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5 DO PODER DAS ORGANIZAÇÕES À GESTÃO COMO DOENÇA

5.2 O domínio ideológico

Para se compreender a internalização dos esquemas de poder e controle das organizações capitalistas contemporâneas, é preciso, primeiro, identificar que a respectiva consolidação provém da assimilação de uma ideologia estruturada e multifacetada.

Ideologia deve ser entendida não como sistema de representação monolítico, forjado para mascarar e ocultar a realidade árida de que a finalidade última e primordial de uma empresa é fazer proliferar o lucro. Isso é muito pouco.

Ideologia constitui-se, de fato, por meio de uma colagem de valores sem conexão interna, mas que traduzem aspirações das diversas camadas da sociedade de cujo trabalho se apropria o sistema produtivo, manipulados para a contemplação dos propósitos e intenções de quem detém o poder e o capital. É forma de cooptação da vontade das pessoas; é exercício da dominação pelo poder da persuasão, com o intuito de aumentar a exploração.

Diante de tal constatação, os métodos contemporâneos de gestão do trabalho adotado pelas organizações capitalistas se baseiam na estrutura das igrejas para manter a adesão voluntária dos trabalhadores aos seus esquemas de subordinação (PAGÈS et al., 1987, p. 77).

Com tal intuito, formatam um conjunto de regras minuciosas e coesas, formando um dogma; cuidam de criar documentos nos quais tal dogma vem explicitado – os manuais de empresa; estipulam uma estruturação hierarquizada; agrupam uma massa de trabalhadores intensamente doutrinada, à semelhança de uma massa de fiéis; consubstanciam um núcleo de poder onipotente e onisciente, à semelhança de um deus.

A gestão simplesmente racional de uma empresa e a busca pela superação racional das contradições inerentes ao sistema capitalista de produção não se mostram suficientes para suscitar a adesão e sujeição maciça dos empregados subordinados. É necessária a oferta, além das satisfações materiais, de satisfações de ordem ideológica e mesmo espiritual.

Salientam os autores que é principalmente a existência de um sistema estruturado, de uma filosofia global, que impulsiona as pessoas a aderir (PAGÈS et al., 1987, p. 77). É como se, inseridos em um quadro relativamente rígido, sustentado em valores heteronomamente estabelecidos, os indivíduos sentissem poder evoluir sem perigos e sem o ônus da responsabilidade de elaborar suas próprias normas, eleger seus valores e viver na conformidade deles.

Essa estrutura vem a ocupar o espaço vago deixado pela dissipação das religiões como mecanismos de controles. A empresa se apropria do ideário religioso, transpondo para os propósitos capitalistas o papel de um deus na condução da vida. Constatadas a insuficiência da moral religiosa para coibir as paixões humanas, a impotência da razão para governar os homens e a dificuldade para submeter as paixões por meio da repressão pura, a solução estaria em eleger uma paixão apta a compensar as outras. Assim, o lucro, até então a maior das

desordens, converte-se em paixão inofensiva, responsável por subjugar as paixões ofensivas (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009).

Mas isso não implica, necessariamente, a supressão das religiões. Diversamente, estas agem como um terceiro mediador, uma instância externa que, em geral, legitima o funcionamento das organizações, provendo argumentos para justificar as respectivas contradições e a exploração, em última análise.

Para sustentar o ideário, é preciso ser formatado um credo, conjunto de valores que norteiam o pertencimento às regras da instituição. Nesse contexto, valores tradicionais, como, por exemplo, a noção do sacrifício, da honra, da integridade, do respeito ao próximo, misturam-se a propósitos bastante distintos, originários da cultura capitalista, tais como o individualismo, a competição, a eficiência. O conjunto, assim, constitui uma moral de ação, com aspectos bastante práticos destinados ao funcionamento da organização.

Diante desse complexo de crenças, o trabalho ganha um novo sentido aos olhos dos trabalhadores, de contribuição para a transformação do mundo, para o desenvolvimento do progresso técnico, o aperfeiçoamento da tecnologia, das comunicações, do tratamento de doenças, da educação, etc. Aos trabalhadores, é emprestado o senso de colaboração com a coletividade, por meio da prestação dedicada do trabalho subordinado.

A fé na empresa presta-se, eficazmente, à atenuação das restrições inerentes a certas funções e condições de trabalho: mesmo o trabalho mais mecânico e automatizado ganha novo valor.

A excelência de cada indivíduo assegura a excelência da organização. O poder desta, sua eficácia, por outro lado, permitem o reconhecimento do trabalho e do valor dos indivíduos. É a imagem de uma estrutura harmoniosa, capaz de eliminar os conflitos inerentes.

A organização, dessa maneira, “assume o status de instância moral, de consciência transcendente ao mercado capitalista cujos propósitos são assim esvaziados” (PAGÈS et al., 1987, p. 82).

Ainda, “a lei da excelência é generalizada para toda a humanidade; como para todo um sistema religioso, enfim, trata-se de salvar a humanidade propondo a possibilidade de um mundo melhor”. A empresa como agente de promoção de um mundo melhor (PAGÈS et al., 1987, p. 82).

