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Até aqui, relembramos que Iluminismo e Imperialismo não são tão distantes quanto se podia imaginar, discutimos a abordagem nacional e a adopção de paradigmas explicativos do Iluminismo, bem como analisamos os conceitos de centro/periferia e despotismo esclarecido. Cabe enfim examinarmos o conceito de

estrangeirado, definindo-o historicamente e discutindo suas implicações na análise

do Iluminismo português tendo em consideração que este conceito está directamente relacionado à nossa investigação.

44 Eduardo Teixeira de Carvalho Júnior, por exemplo, diferencia Luís Antono Verney e outros

ilustrados da existência de uma “esfera pública”, ou seja, sua análise questiona a capacidade de Portugal “promover um ambiente de debates próprios do Iluminismo”, Eduardo Teixeira de Carvalho Júnior, Verney e a questão do iluminismo em Portugal, Dissertação de Mestrado, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2005, p. 68.

45 Carlos Filgueiras, “Havia alguma ciência no Brasil setecentista”, p. 351. José Carvalho, Lúcia Lima e

Russell Craig defenderam que apesar das reformas levadas a cabo por D. João V “o conservadorismo, atraso cultural e intolerância religiosa” teriam fornecido uma “base fraca para a adopção das ideias iluministas”, José Matos Carvalho et al., “Early cost accounting practices and private ownership: The Silk Factory Company of Portugal, 1745-1747”, Accounting Historians Journal, vol. 34, n. 1, June 2007, p. 65. Em discussão distinta, mas importante para compreensão do conceito, Nuno Gonçalo Monteiro criticou a afirmação de que Pombal fosse um déspota esclarecido, uma vez que o modelo analítico ‘despotismo esclarecido’ era aplicado aos reis, Nuno Gonçalo Monteiro, “Pombal’s Government: Between Seventh-Century Valido and Enlightened Models”, in Gabriel Paquette (ed.), Enlightened

Reform in Southern Europe and its Atlantic Colonies, c. 1750-1830, Farnham; Burlington, VT, Ashgate,

2009.

46 Natália Bebiano, “Mathematical Horizons: Light and Darkness in Portugal in the 18th Century”,

Historia Mathematica, vol. 23, n. 3, August 1996. Para uma leitura aprimorada das visões sociais que

se tinha da matemática no século XVIII e dos conceitos matemáticos predominantes, cf. Thomas L. Hankins, Jean d’Alembert.

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Se as discussões anteriormente abordadas nesta introdução são importantes para percebermos o Iluminismo, ou mais propriamente como este têm sido estudado e de que maneira pretenderemos analisá-lo, o conceito de estrangeirado toca directamente nossa pesquisa uma vez que o grupo de luso-brasileiros foi educado fora do Império português.

Se estes homens poderiam ser classificados como estrangeirados quais, afinal, são os elementos que credenciam a classificação de um indivíduo ou grupo como tal? O primeiro, e axiomático ponto, é o facto de terem vivenciado alguma experiência fora do Império português. Além deste, a percepção comparativa entre a realidade lusa e o mundo estrangeiro, impulsionada pelas ideias iluministas e, por fim, a sugestão de mudanças com o objectivo de melhorar o Império complementam esta espécie de lista. Todavia, esta definição apresenta apenas uma ideia superficial do conceito, pois o mesmo foi utilizado em distintos contextos no Portugal contemporâneo com sentidos totalmente diversos e, talvez por este motivo é um dos conceitos mais delicados ao estudo do iluminismo em terras lusas.

António Sérgio propôs um conceito pouco definido, empregado como meio de analisar a ilustração em Portugal. Sua ideia de estrangeirado possuía uma acepção positiva, cosmopolita; era a concepção de que o Iluminismo foi um movimento cultural europeu e, neste sentido, estrangeirado seria aquele homem ligado ao processo de transformação sociopolítico vivenciado no século XVIII: um homem comprometido com o progresso do Império português, ainda que dele afastado, e igualmente empenhado no desenvolvimento humano (humanismo)47.

Partindo da proposição de Sérgio, diferentes historiadores procuraram definir o conceito à própria visão. Flávio Rey de Carvalho notou o contexto político que envolveu Sérgio e sua análise do debate entre republicanos nacionalistas e opositores48 auxilia-nos a perceber em que medida o conceito de António Sérgio foi

redefinido por Jorge Borges de Macedo, passando a caracterizar-se negativamente por um maniqueísmo entre o nacional e o estrangeiro, elemento que acabou por ser

47 António Sérgio, “O reino cadaveroso ou problema da cultura em Portugal”, in Ensaios, vol. II, 2nd

ed., Lisboa, Sá da Costa, 1976.

