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5 DO PODER DAS ORGANIZAÇÕES À GESTÃO COMO DOENÇA

5.4 Gestão e ideologia

Inicialmente concebida como conjunto de técnicas destinadas à melhoria no aproveitamento dos recursos financeiros, materiais e humanos, a gestão – como já se pode compreender – é sempre direcionada à consecução de uma finalidade previamente determinada.

Criada por engenheiros, originariamente, a gestão partia da premissa de um ambiente físico de fábrica, como um conjunto mecânico (GAULEJAC, 2009, p. 64). Mais recentemente, foram incorporadas outras preocupações, como o fator humano, suas interações, sua complexidade.

Ela passa, então, a uma disciplina multiforme. Ao se definir pela persecução de uma finalidade prática – fazer funcionar a empresa –, a gestão se decompõe em domínios especializados, a exemplo da gestão estratégica, da gestão de produção, comercial, contábil, de marketing, de recursos humanos, entre outras.

É um sistema de interpretação do mundo social, que traduz uma ordem de valores, para concepção de um modelo de ação. Assim, por trás dos instrumentos, procedimentos e estruturas está um sólido e organizado sistema de crenças. Uma sólida ideologia.

Ou seja, um conjunto de crenças sistematizado, tendo como norte a multiplicação do lucro. Para tanto, é organizado um projeto de dominação,

dissimulado em técnicas supostamente neutras, calcado na modelação de condutas humanas e na dominação da economia para priorização da obtenção de lucro.

Esse objeto evidencia-se com a análise dos mecanismos de poder, dos quais são objeto a formação e a pesquisa em gerenciamento. Em geral, o padrão é o modelo americano que impõe suas regras ao mundo inteiro.

Os EUA consolidam sua dominação pela difusão do conhecimento a respeito das técnicas gerenciais. Explanando sobre o tema, exemplifica Gaulejac (2009, p. 65): “A formação em gestão se torna uma arma geopolítica. Desse modo, uma das primeiras ajudas oferecidas em 2002 pelo presidente Bush ao Iraque é um programa de bolsas de formação em gestão nos Estados Unidos”.

Nas escolas de administração não se discutem as desigualdades sociais, os prejuízos deixados pelo sistema produtivo. A premissa dos estudos é a objetivação das variáveis. É esse paradigma objetivista que dá o verniz de cientificidade aos métodos, desenvolvidos segundo uma concepção utilitarista da ação e uma visão economicista do mundo.

Entende o autor (GAULEJAC, 2009, p. 69) que a preocupação pela objetividade é elogiável, mas pondera, com propriedade, que uma equação jamais permitirá compreender o comportamento dos homens e a história das organizações.

Não se confundem a racionalização e a razão. A racionalização é um mecanismo de troca, “a partir da pesquisa de uma linguagem comum e de uma preocupação de esclarecimento” (GAULEJAC, 2009, p. 69). Mas é também um mecanismo de defesa, que, sob o argumento da racionalidade, visa a neutralizar toda perturbação que a complexidade da vida possa impor à sua lógica.

A abordagem funcionalista não questiona as circunstâncias subjacentes às diferentes funções estruturadas no interior das organizações. Diversamente, busca desenvolver mecanismos de neutralização e adaptação.

Os conflitos são considerados disfunções, isto é, desvio das funções consideradas ideais. Trata-se de uma perspectiva organizada mais para normatizar do que para explicar. Sem dúvida, é um conhecimento conservativo do poder estabelecido. Com tal propósito, são esquematizadas diversas sanções aos tais desvios de conduta.

A crítica de Gaulejac (2009) a tal modelo centra-se na ideia de que o desenvolvimento das empresas só tem sentido se contribuir para a melhoria da sociedade, do bem-estar individual e coletivo. A redução da humanidade a uma

variável produtiva, ao lado da matéria-prima e da tecnologia implica posicionar o desenvolvimento da empresa como uma finalidade em si, desatrelada do desenvolvimento social, ao qual ela se encontra inegavelmente vinculada.

A finalidade da atividade humana não é mais o desenvolvimento social, mas o aproveitamento máximo dos recursos, para o êxito das empresas, a satisfação do mercado e o desenvolvimento de uma minoria privilegiada.

Nesse contexto, o indivíduo sujeito à gestão deve adaptar-se ao tempo dela, às necessidades produtivas e financeiras: a adaptabilidade e a flexibilidade são exigidas unilateralmente – as pessoas é que têm que se adaptar ao tempo da empresa, e não o contrário.

O tempo deve ser útil, produtivo, ocupado. A desocupação é inaceitável. A vida humana é dimensionada sempre sob uma perspectiva instrumental e produtivista.

O interesse da ideologia gerencialista é grandemente estimulado pelo incentivo a valores como o gosto de empreender, o desejo de progredir, a celebração do mérito ou o culto da qualidade (GAULEJAC, 2009, p. 81). São valores positivos que convergem com aspirações humanas profundas e dificilmente contestáveis.

A qualidade é um ideal mobilizador que estimula a iniciativa e o consenso. Traz em si a ideia de superação de metas de renda e desempenho com redução de custos. Difícil contraditar tal perspectiva. Por tal razão, o gerenciamento da qualidade espalhou-se rapidamente como o modelo a ser seguido.

As normas e os programas que definem qualidade são a expressão da cultura gerencial, cuja principal característica é transformar o humano em recursos, em nome de uma racionalidade que apresenta como melhoria de qualidade tudo o que representa, na verdade, incremento da lucratividade.

A empresa propõe um ideal e pede a seus agentes que o partilhem e nutram. “Esse processo de captação do Ideal do Eu por um ideal coletivo favorece a identificação, a mobilização psíquica e a adesão. A empresa se apresenta como um objeto de investimento comum” (GAULEJAC, 2009, p. 85). Cada pessoa deverá assimilar como seu o dever de investir em tal ideal/projeto: o sucesso de todos depende de cada indivíduo, como já explicitado por Pagés (1987).

O progresso deve ser contínuo: cada integrante tem de se inscrever numa lógica de progresso constante. A ausência deste é a estagnação, parar de progredir é morrer.

Mas isso é ilusão.

A aplicação à gestão de processos análogos à lógica do ser vivo conduz ao esquecimento de que a destruição é a eles inerente. Na realidade, todo progresso perpassa fases de regressão, daí ser tão evidente o cunho ideológico desse conjunto de ideias.

Um bom desempenho é a finalidade suprema. O culto a ele introduz, no mundo do trabalho, uma concorrência perene, que impõe ao conjunto de trabalhadores a urgência de produzir sempre mais, sentimento desatrelado de concretude. Isto é, o trabalho não se resume à realização de uma tarefa em um tempo pré-determinado, mas à realização de desempenhos: sempre mais rápido, mais preciso, mais ativo.

No gerenciamento contemporâneo, a formação da clientela deixa de seguir o caminho de identificação das necessidades destas para posterior oferecimento dos produtos. Inversamente, a empresa forma a clientela para atender às respectivas necessidades.

Ela se interessa pelo cliente à medida que ele possa representar aumento de sua fatia do mercado. A qualidade, de tal modo, provém da equação dos interesses dos acionistas com os interesses do cliente.

Em outras palavras: a satisfação do ideal de lucratividade da empresa e a contemplação dos interesses do mercado definem, em última análise, a qualidade dos produtos. A partir daí o consumidor é moldado a se interessar pelo que for oferecido, da forma como for oferecido.