demais equipamentos de

ciências, como laboratórios, gabinetes e hospitais que pudessem testar as drogas

431 Esta questão será desenvolvida no capítulo quarto. Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz and Magnus

Roberto de Mello Pereira, “Ciência, identidade e quotidiano”, p. 206; 209.

432 Ângela Domingues, “Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais”.

433 Luis Carlos Martins de Almeida Mota, “A Minuta para o Regimento da livraria da Universidade de

Coimbra de António Ribeiro dos Santos: algumas notas para o seu enquadramento histórico-cultural”,

in Universidade(s): história, memória, perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade,” vol. 2, Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso, 1991, pp. 198–202.

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descobertas434, as “águas medicinais” (hidroterapia), como se pode deduzir das

instruções dada por Domingos Vandelli acerca das viagens filosóficas435.

Não foi por acaso, portanto, que académicos formados em outras áreas terminaram executando investigações naturalísticas ao serviço régio, como foi o caso do médico montpellerino Manuel Arruda da Câmara436, ou das investigações

botânicas de Joaquim Inácio de Seixas Brandão quando este era Primeiro Médico do Hospital Real de Caldas da Rainha437. É claro que a formação naquela conjuntura

propiciava estas inversões, já que o estudante podia cursar disciplinas específicas de outras faculdades438. Em Medicina também se aprendia a identificar os seres dos

três reinos naturais, fosse pela instrução em Matéria Médica, fosse pela formação prévia em estudos matemáticos e filosóficos, obrigatória em Coimbra439, o que

reforçava ainda mais essa componente preparatória para as viagens e investigações filosófico-naturais (e um não afunilamento ou especialização, tal como nós hoje concebemos em ciência). É possível perceber, pois, que essa abertura e interconexão curricular era típica da altura, como se pode notar exemplarmente na classe ofertada por Benjamin Burton, no então recente curso médico da Universidade da Pensilvânia440.

Neste sentido, como salientamos acima, não seria estranho notar que não obstante as críticas à universidade e à sua relativa decadência, ela continuou a ser o centro de formação mais importante de todo o império luso. Tanto foi assim que, se

434 Ângela Domingues, “Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais”.

435 Domingos Vandelli, “Memória sobre a necessidade de uma viagem filosófica feita no reino, e

depois nos seus domínios [1796]”, in José Vicente Serrão (ed.), Aritmética política, economia e

finanças, 1770-1804, Lisboa, Banco de Portugal, 1994, (Coleção de Obras Clássicas do Pensamento

Económico Português, 8), p. 22.

436 Lorelai Brilhante Kury, “Manuel Arruda da Câmara: a república das letras nos sertões”, in Sertões

adentro: Viagens nas caatingas, séculos XVI a XIX, Rio de Janeiro, Andrea Jakobsson Estúdio, 2012;

José António Gonsalves de Mello (ed.), Manuel Arruda da Câmara: obras reunidas, c.1752-1811,