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setecentos

Introdução

A análise realizada no capítulo anterior acerca do contexto médico ilustrado ao redor do império luso procurou enfatizar comparações com outras conjunturas imperiais, consideradas como modelo do Iluminismo. Mas ainda que tenhamos reconhecido limitações nestes contextos, notamos também que, ao fim, estas nações não eram tão diferentes do universo luso como usualmente se tem assinalado.

Neste capítulo seguiremos esta abordagem comparativa, voltando-nos para as universidades setecentistas, embora não deixando de observar outros centros de sociabilidade que, com o tempo ganharam importância no século XVIII, as academias e sociedades. Essa caracterização se faz necessária especialmente porque foi por meio das universidades que os médicos de Montpellier procuraram aferir vantagens sociais, do mesmo modo que foi nestes centros que se deu grande parte da formação dos 15 de Montpellier.

Assim, importa salientar que a análise dos estudos universitários no século XVIII passa necessariamente pela perceção das mudanças engendradas pelas reformas universitárias e, nomeadamente para nossa discussão, do ensino médico. As transformações nas ideias médicas, muito em decorrência da Ilustração, refletiram-se nas diferentes propostas de alteração e melhoria da universidade como um todo e, de modo especial, na implementação de um ensino médico mais prático e menos teórico, inclusivamente com a inserção de novas disciplinas, como as cadeiras clínicas de Prática, a serem realizadas num Hospital. Não será de estranhar, portanto, que iremos discutir aqui mudanças tributárias aos ideais ilustrados, especialmente aqueles diretamente aplicados no ensino médico que

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influenciaram o pensamento dos 15 de Montpellier, tanto no campo específico da Medicina, quanto no amplo universo político-social luso d’Aquém e d’Além-Mar.

Como este trabalho objetiva primordialmente investigar as trajetórias dos 15

de Montpellier, é relevante identificar o porquê da escolha desta universidade em

detrimento das de Coimbra, Salamanca, Leiden, ou Edimburgo, para ficarmos em alguns exemplos. Com este objectivo, interrogaremos comparativamente o que a instituição portuguesa poderia oferecer, qual o quadro académico em Medicina quando os quinze de Montpellier frequentaram os bancos escolares. Ou seja, saber quais eram as condições então ofertadas e requeridas e perceber quais as vantagens de se estudar nesta universidade do sul de França, distante dos compatriotas portugueses, ao invés de realizarem os estudos académicos em Coimbra.

Para tanto, esse capítulo irá discutir comparativamente ambas universidades, num contexto mais amplo do ensino médico universitário europeu de fins do século XVIII. Não intentamos, porém, realizar uma abordagem formal do centro coimbrão, a enumerar, por exemplo, as mudanças legais efetivadas pela reforma de 1772. Embora não se possa dizer que tenham sido exauridas, estas discussões foram recentemente muito bem tratadas por João Rui Pita e Fernando Taveira da Fonseca317.

Para nosso estudo, importa mais perceber que Coimbra seria a opção mais óbvia: a mesma língua, a mais barata e mais direta, ou seja, a única universidade no espaço imperial português. Primeiro, porque apesar de todas dificuldades para se chegar a Coimbra318, os filhos mais abastados da elite luso-brasileira conseguiam

efetuar acordos com comerciantes para sobreviverem às margens do Mondego319,

317 Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra (1700-1771) (Estudo Social e Económico),

Coimbra, Por ordem da Universidade, 1995; João Rui Pita, Farmácia, medicina e saúde pública em

Portugal (1772-1836).

318 Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz and Magnus Roberto de Mello Pereira, “Ciência, identidade e

quotidiano: alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, vol. 9, 2009, p. 211.