48 Flávio Rey de Carvalho, Um iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra de 1772,

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visto como desvirtuador do carácter nacional49. A discussão do conceito conduzida

por Tiago dos Reis Miranda também assinala as repercussões políticas no processo de formação do conceito e analisa a inserção de um sentido crítico dado por Jaime Cortesão, posto ter apontado limitações destes estrangeirados em perceberem a realidade nacional50.

Breno Ferreira indicou que o fim do salazarismo abriu espaço para outras leituras e que o resultado destas novas linhas analíticas permitiu a contestação das concepções que desuniam os ibéricos do restante da Europa e permitia rever a noção de estrangeirado51.

Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro realizaram uma biografia científica do Abade Correia da Serra e observaram-no numa rede de academias ilustradas52. Cientes das problemáticas de sua utilização, as autoras tentaram

adaptar o conceito de estrangeirado: elementos importantes na introdução, disseminação e propagação das ideias ilustradas em Portugal, estes seriam intelectuais “europeizados”53. Integrando-o ao conceito de redes, as autoras

defenderam o uso do conceito no sentido por elas sugerido, uma vez que a participação de Correia da Serra na internacionalização da cultura científica estaria comprometida caso o mesmo estivesse permanecido em Portugal54. A caminhar

neste sentido, Cristiana Bastos analisou igualmente o Abade Correia da Serra, sob o prisma da construção de uma rede científica55.

49 Jorge Borges de Macedo, Estrangeirados: um conceito a rever, Lisboa, Edições do Templo, 1979. 50 Tiago C. P. dos Reis Miranda, ““Estrangeirados”: A questão do isolacionismo português nos séculos

XVII e XVIII”, Revista de História, n. 123-124, 1990/1991. Cf. este texto para uma discussão sobre o conceito e seus empregos em outras correntes da historiografia portuguesa.

51 Breno Ferraz Leal Ferreira, Contra todos os inimigos. Luís Antonio Verney: historiografia e método

crítico (1736-1750), Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2009, p. 56.

52 Ana Simões et al., Cidadão do mundo: uma biografia científica do Abade Correia da Serra, Porto,

Porto Editora, 2006.

53 Maria Paula Diogo et al., “The Portuguese naturalist Correia da Serra (1751–1823) and his impact

on early nineteenth-century botany”, Journal of the History of Biology, vol. 34, n. 2, 1 June 2001, p. 354. Pode-se conferir ainda um retrospecto historiográfico dos sentidos empregados pelos historiadores portugueses ao termo no artigo Ana Carneiro and Ana Simões, “Enlightenment Science in Portugal: The Estrangeirados and their Communication Networks”, Social Studies of Science, vol. 30, n. 4, 8 January 2000, pp. 592–594.

54 Ana Simões et al., Cidadão do mundo, p. 9, nota 32.

55 Cristiana Bastos, “Of objects, networks, politics and poetics: the Royal Academy of Sciences of

Lisbon in the context of the Enlightenment”, in Ana Delicado (ed.), Associations and other groups in

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Victor de Sá também se vale do conceito de estrangeirado e assim classifica António Nunes Ribeiro Sanches56. Este autor vê o Iluminismo apenas como uma

preparação ideológica da Revolução Francesa57 e pelo facto de os estadistas terem

adoptado as ideias ilustradas, classifica-o como um dos representantes portugueses mais categorizados do Iluminismo58. Também afeito à ideia de que aos

estrangeirados se deve a inserção do Iluminismo em Portugal, Demerval Saviani

analisou as reformas educacionais pombalinas a partir de um ambiente controverso entre religião e razão, entre fé e ciência59.

No entanto, a historiografia actual procurou, de outra parte, analisar o Iluminismo português para além de propor revisões e contributos deste conceito. Júnia Ferreira Furtado analisou o perfil de José Vieira Couto enquanto um membro da elite intelectual luso-brasileira inserido na Ilustração60. Além de Vieira Couto, a

autora discutiu o papel de D. Luís da Cunha, bem como a formação de academias e sociedades na primeira metade do setecentos português. Devido à multiplicidade de sentidos que este conceito traz, Júnia Furtado propôs o conceito alternativo de

emboabas ilustrados61, bem como criticou o uso do termo “eclético”, uma vez que

este torna o caso português atípico frente aos demais movimentos ilustrados europeus. A autora advogou ainda a ocorrência das luzes no Portugal joanino, argumentando a existência de um grupo de intelectuais em torno do rei, referenciou a formação da biblioteca real e, em outras palavras, intentou apresentar os elementos que lhe permitem defender a existência de uma opinião pública, ainda que embrionária, para além de um grupo de estrangeirados62.

