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Um Império português de moléstias: doenças conhecidas e desprezadas no contexto médico de setecentos

A investigação acerca de uma doença enquanto passível de historicidade segue em grande medida a proporção de sua mortalidade73. Assim, quanto maior é o

impacto humano, ou seja, quanto mais letal for a doença, mais estudada e conhecida

73 No que toca à historicidade das doenças, convém observar que a proposta de Bruno Latour

contribui particularmente para a perceção dos limites das análises que avaliam avanços científicos dados per si, como que à espera de serem descobertos. Estas análises acabam por ser heroicizantes da ciência e dos cientistas que teriam conduzidos sozinhos a estes grandes avanços e deixam de observar os elementos integradores que permitiram a aceitação destas conclusões. Esta crítica é salutar quando observamos, por exemplo, o valor exclusivamente dado à Edward Jenner na descoberta da vacina antivariólica. Todavia, a proposta do autor configura-se problemática quando adentramos ao campo prático: valendo-se de seu modelo, poderíamos afirmar que a erisipela não existia tal como a conhecemos, posto que não se tinha conhecimento das bactérias no século XVIII. Mas não é porque a erisipela tal como a conhecemos não “existia” que o agente etiológico em si não existisse. O argumento de Latour pode muito bem ser utilizado de modo a frearmos a sede heroicizante que usualmente depositamos nos grandes nomes da ciência, mas não contribui para o facto de que, mesmo hoje, o desconhecimento humano sobre certas patologias não impede em nada a existência das mesmas. Bruno Latour, A esperança de pandora: Ensaios sobre a relidade dos estudos

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se torna. Mas para o nosso objetivo é preciso observar de modo mais amplo o conjunto de doenças do período em consideração, caso contrário corremos o risco de avaliar erroneamente as preocupações e valores que motivam os agentes de cura e a população, supervalorizando determinadas doenças e desvalorizando outras.

Doenças mortais e de forte impacto sociocultural como a tuberculose, a sífilis ou a peste podem ser facilmente encontradas em diversas fontes e manuais de história médica. Mas é preciso relembrarmos que as doenças têm história, suas existências passam por uma inter-relação entre as predisposições sócioambientais quanto à propagação/contágio e os conhecimentos humanos de profilaxia e terapia. Doenças que existiram no século XVIII e que já não existem como o maculo, por exemplo, ou que não mais ocorrem na América, como a Dracunculose (também conhecida por Doença do Verme da Guiné), ou que já não matam como outrora, como as verminoses em geral, foram qualificadas como de importância pública em tratados médicos de então74. Contudo, é estranho observar a pequena quantidade

de registos em documentos de época e a carência de discussões historiográficas sobre estas doenças menos conhecidas. Ocorre que diversas destas enfermidades exerceram também um significativo impacto na qualidade de vida e nos índices de mortalidade durante o século XVIII, apesar de serem menos referenciadas historiograficamente75.

Tomaremos como exemplo dois casos, sendo que um deles está diretamente relacionado com o conjunto de doenças discutidas pelos luso-brasileiros de Montpellier. O primeiro é uma das anomalias congénitas mais comuns na espécie

74 Um destes exemplos é Luiz António de Oliveira Mendes, “Memória a respeito dos escravos e tráfico

da escravatura entre a Costa d’África e o Brasil”, in Memorias Economicas da Academia Real das

Sciencias de Lisboa, vol. 4, Lisboa, Na Officina da Academia Real das Sciencias, 1812. Esta memória,

apesar de conhecida por este nome, foi publicada como Discurso académico ao programma:

Determinar com todos os seus symptomas as doenças agudas, e chronicas, que mais frequentemente accommettem os Pretos recem-tirados da Africa: examinando as causas da sua mortandade depois da sua chegada ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para tanto estrago: e finalmente indicar os methodos mais apropriados para evitalo, prevenindo-o, e curando-o. Tudo isto deduzido da experiência mais sizuda, e fiel.

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humana76. O segundo refere-se a uma doença de pele, erisipela, que teve impacto

significativo em regiões da América portuguesa.

As anomalias têm história, o caso esquecido do lábio leporino

Conhecida popularmente por lábio leporino, esta anomalia pode ser dividida em dois segmentos: a fissura labial e a fenda palatina (também chamada de fenda palatal), que podem ocorrer de forma conjunta ou separadamente. Devido à dificuldade na sucção, o recém-nascido tem problemas na alimentação (deficit nutricional) e sofre alterações na dentição, mas também pode ter distúrbios na fala e infeções de ouvido, que inclusivamente podem levar à perda da audição. A estes fatores, ao menos hodiernamente, podemos somar dificuldades de sociabilização e preconceito social77.