319 Alguns comerciantes transatlânticos conseguiram facilitar os meios de facilitar os custos para

manter seus filhos em Coimbra realizando acordos com comerciantes estabelecidos em Portugal. Ao invés de enviar recursos aos filhos ou de lhes garantir o sustento logo a partida, estes homens “abatiam” os custos gerados por seus filhos nos produtos que vendiam para os comerciantes com

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de modo que se chegou ao fim do século com um total de 130 alunos de Medicina oriundos da América. Sabemos que as famílias precisavam ter posses para mandar seus filhos a Coimbra, mas o custo desta manutenção em Montpellier seria certamente mais elevado. Segundo, porque os alunos formados por Coimbra, especialmente aqueles bem avaliados por seus professores, gozavam de preferência no momento da nomeação para o exercício do real serviço, além do facto de que os alunos formados no estrangeiro teriam de obter uma autorização, obtida por meio de um exame, para praticar no império luso. Ainda assim, Coimbra acabou não sendo a escolha destes 15 de Montpellier.

Esta comparação, que pretendemos fazer em relação ao panorama académico franco-português, antecede as análises das teses dos montpellerinos e de seus envolvimentos políticos e inserções socioeconómicas (capítulos 3 e 4). Esta análise faz-se necessária porque, se num primeiro momento (capítulo 1), procuramos notar o contexto médico, sociopolítico e intelectual em que estavam inseridos, é preciso perceber também seus ambientes de formação. Locais por excelência dos primeiros contactos profissionais e de ligações pessoais e afectivas (que não excluem os interesses políticos), as universidades – e as cidades onde elas estavam implantadas – eram mais que um meros locais de saber.

Perceber estes espaços de sociabilidade e o seu impacto na formação e no percurso destes luso-brasileiros demanda reconhecer, todavia, a condição de seus membros enquanto parte da hierárquica sociedade de cortes de fins de século; uma comunidade em transformação, mas que ainda defendia ferreamente seus privilégios. Portanto, discutiremos aqui os elementos essenciais para perceber as trajetórias dos estudantes luso-brasileiros que rumaram para Montpellier, ao invés de optarem por outros centros de formação. Apoiados no contexto médico de fins de setecentos, discutido no capítulo anterior, analisaremos os elementos

quem fizeram acordos. Exemplo destes acordos pode ser visto em Autos da Devassa da Inconfidência

Mineira, vol. 2, 2nd ed., Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1978, p. 95; Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, vol. 1, 2nd ed., Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais,

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especificamente relacionados ao mundo académico que influenciaram as escolhas destes alunos pela Universidade de Montpellier.

As universidades não viviam, neste período, sob relações propriamente harmónicas: com imensas disputas entre os seus membros, entre si e com outras instituições de formação/cultura (como as academias, sociedades científicas e os colégios reais), e mesmo com órgãos de fiscalização e controle (Fisicatura-mor320), os

embates se alastraram de tal modo entre estes órgãos que as várias faculdades acabaram por entrar em contendas entre si321.

Paris e Montpellier eram seguramente as mais influentes faculdades médicas do império francês, gozando de um inquestionável prestígio. Não faltaram autores da época a assentar diferentes juízos sobre ambas. Em Portugal, Coimbra era a única universidade a conceder graus médicos, mas não a instituição exclusiva, já que o físico-mor poderia, devido a ausência de curadores na localidade, conceder licenças àqueles que não cursavam na universidade322.

Neste sentido, esta abordagem comparativa procurará se distanciar de avaliações sobre qual faculdade seria melhor neste ou naquele campo, ou qual seria a mais avançada ou atrasada nesta ou naquela disciplina. Para nós, importa sobretudo perceber se os interesses médico-sanitários eram próximos entre si ou, por exemplo, se existiam razões especiais para algum distanciamento teórico- metodológico, ao invés de procurar definir uma faculdade como modelo de análise para a partir de então examinar as demais.

320 Sobre este tema, será importante cf. Laurinda Abreu, “Tensions between the Físico-Mor and the

University of Coimbra: The Accreditation of Medical Practitioners in Ancien-Regime Portugal”, Social

History of Medicine, 2017.

321 Patrick Ferté, “L’université d’Avignon, à la fois française et étrangère, et ses rivales (Aix-en-

Provence, Besançon, Orange, Valence)”, Annales du Midi: revue archéologique, historique et

philologique de la France méridionale, vol. 121, n. 268, 2009.

322 Fernando Taveira da Fonseca, “A dimensão pedagógica da Reforma de 1772: alguns aspectos”, in

Ana Cristina Araújo (ed.), O Marquês de Pombal e a Universidade, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2000, p. 44.

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