Além do credo, é preciso que se engendrem mandamentos, princípios que prolongam as crenças. São como máscaras dos reais propósitos da empresa; nada é dito sobre as estratégias de dominação dos mercados, de eliminação da concorrência, de busca pelo lucro, enfim.

Apenas a figura capitalista dos acionistas é visualizada. São eles apresentados como as pessoas que criaram os empregos, arriscando seus bens para tanto.

Os empregados, por conseguinte, possuem uma dívida com os acionistas, provedores do seu sustento. Fugir aos compromissos e propósitos da empresa representaria, portanto, atitude culpável de trair a confiança depositada em cada trabalhador.

O convencimento dos trabalhadores a aderir a tal esquema organizacional, a que os autores designam, metaforicamente, por “evangelização”. Para obter tal finalidade, são seguidas etapas: as entrevistas de admissão e avaliação, estágios de formação, encontros internacionais, jornais de empresa, notas técnicas, manuais de conduta, capacitações.

Com tal plexo normativo, a empresa se ergue à condição de entidade suprema, sujeito criativo da história. As crenças são no sentido de que a organização tem consideração pelas pessoas, oferece os melhores serviços e realiza todas as tarefas com o cuidado da perfeição. Ela suplanta as pessoas em suas realizações: é ela mesma que produz e concorre para a transformação do mundo.

A admiração, a fé, o amor são completados pela ideia de infalibilidade da organização, que se sobrepõe à fragilidade e à contingência humanas. Se há falhas, são tributáveis exclusivamente a cada indivíduo.

Configura-se a autopersuasão, com o indivíduo colaborando, voluntariamente, para a própria doutrinação. Não que os conflitos ideológicos deixem de aparecer: a consciência humana é conturbada, e, em suas idas e vindas de ideias, a influência de doutrinas contrárias àquela preconizada pela organização pode florescer ou ressurgir. Os sindicatos, a imprensa, as leituras podem vir a ter um papel importante nisso.

Mas essa contradição logo vem a ser suplantada, antes mesmo de vir a ser um fenômeno da consciência. O modo de apaziguamento, por assim dizer, é o apego ao princípio, utilitariamente eleito, extraído de um “velho fundamento

ideológico” (PAGÈS et al., 1987, p. 89), de que as falhas são tributáveis às pessoas, o ser humano é frágil e falível.

Assim, as contradições permanecem no nível dos fatos, sem desmentir, portanto, o “princípio” da falibilidade humana, que mantém pacificados os ânimos e refreadas as angústias provenientes da eventual constatação das contradições inerentes.

A origem da contradição ideológica é a conscientização, embrionária, das ligações políticas e econômicas das estruturas de gestão. A persuasão, como antes mencionado, destina-se, exclusivamente, a manter os indivíduos fiéis aos propósitos de lucros da empresa; vão além das contradições empíricas, daí a necessidade de fortalecimento da ideologia.

Visando a esse propósito, a autopersuasão não se pode limitar ao autoconvencimento, devendo fazer de cada indivíduo uma agente de difusão ideológica a serviço da organização, tão eficiente e convincente que disseminará uma ideologia produzida por ele mesmo, na qual ele crê e a qual responde aos seus questionamentos e aos dos demais, de uma só vez.

Para a manutenção de um sistema de crenças tão consistente, as organizações não se podem limitar ao reconhecimento do trabalho prestado, a engendrar recompensas pela sujeição dos trabalhadores, e necessário exigir deles comprometimento e dedicação, em prol dos ideais maiores, transcendentes da mera relação de trabalho subordinado. Entre esses valores, o essencial desejo de ser útil a uma coletividade, de inserir-se nela e, desse modo, dominar o ambiente social.

Segundo essa ideologia, o bom andamento da empresa, a felicidade do patrão e os salários altos resultam da atuação dos empregados. A causalidade é invertida. Referem os autores a que este seria o estágio mais profundo da alienação, a alienação ideológica: “não no sentido superficial de uma intoxicação pela ideologia oficial, mas de uma alienação da consciência social, da concepção que o indivíduo faz de suas relações com o mundo, baseado na sua experiência própria” (PAGÈS et al., 1987, p. 95).

Não apenas os desejos e medos do empregado subordinado são alienados, mas também a própria consciência de pertencer a uma coletividade, o desejo de integrá-la é pervertido, desviado e fraudado.

A alienação ideológica se ampara na alienação política, econômica e psicológica, com elas se correspondendo. Está, assim, enraizada na vida dos indivíduos e é produzida e reproduzida por eles.

O poder nas organizações é, assim, mantido não apenas como relação direta de comando, mas se imiscui em todas as estruturas criadas para assegurar a perpetuação dos respectivos ideários e objetivos. Compõe-se de uma multiplicidade de laços, que se estendem desde o momento da contratação até o momento do desligamento do trabalhador.