Seu nome foi atribuído devido ao aspeto de lábio de lebre que teria uma pessoa com lábio leporino78. Keith Thomas apontou uma crença dos bretões antigos

que perdurou até a Idade Moderna de que se uma grávida comesse carne de lebre poderia dar à luz uma criança com lábio leporino79. Os relatos são relativamente

escassos, sendo encontrados quase exclusivamente em manuais de cirurgia80.

76 Lauren Medeiros Paniagua et al., “Estudo comparativo de três técnicas de palatoplastia em

pacientes com fissura labiopalatina por meio das avaliações perceptivo-auditiva e instrumental”,

International Archives of Otorhinolaryngology, vol. 14, n. 1, 2010.

77 Para uma discussão sobre preconceito e lábio leporino, cf. Cintia Magali da Silva et al., “A escola na

promoção da saúde de crianças com fissura labiopalatal”, Texto & Contexto Enfermagem, vol. 22, n. 4, 2013; Diana da Silva Martins et al., “Health education: the role of the nurse in improving quality of life the of carriers of cleft lip and palate”, Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental Online, vol. 4, n. 1, 2012; João Luiz Gurgel Calvet Silveira and Carla Mayara Weise, “Social Perceptions of Mothers of Children with Cleft Lip/Palate Breast-Feeding”, Brazilian Research in Pediatric Dentistry and Integrated

Clinic, vol. 8, n. 2, 2008.

78 Francisco Villaverde, “Del labio leporino, ó pico de liebre”, in Operaciones de cirugía: según la más

selecta doctrina de antiguos, y modernos, dispuestas para uso de los Reales Colegios, vol. 2, Madrid,

por la viuda de Ibarra, hijos y compañía, 1788, p. 87.

79 Keith Thomas, Man and the Natural World: Changing Attitudes in England 1500-1800, London,

Penguin, 1991, p. 74.

80 A presença desta anomalia nos manuais de cirurgia pode, mais das vezes, ser explicada não apenas

pelos desafios de se realizar um tal procedimento, mas, e principalmente, pelo sucesso e vantagens que auferiam aqueles que apresentavam um procedimento cirúrgico bem sucedido. Em 1776, por exemplo, um oculista conhecido por Dr. Uytrecht fazia propaganda no condado inglês de Herefordshire por, dentre outras coisas, ter curado um lábio leporino em cinco dias. Jane M. Adams,

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No repositório europeu de bibliotecas (The European Library e Europeana), que abrange as bibliotecas nacionais de 48 países, além das principais bibliotecas de centros de investigação do continente, só pudemos identificar um total de 8 teses e memórias exclusivamente dedicados ao lábio leporino. Sabemos que diversos autores, especialmente cirurgiões, mas também médicos, discutiram acerca da anomalia, a começar por Boerhaave nos Aphorismos de Cirurgia81 e a passar por

Manoel José Leitão no seu Tratado completo de anatomia, e cirurgia82, mas se

compararmos estes dados com o número de obras sobre varíola, poderemos observar que esta anomalia foi praticamente negligenciada, também pelos agentes de cura. Como consequência, ela afigura-se como tendo uma importância insignificante nos manuais de história médica, acabando por não ser discutida nestes manuais83, muito embora fosse considerada uma monstruosidade juntamente com

outras malformações84, e por muitos vista como uma marca do Demónio85.

Esta constatação suscita um questionamento: porquê tão poucos relatos sobre fissuras labiopalatais, porquê tão insignificante atenção à mesma? Sabemos da carência de manuais sobre este assunto e certamente devem ser levados em consideração que o conhecimento técnico-científico de então representava um entrave no que respeita a execução de procedimentos cirúrgicos e sua consequente

The mixed economy for medical services in Herefordshire c. 1770 - c. 1850, Tese de Doutoramento,

Coventry, University of Warwick, 2003, pp. 55–56.

81 Hermann Boerhaave, Aphorismos de cirugia, vol. 1, Madrid, En la Imprenta de Pedro Marin, 1774. 82 Manoel José Leitão, Tratado completo de anatomia, e cirurgia con hum rezumo da historia de

anatomia, e cirurgia, seus progressos, e estado della em Portugal, vol. IV, Lisboa, na Offic. da

Academia Real das Scienc., 1788.

