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5 DO PODER DAS ORGANIZAÇÕES À GESTÃO COMO DOENÇA

5.3 Gestão como doença social

Diante das análises até aqui dispostas, percebe-se que as práticas de gestão são estruturadas com o objetivo de definir orientações estratégicas, destinadas a pôr em atividade um sistema de ação coletiva, de condução de equipes, de ordenação do tempo e do espaço, de racionalização da empresa. São um sistema de organização do poder, a despeito de sua aparente neutralidade.

Isto é: sob roupagem de objetividade, pragmatismo e operacionalidade, a gestão implementa ideologias, fortemente estruturadas. As atividades humanas são ressignificadas por meio da orquestração de marcadores de desempenho, voltados ao alcance de todos os objetivos que convergem para um propósito fundante: o lucro.

Entre a organização científica do trabalho e o gerenciamento do poder nas multinacionais, as transformações no exercício e na própria natureza do poder gestionário foram profundas. É cada vez mais difícil identificar as conexões entre um

poder gestionário complexo, em rede (reticular), transnacional, virtual e os indivíduos a partir dos quais ele emana.

A gestão gerencialista é uma mistura de regras racionais e métodos de controle sofisticados e objetivos com prescrições inaplicáveis, metas inatingíveis. Tal modelo de gestão conta com a adesão dos corpos e mentes das pessoas, cuja crítica deve ser neutralizada, pela força da adesão falsamente voluntária ao modelo produtivo (GAULEJAC, 2009, p. 37).

Para Gaulejac (2009, p. 38), a ideologia gerencialista preenche o vazio ético do capitalismo contemporâneo, afastado dos ideais religiosos reformistas iniciais. Além disso, alinha-se com ele em suas características de desterritorialização e abstração do capital. O desenvolvimento do capitalismo financeiro impõe a despersonalização das fontes do poder.

Àquela abstração, corresponde um modelo de trabalho cada vez mais instável, móvel e flexível. Nesse contexto, a ética dos resultados substitui a moral: o projeto do capitalismo procura em si mesmo a própria finalidade.

A figura do manager exemplifica especificamente a contradição contemporânea de capital/trabalho (GAULEJAC, 2009, p. 39):

De um lado, uma forte identificação com o „interesse da empresa‟, uma interiorização da lógica do lucro, uma adesão às normas e aos valores do sistema capitalista; do outro, uma condição salarial submetida às imprevisibilidades da carreira, ao risco de dispensa, à pressão do trabalho e a uma competição feroz.

O papel do gerenciamento, no cotidiano, é produzir mediações entre elementos contraditórios, como o capital, o trabalho, a matéria-prima, a tecnologia, as regras, os comportamentos.

Nesse contexto, o manager tem papel central, administrando as tensões das exigências por lucro, adaptação ao mercado e a melhoria das condições de trabalho. Diz o autor que o modelo fordista procurava conciliar esses três polos de demanda, circunstância suplantada pelo “duplo movimento” da internacionalização e financiarização do capital, que mudou profundamente a relação entre capital e trabalho (GAULEJAC, 2009, p. 40).

Desde quando a lógica financeira suplanta a lógica da produção, há inegável endurecimento da relação capital/trabalho. A gestão de pessoal e das relações sociais é substituída pela gestão de recursos humanos, custo a ser, sempre, reduzido.

Um bom gerenciamento valoriza a adaptabilidade, a reatividade, a flexibilidade. “No universo hiperconcorrencial com o qual a empresa deve se confrontar, a imediatidade das respostas constitui uma regra de sobrevivência absoluta” (GAULEJAC, 2009, p. 41). Isso sob uma tensão perene: nenhum atraso, tempo exato, fluxos tensos, tudo sempre melhor, mais rápido e com menos recursos e meios.

A exigência dos mercados financeiros, urgentes e intensamente oscilantes, traduz-se em reviravoltas estratégicas, ajustamentos brutais, destinados não ao melhoramento da organização industrial, mas ao apaziguamento das demandas pouco racionais daquele. O capital se apoderou da empresa.

Com frequência, planos sociais e fechamentos de serviços, públicos ou privados, são determinados pelas vontades do mercado financeiro.

Destarte, o gerenciamento pretendeu-se relacional, pragmático e liberal do exercício de poder da empresa, mas na prática, esse propósito se desviou, pela necessidade de serviço ao poder financeiro. Como repercussão, as tendências hoje são, globalmente, em desfavor do trabalho.

Nesse ambiente, constata-se uma tríplice evolução, que vem se acentuando nos últimos anos: o deslocamento das unidades de produção para os países sem rede de proteção social, o enfraquecimento da credibilidade e do poder dos sindicatos; a neutralização das reivindicações e lutas coletivas, com o incentivo da individualização da relação de trabalho.

Em um plano mais amplo, constata-se que a mundialização do capital produz uma ruptura entre o poder político e o econômico. Aquele permanece territorializado, nacional; este, desterrritorializado, internacional. A globalização econômica não trouxe consigo a mundialização da política.

O poder econômico, atualmente, paira sobre a política e as organizações sociais, produzindo rupturas de valores, transformações na cultura. “Ele gera seu próprio tempo, suas próprias normas, seus próprios valores, sua própria cultura” (GAULEJAC, 2009, p. 55).

A evolução das relações entre o capital e o trabalho é caracterizada pelo desequilíbrio gerado pela ausência de controle democrático sobre o seu desenvolvimento. O capital desterritorializado se apropria do trabalho igualmente desterrritorializado.

Todavia, em paralelo à imensa liberdade de circulação de dinheiro e mercadorias, vê-se o crescimento das restrições para livre circulação de pessoas. A circulação de trabalhadores é limitada, trabalhosa e duramente regrada. Sua permanência nos polos de exploração do trabalho com baixo custo é imperiosa.

Define-se uma oposição nítida entre duas visões de mundo: uma obcecada pela necessidade de liberar os mercados financeiros, reduzir déficits públicos, conter a inflação, reduzir serviços públicos, abolir protecionismos; outra, dedicada a reduzir a pobreza, melhorar a saúde, a educação, e manter o consumo cotidiano e a possibilidade de produção suficiente a assegurar a manutenção de condições decentes de vida.

O mundo financeiro se interessa pouco pelo mundo do trabalho, ao qual sempre cabe adaptar-se às exigências da economia financeira.