56 Victor de Sá, “Apresentação”. 57 Ibid., p. 32.

58 Ibid., p. 33.

59 Dermeval Saviani, “As idéias pedagógicas do despotismo esclarecido (1759-1827)”, in História das

idéias pedagógicas no Brasil, 2nd ed., Campinas, Autores Associados, 2008.

60 Júnia Ferreira Furtado, “Enlightenment Science and Iconoclasm”.

61 Segundo a autora, o conceito busca reflectir a relação entre as atenções nacionais (daí emboabas),

do desenvolvimento de Portugal, com as internacionais, típica dessa elite letrada. A autora justificou a utilização do termo emboabas devido à centralidade das Minas Gerais e suas riquezas para os administradores e intelectuais portugueses, enquanto uma expressão deste iluminismo, ao mesmo tempo universalista e atento às demandas do Império português, Júnia Ferreira Furtado, Oráculos da

geografia iluminista, pp. 115–122.

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Gabriel Paquette também criticou a ideia de estrangeirado e, por tal elemento, é uma das reduzidas análises em inglês que problematizaram aspectos da historiografia portuguesa. Segundo o autor, a parte foi confundida pelo todo, posto que o inegável papel do universo estrangeiro no Iluminismo português foi largamente considerado como o fenómeno em si63.

Alguns investigadores seguem, todavia, uma linha interpretativa distante do conceito de estrangeirados e não o empregaram para analisar o Império português e suas análises têm em comum a percepção de que o Iluminismo português não pode ser analiticamente restringido a um grupo específico de ilustrados. Destacável discussão neste sentido, a abordagem sob o prisma conceitual das redes de informação de Lorelai Kury analisou as leituras e referências nacionais e estrangeiras feitas por ilustrados como Alexandre Rodrigues Ferreira e Manuel Arruda Câmara. Para ela, a relação desses ilustrados com o Iluminismo internacional não foi passiva, terminando por defender que “a internacionalização do debate científico em Portugal e no Brasil foi acompanhada por uma crescente tentativa de valorização da situação tropical e americana”64.

Acerca especificamente da América portuguesa, Francisco Falcon procurou notar as consequências da adopção das ideias ilustradas65, Rafael Campos

preocupou-se em analisar a inserção portuguesa nas Luzes por meio da presença de uma produção científica na América, para além dos estrangeirados66 e Jean Luiz

Neves de Abreu defendeu uma simetria qualitativa entre a Ilustração portuguesa e o

63 Gabriel Paquette, “Political economy, local knowledge and the reform of the Portuguese empire in

the Enlightenment”, in Jesús Astigarraga and Javier Usoz (eds.), L’économie politique et la sphère

publique dans le débat des Lumières, Madrid, Casa de Velázquez, 2013, p. 249. Em outra ocasião,

Rafael Campos criticou também o conceito justamente por colocar a ilustração portuguesa à depender de uns poucos, Rafael Dias da Silva Campos, “O internacionalismo da medicina portuguesa: teses de luso-brasileiros em Montpellier”, in Maria de Fátima Nunes et al. (eds.), Internacionalização

da Ciência: Internacionalismo Científico, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2014.

64 Lorelai Brilhante Kury, “Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações

(1780-1810)”, História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 11, n. supplemento 1, 2004.

65 Francisco José Calazans Falcon, “Ilustração e Revolução em Portugal e na América Portuguesa”, in

Francisco Ribeiro da Silva (ed.), Estudos em homenagem a Luís António de Oliveira Ramos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.

66 Rafael Dias da Silva Campos, “Que de autor basta eu...”: O Mundo Natural nos Diálogos Geográficos

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Iluminismo no restante Europa67. Em Nos domínios do corpo, o autor problematizou

a ideia de atraso e defendeu uma visão contextualizada não esquivando-se de deixar marcadas a herança da religião, da astrologia e da magia68.