83 Reconhecemos a anterioridade dos manuais de história geral da medicina, que não discutem lábio

leporino e outras anomalias, mas salientamos suas contribuições para uma melhor compreensão do fazer médico em Portugal e da história de várias instituições e médicos portugueses. Todavia, convém observar a ausência aos referidos temas em Armando Tavares de Sousa, Curso de História da

Medicina: das origens aos fins do século XVI, 2nd ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996;

Maximiano de Lemos, História da medicina em Portugal: doutrinas e instituições, 2nd ed., Lisboa, Dom Quixote; Ordem dos Médicos, 1991, (Biblioteca da Ordem dos Médicos).

84 Sobre monstros, cf. Palmira Fontes da Costa, O corpo insólito: dissertações sobre monstros no

Portugal do século XVIII, Porto, Porto Editora, 2005, (Ciência e Iluminismo); Luís Ceríaco, “Sobre um

“Monstro bicorpóreo Eborense do século XVIII””, Midas, n. 2, 2013; Luís Ceríaco et al., “Os monstros ainda “existem”? Os monstros de Vandelli e o percurso das colecções de história natural do século XVIII”, in Actas do Congresso Luso-brasileiro de História das Ciências, Coimbra, 2011, at http://www.uc.pt/ruas/links/ceriaco.

85 Philip L. Safford and Elizabeth J. Safford, A History of Childhood and Disability, New York, Teachers

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divulgação em textos, mas algumas evidências apontam mais fortemente para outras razões, que não negam a carência de saberes sobre o tema, sendo mais marcante o de que os recém-nascidos identificados com lábio leporino eram “conduzidos a óbito”. Esta afirmação é corroborada pelos seguintes argumentos: (1) o baixo índice de obras que relatam algum tipo de contacto com pacientes com lábio leporino, (2) a ausência de soluções para aspetos significativos quanto sua correção; (3) e o preconceito social e cultural que leva a uma forte negação, por parte dos pais, em ter uma criança com lábio leporino86.

Já apontámos a baixa quantidade de obras dedicadas a este tema. Mas se ao longo do século XVIII apenas 8 documentos (do universo documental da European Library e Europeana) tratam especificamente desta questão, pode ser interessante ressaltar que são obras de conceções médicas as mais diversas e que em seu conjunto percebem o lábio leporino como uma monstruosidade, apontam para as dificuldades (quase impossibilidade) de intervenção cirúrgica, exceção apenas às teses, que pelo conteúdo técnico não realizam comentários alheios às características da anomalia e do corpo.

Quanto ao segundo ponto, devemos observar que se o conjunto de textos setecentistas sobre lábio leporino é reduzido, ainda menor é a quantidade daqueles que propuseram soluções para o problema da fenda palatina. Os manuais de cirurgia apontaram para procedimentos cirúrgicos dedicados à correção do lábio (Figuras 1- 2)87, mas somente há indicação de cirurgia para a correção da fenda do palato em 3

das obras do período sobre o tema88.

86 Podemos lembrar a famosa consternação de Jane Addams e seus comentários acerca de uma

criança deixada pela mãe, devido a anomalia. Jane Addams, Twenty years at Hull-house, with

autobiographical notes, New York, The Macmillan company, 1911, p. 110. Em Inglaterra, país com

produção de dados acerca de procedimentos de aborto, podemos notar que em Julho de 2013 uma comissão do Parlamento inglês concluiu que o direito ao aborto poderia estar a constituir uma discriminação, uma vez que em casos extremos eram realizados procedimentos de aborto unicamente devido à deteção de lábio leporino, John Bingham, “MPs: Abortions being carried out for cleft palates”, The Telegraph, 17 July 2013, London.

87 Paolo Santoni-Rugiu, “Cleft Lip and Palate”, in A History of Plastic Surgery, Berlin, Springer, 2007. 88 Os primeiros procedimentos cirúrgicos documentados de sutura do palato são datados do século

XIX, Ira M. Rutkow, The History of Surgery in the United States, 1775-1900, vol. 2, San Francisco, Norman Publishing, 1992, pp. 291–293.