Portanto, é preciso ter-se em mente que as políticas de recursos humanos são ideológicas. Elas gerenciam, no aspecto econômico, as vantagens concedidas ao pessoal, em contraposição ao seu trabalho. No âmbito político, cuidam do controle da conformidade das regras e princípios estabelecidos pelas organizações, além disso, supervisionam a intronização das ideologias e praticam uma política de gestão de afetos, uniformizando o inconsciente massivo da organização por meio da neutralização da subjetividade.

Um dos exemplos do exercício do poder relatado pelos autores é a avaliação- conselho (PAGÈS et al., 1987, p. 100-104). Nesse expediente, o trabalhador é avaliado por critérios que a empresa elege como racionais e objetivos, mas tem a oportunidade de expor suas impressões e pontos de vista. São momentos previstos e controlados, padronizados mesmo, os quais, todavia, imprimem nos empregados a sensação de usufruírem da possibilidade de ter voz e escuta na empresa.

Por meio do processo de abstração, o valor do trabalho migra da própria realização das tarefas, para o resultado delas. Assim, pouco importam as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores na prática das tarefas, a eficácia da respectiva atuação reside na obtenção dos resultados planejados pela empresa. O fazer perde o sentido e somente é validado pela concretização dos seus resultados, em contradição com a própria definição de trabalho.

O dinheiro é o código dominante, logo, o trabalho não é caracterizado pelo ato de produção, pela relação concreta com o objeto realizado, mas pela retribuição em forma de salário e rendimento. O essencial passa a ser o medo de não cumprir o objetivo. Constatam os autores:

“Todas as redes de representação ideológica inculcadas pela empresa, toda dominação das políticas de pessoal, o conjunto das modalidades de exercício do poder e de transmissão das decisões, têm por consequência captar numa imagem a significação da

produção individual, da energia trabalho, de a enraizar no código do dinheiro (PAGÈS et al., 1987, p. 108).

Essa abstração tem que estar internalizada nas subjetividades, fora dessa estrutura, as pessoas são excluídas, desprovidas de sua posição de respeitabilidade social. São inúteis.

O poder, então, deixa de ser interpessoal e hierarquizado, não se encontra mais em um lugar preciso, nem ligado a um grupo específico; está integrado em toda a estrutura, de forma despersonalizada.

Uma das características da administração moderna consiste em analisar a realidade apenas por meio de métodos quantitativos, utilitários. O valor do indivíduo é aferido a partir da respectiva utilidade para a organização. São analisados o seu rendimento e a sua capacidade de adaptação às regras e às exigências da empresa. É uma linguagem matemática, que se pretende universal e científica, que serve às técnicas de poder que se presta a encobrir (PAGÈS et al., 1987, p. 113).

A organização em níveis hierárquicos confere a tal objetivação a despersonalização dos vínculos intersubjetivos de hierarquia. Dessa maneira, a avaliação do desempenho depende exclusivamente do empenho pessoal, afastando-se a competitividade e impondo a cada trabalhador o ônus de assumir, sozinho, os resultados do seu trabalho subordinado. É também de tal maneira que o dominante exerce o seu poder e garante a reprodução deste.

Para a manutenção da objetivação dos critérios, a organização precisa conhecer profundamente seu quadro funcional, de modo a evitarem-se os conflitos abertos: não há escolhas pessoais (supostamente), mas espaços previamente abertos, a serem gradativamente preenchidos, conforme critérios e medidas que englobam a carreira e a personalidade como um todo.

São levadas em conta a trajetória profissional, a história pessoal e as características de personalidade interessantes à organização; todas catalogadas e discretamente guardadas nos arquivos da empresa.

Outro mecanismo de difusão e consolidação do poder é a desterritorialização: o afastamento dos indivíduos das características da região de onde eles se originam. As culturas regionais são substituídas pelas culturas organizacionais, as quais se projetam, de modo relativamente uniforme, por cima das nacionalidades.

Essa substituição se opera de diversas maneiras, a exemplo do trabalho itinerante, da realização de cursos de capacitação e estágios, de intercâmbios para os locais onde se situa o centro do poder. Tais expedientes são incorporados pelos trabalhadores como benefícios, como privilégios decorrentes da relação de emprego subordinado. A suplantação das culturas locais é vista como inevitável consequência do progresso. Para a organização, o que importa é atenuar o peso dos laços que vinculam o indivíduo a tudo que não a integra.

Posicionando geograficamente os indivíduos, que se instalam nos locais por ela designados, a organização constrói não somente a trajetória profissional das pessoas, mas sua história pessoal, sua inserção social.

Nessa proposta de universalização dos valores organizacionais, até mesmo a linguagem é moldada para afastar os regionalismos e padronizar a comunicação. As organizações pretendem-se globais, aptas a substituir as sociedades locais a produzir pessoas desterrritorializadas, eficientes e dóceis, que desempenham eficazmente – e sem questionamentos – o trabalho subordinado a elas imposto.

O desenraizamento das pessoas, seu afastamento das ordens sociais- que, se aprisionam, também protegem-, impulsiona a formatação de um mercado de trabalho vulnerável pela busca de inserção (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009).