E dos investigadores que defendem ter havido Ilustração portuguesa sem necessariamente requerer explicações a respeito dos estrangeirados, diversos outros nomes podem ser observados. Destes, Ângela Domingues analisou a actuação de Francisco de Sousa Coutinho, Governador do Grão-Pará e Maranhão e irmão de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. A investigadora procurou analisar a actuação daquele homem inserido num contexto específico onde a recolha de informação pode ser tomada como elemento caracterizador do Iluminismo69. Mas além deste, Domingues

percebeu também toda uma rede ilustrada portuguesa actuante na Royal Society: “diplomatas, políticos ilustres e homens de ciência notáveis ligados à Medicina, Literatura, Matemática, Filosofia Natural, Mecânica”70, sendo que na segunda

metade do século XVIII esta rede, justamente afeita aos valores iluministas, estava a serviço do Estado português71. Por fim, cabe observar desta autora ainda a

importante percepção, ainda por se discutir, de que muito do saber produzido foi mantido em sigilo pelo Estado português72.

Portanto, se o conceito empregado por António Sérgio teve muito que ver com a situação política portuguesa da altura e se por disputas políticas sua concepção foi transformada: se quando empregado pela historiografia recente sua

67 Jean Luiz Neves Abreu, “A Colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das “luzes” e as

informações sobre as enfermidades da América portuguesa”, História, Ciências, Saúde —

Manguinhos, vol. 14, n. 3, 2007, p. 770; Rafael de Lima Fonseca and Jean Luiz Neves Abreu, “O

Iluminismo híbrido de Antônio Ribeiro Sanches”, in Anais do XVIII Encontro Regional Anpuh-MG, Mariana, EdUFOP, 2012.

68 Jean Luiz Neves Abreu, Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII, Edição

em Epub., Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2011, p. 15, 174 (edição em “epub”).

69 Ângela Domingues, “Um Governador ilustrado”.

70 Ângela Domingues, “Notícias do Brasil colonial: a imprensa científica e política a serviço das elites

(Portugal, Brasil e Inglaterra)”, Varia História, vol. 22, n. 35, 2006, p. 157.

71 Ângela Domingues, “Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes

de informação no Império português em finais do Setecentos”, História, Ciências, Saúde —

Manguinhos, vol. 8, n. Suplemento, 2001; Ângela Domingues, “Na confluência da política, da

diplomacia e da ciência: a fronteira na Amazónia colonial”, in Seminário Permanente de História do

Brasil, Lisboa, 2013.

72 Ângela Domingues, “For the relief of Man’s state or the advancement of national interests? A

percepção da natureza brasileira ao serviço das nações e da humanidade nos escritos dos viajantes do século XVIII”, Diálogos, vol. 14, n. 2, 2010, pp. 253–254.

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explicação demanda restringir o sentido do conceito ao ponto de se pensar num nova formulação do mesmo e, por fim, se seu uso pode ser relacionado com outros conceitos – despotismo esclarecido e centro/periferia, por exemplo – que em conjunto acabam percebendo uma realidade portuguesa de todo distante ao movimento da ilustração, por quê necessariamente o mesmo ainda poderia ser elemento de explicação do Iluminismo português? Respeitando-se as análises específicas de investigadores que percebem um Portugal alheio ou atrasado em relação à ilustração, propomo-nos que – diferentemente dos demais conceitos debatidos aqui – este conceito não seja utilizado por aqueles que procuram analisar o Iluminismo em terras lusas. Uma vez que seu emprego possui implicações nem sempre perceptíveis e por este motivo exige explicações altercáveis, esbarra-se num processo de construção histórico nacionalista/ufanista que deve ser evitado, além de não ser utilizado por outras historiografias para explicar o Iluminismo no restante da Europa, por que não desvincular-se do mesmo e cogitar perceber a ilustração portuguesa complexamente entrelaçada entre o “nacional” e o “estrangeiro”?!

A finalizar, salientamos nossa percepção de que o Iluminismo não pode ser dissociado do Imperialismo; que o referencial nação/nacional pode ser adoptado, com restrições, mas que a ideia de centro/periferia não parece ser tão útil para os estudos iluministas; ou que conceitos como despotismo esclarecido foram importantes para perceber o Iluminismo onde antes se negava sua presença, mas que actualmente carece de revisão de sentido àqueles que o desejem utilizar e, enfim, que a preconcepção de um Império português estrangeirado deve ser revista, analisada, e só então definida.

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Iluminismo, Medicina e Política na