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Em seu best-seller editado em 179689, Benjamin Bell afirmava que, a

depender do grau de deformação, o lábio leporino impedia [sic.] uma criança de sugar90. Ainda que reconheçamos as dificuldades de se alimentar um recém-nascido

com fenda palatal, o impedimento notado por Bell deixa questões significativas sem resposta: o que era feito destas crianças que “não podiam sugar”? Para os casos em que era possível alimentar o recém-nascido, o autor defendeu a aplicação de uma fina placa de ouro ou prata, juntamente com uma “esponja” de modo a fechar a fenda palatal. Segundo ele, se bem colocada e firme, esta ajudaria na deglutição e na fala. No entanto, Bell afirma que nos casos mais acentuados, a fenda palatal impedia que esta placa fosse eficaz no fechamento da fissura91.

Mas se Bell afirma que nem todos os casos seriam irremediáveis, esta perspetiva não ocorre noutros tratados de cirurgia do período. Na reduzida quantidade de escritos sobre o tema, foram, portanto, raros os que indicaram intervenções na fenda palatina. Sem qualquer indicação de cura, podemos nomear o tratado de cirurgia de William Northcote, especialmente o capítulo “Of the operation for the hare-lip”92, o livro Elementos de Cirurgia de John Syng Dorsey93, ou o

Dicionário de Saúde de Pierre Sue – também conhecido por “Sue, o moço” – onde

este afirma que um “tipo” de lábio leporino por ele chamado de composto (a fenda palatal) seria incurável94.

89 I.M.C. Macintyre, “Scientific surgeon of the Enlightenment or ‘plagiarist in everything’: a reappraisal

of Benjamin Bell (1749–1806)”, The Journal of the Royal College of Physicians of Edinburgh, vol. 41, n. 2, 2011.

90 Benjamin Bell, “Of the Hare-Lip”, in A system of surgery, vol. 4, 6th ed., Edinburgh, Printed for Bell

& Bradfute, 1796, p. 455.

91 Ibid., pp. 480–481. Actualmente, há procedimentos cirúrgicos que aplicam grosso modo esta

técnica, onde uma pequena fenda palatina pode ser fechada sem a necessidade de cirurgia reparadora, sendo que em alguns casos utiliza-se uma solução alternativa de tratamento, a saber, a prótese de palato. No entanto, a palatoplastia continua a ser o procedimento mais utilizado para corrigir a fenda palatal.

92 William Northcote, The Marine Practice of Physic and Surgery: Including that in the Hot Countries,

Particulary Useful to All who Visit the East and West Indies, Or the Coast of Africa, to which is Added Pharmacopoeia Marina, vol. 1, London, W. and J. Richardson, 1770.

93 John Syng Dorsey, “Of the Mal-formations: Of hare-lip”, in Elements of surgery: for the use of

students, vol. 2, 2nd ed., Philadelphia, Published by Edward & Richard Parker and Benjamin Warner,

1818.

94 Pierre Sue [le Jeune], Dictionnaire Portatif Chirurgie, ou Tome III du Dictionnaire de Santé, vol. 3,

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Pelos relatos, podemos presumir que estes recém-nascidos eram levados para casas de recolhimento ou mortos assim que a fissura era detetada. No que toca a este aspeto cultural, cabe frisar que não intentamos estabelecer relações diretas entre as motivações culturais atuais e as setecentistas, uma vez que são totalmente diferentes, pois o lábio leporino, tal como os gémeos siameses, era concebido no século XVIII como uma monstruosidade. Todavia, se atualmente tantos são os casos relatados de aborto95, quando há um processo de correção da fissura labial e da

fenda palatina afiançado por cirurgias, o que se pode esperar quando esta era vista como uma monstruosidade? Em outras palavras, a anomalia existia e não é porque foi relativamente pouco documentada ou porque a discussão historiográfica é, ao que nos parece, insuficiente, que as consequências de sua ocorrência são insignificantes.

Concluindo, consideramos que esta discussão sobre o lábio leporino e a fenda palatal permite olhar, de modo mais complexo, para a visão de saúde-doença no século XVIII, onde não apenas as doenças, como a varíola, poderiam ser mortais, mas onde as perceções culturais de saúde-doença influenciavam igualmente as condições de sobrevivência de determinados grupos, como por exemplo as dos portadores de anomalias.

95 Um conjunto de pesquisadores europeus dedicado à anomalias congénitas, o Eurocat, detectou

que 157 procedimentos abortivos foram conduzidos na Inglaterra e País de Gales entre 2006 e 2010, o que corresponde a dez vezes mais abortos devido à lábio leporino que o reportado pelo Departamento de Estatísticas da Saúde da Inglaterra Stephen Adams, “Cleft lip abortions “10 times as common as reported””, The Telegraph, 3 February 2013, London.

29 Imagem 1: Benjamin Bell descreve o processo e apresenta representação visual de como deveria ser realizada uma sutura com pinos/agulhas96. Detalhe deste modelo de sutura com agulhas também

pode ser encontrada em Elements of surgery97. Esta técnica está documentada desde o século XVI98.

96 Benjamin Bell, A System of Surgery, vol. 4, Edinburgh, Printed for Charles Elliot, 1786 Plate LVII. 97 John Syng Dorsey, Elements of surgery: for the use of students, vol. 1, 2nd ed., Philadelphia,

Published by Edward & Richard Parker and Benjamin Warner, 1818 Plate I.

98 Jacques Guillemeau, Operations on the cheek and for harelip, and instruments, Dordrecht, I. Canin,

30 Imagem 2: Imagem referente ao artigo “Observations sur les becs de lièvre venus de naissance”99. É

interessante observar a preocupação dada à condição do lábio pré e pós-operatório, bem como a presença de informação/representação sobre consequências no nariz (“caído”), o que torna este texto único, pois os demais não fazem referência a consequências no nariz.

99 De la Faye, “Observations sur les becs de liévre venus de naissance, Où l’on expose les moyens de

corriger cette espèce de difformité”, in Mémoires de l’Académie royale de chirurgie, vol. 1, Paris, Chez Charles Osmont, 1743.

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De insignificante à endémica, a erisipela e o Rio de Janeiro no século XVIII Um outro caso pouco debatido pela historiografia é o segundo exemplo que nos propusemos analisar: a erisipela. Trata-se de uma doença pouco conhecida, uma infeção bacteriana usualmente causada por Streptococcus β-hemolítico do grupo A, que invade o corpo por meio de pequenas entradas, como arranhões, picadas de insetos, úlceras e pequenas infeções100. Com baixo grau de letalidade, exceto em

casos de imunodepressão e insuficiências específicas101, apresenta-se muitas vezes

associada à febre puerperal, sendo tratada com penicilina ou por uma associação de antibióticos102. Porém, pode ser fatal se não for tratada com tais medicamentos103,

pois pode provocar trombose vascular, liberação de toxinas no organismo e bacteremia104, ou seja, a presença de bactérias no sangue (o que, apesar de raro,

pode levar à sepse ou choque séptico).

Mas se devido aos remédios esta é hoje uma doença branda, a realidade setecentista era assaz diferente. Em princípios do século XIX, o francês Léopold Joseph Renauldin dedicou toda uma obra a discutir a doença, suas características, causas e terapias. Ele divide-a em seis tipos diferentes e receita a quina como tratamento principal105. Mas não foi o único, ela era endémica em muitas regiões,

como a cidade do Rio de Janeiro106, onde o cirurgião Domingos Ribeiro dos

Guimarães Peixoto elaborou sua própria classificação no opúsculo Prolegômenos,

100 E. Doberentz et al., “Unbehandeltes Erysipel”, Rechtsmedizin, vol. 21, n. 4, 2011, p. 311. 101 Mónica Caetano and Isabel Amorim, “Erisipela”, Acta Medica Portuguesa, n. 18, 2005.

102 Christine Hallett, “The Attempt to Understand Puerperal Fever in the Eighteenth and Early

Nineteenth Centuries: The Influence of Inflammation Theory”, Medical History, vol. 49, n. 01, January 2005, p. 16; Mónica Caetano and Isabel Amorim, “Erisipela”, p. 391.

103 Um recente caso não tratado foi reportado, onde uma senhora de 46 anos morreu após recursar-

se a ir ao médico e realizar o tratamento com antibióticos. É um exemplo recente, mas que auxilia a perceção dos graves efeitos que uma erisipela não remediada pode gerar. E. Doberentz et al., “Unbehandeltes Erysipel”.

104 James E. Fitzpatrick, “Bacterial infections”, in James E. Fitzpatrick and Joseph G. Morelli (eds.),

Dermatology Secrets Plus, 4th ed., Philadelphia, Elsevier, 2011, pp. 190–192; Daniel Levy, “Erysipelas”,

in David Zieve et al. (eds.), MedlinePlus Medical Encyclopedia, Bethesda, U.S. Department of Health and Human Services; National Institutes of Health, accessed 16 December 2014, at http://www.nlm.nih.gov/medlineplus/ency/article/000618.htm.

105 Léopold Joseph Renauldin, Dissertation sur l’Erysipèle, Paris, Chez Gabon, 1802, p. 70.

106 Nireu Oliveira Cavalcanti, O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão