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C) Estrutura da pesquisa

2. DOS CONDICIONANTES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE

2.8. Dos “interesses” (e direitos) públicos e privados envolvidos na atividade

2.8.2. Dos interesses e direitos dos ocupantes com e sem título: a

A análise da situação jurídica daqueles que possuem título que se referem a bens identificados como terrenos de marinha, deve-se se principiar com a resposta às seguintes questões: teriam eles direito de propriedade sobre os terrenos de marinha? Em outros termos, a eles seria reconhecido algum domínio em razão de ostentarem um título que aparenta legitimidade e foi constituído de boa-fé?

Essa matéria já foi objeto de abordagem neste trabalho, mais especificamente na seção 1.4, quando analisada a questão relativa ao fundamento de propriedade da União sobre os terrenos de marinha. Para completa compreensão do tema, há de se remeter o leitor àquele trecho do trabalho. No entanto, oportuno se fazer aqui um sucinto resgate dos argumentos ali aduzidos.

A propósito, asseverou-se que todos os terrenos de marinha, com o advento da promulgação da Constituição, e com fundamento no terminante decreto consignado no art. 20, VII, da CB/1988, integram o acervo imobiliário da União, não se havendo por reconhecido quaisquer direitos em favor de terceiros, sejam entidades públicas ou privadas. Essa conclusão decorre da inexistência de ressalvas no texto constitucional, o que autoriza concluir ter sido o intento do Poder Constituinte desconsiderar qualquer pretensão dominial sobre esses bens.

E o silêncio aqui não pode ser considerado acidental ou irrelevante, pois quando quis reconhecer direitos de terceiros em relação a outros bens imóveis, o texto constitucional fez expressa ressalva acerca dessa questão164.

Se a opção do Poder Constituinte foi a mais adequada do ponto de vista democrático, esta pesquisa também já se manifestou sobre o tema165. O que importa, no entanto, é que o questionamento que inaugurou esta seção deve ser respondido negativamente.

Sobre o assunto, também conforme já mencionado, é esse o entendimento pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, resumido pelo verbete da Súmula 496 cujo teor é o seguinte: “Os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União.”

164

Referencie-se, a propósito, o caso das ilhas oceânicas e costeiras. Quanto a estas, o art. 30, IV, do CB/1988 ressalvou a propriedades dos demais entes da Federação, bem como, quando conjugado ao art. 26, II, também a propriedade de terceiros (particulares).

165

Os pronunciamentos judiciais que ensejaram a expedição da referida Súmula têm como premissa principal o argumento de que o processo de demarcação possui natureza meramente declaratória166, sendo a própria Constituição o fundamento da propriedade da União, aliado ao fato de que, desde quando descoberto o Brasil, seja ainda na condição de colônia ou já quando estabelecido soberanamente o Estado Brasileiro, os terrenos de marinha jamais deixaram de pertencer à União. É essa a razão de se afirmar que a aquisição desses bens se deu de forma original167. É a Constituição, nada menos, o título que confere formalmente à União a dominialidade sobre os terrenos de marinha.

Os particulares, por sua vez, ostentam títulos de menor prestígio, que por isso mesmo não podem ser opostos à União, sendo inclusive prescindível, pelo que entende o STJ, a propositura de uma ação judicial visando à desconstituição destes168.

Desse modo, afastada a existência de direitos de propriedade a serem reconhecidos em favor de terceiros que possuem títulos sobre terrenos de marinha, cabe a interrogação acerca da existência de algum direito fundamental, de outra natureza (diversa do direito de proptiedade), que deve ser de igual modo preservado pelo Estado. E assim mais uma questão se apresenta: deve-lhes o Estado alguma proteção quando desenvolve a atividade demarcatória? A esta indagação a resposta é forçosamente positiva.

Conforme se extrai da exegese do art. 9.º, inciso II, da Lei n.º 9.784/1999169, interessado é aquele que tem direitos ou interesses suscetíveis de serem atingidos de algum modo pelos efeitos da decisão a ser proferida em um processo administrativo. Cumpre esclarecer que a expressão adotada pelo legislador ordinário não representa ofensa ao texto constitucional, na medida em que sua amplitude abrange ambas as figuras mencionadas pelo art. 5.º, LV, da CB/1988170, quais sejam, os “litigantes” e os “acusados em geral”.

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“(...)2. Consectariamente, algumas premissas devem ser assentadas a saber: (...) b) O procedimento de demarcação dos terrenos de marinha produz efeito meramente declaratório da propriedade da União sobre as áreas demarcadas. (...)” (REsp 798.165/ES, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 19/04/2007, DJ 31/05/2007, p. 354).

167

Ver seção 1.4, em especial a nota de rodapé número 71.

168

“(...) 3. Não se exige da União o ajuizamento de ação própria para anulação dos registros de propriedade dos ocupantes de terrenos de marinha, em razão de o procedimento administrativo de demarcação gozar dos atributos comuns a todos os atos administrativos: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade; sendo, portanto, legítima a cobrança da taxa de ocupação em terrenos da União. Precedentes do STJ. (...)” (Ag no REsp 1241554/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 07/06/2011, DJe 12/09/2011)

169

“Art. 9.º São legitimados como interessados no processo administrativo: (...)

II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada;”

170

“LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

A partir dessa compreensão, há de concluir que o título que possui o particular, se não assegura ao seu detentor qualquer direito de propriedade, produz o efeito de outorgar ao seu favorecido a condição de interessado no processo de demarcação dos terrenos de marinha, pois desse feito resulta a desconstituição parcial171 do título que antes se acreditava outorgar domínio sobre o bem nele especificado.

Sobre essa questão, o STJ já emitiu pronunciamento, sendo oportuna a transcrição de trecho de sua ementa:

(...) 4. Esta Corte Superior possui entendimento pacificado no sentido de que o registro imobiliário não é oponível em face da União para afastar o regime dos terrenos de marinha, servindo de mera presunção relativa de propriedade particular - a atrair, p. ex., o dever de notificação pessoal daqueles que constam deste título como proprietário para participarem do procedimento de demarcação da linha preamar e fixação do domínio público -, uma vez que a Constituição da República vigente (art. 20, inc. VII) atribui originariamente àquele ente federado a propriedade desses bens.(...)

(REsp 1183546/ES, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 08/09/2010, DJe 29/09/2010).

Mas além da desconstituição do título, a conclusão do processo de demarcação produz também o efeito de autorizar a União a promover o cadastramento da ocupação e, em razão deste, efetuar as respectivas cobranças das taxas de ocupação. E por conta disso é que se confere, mesmo àqueles que sequer são detentores de títulos, a condição de interessados nos processos de demarcação.

Quanto a estes “meros” ocupantes, além de suportarem a cobrança de encargos como conseqüência mediata172 do processo de demarcação, o seu interesse decorre também em razão de que, com a caracterização dos imóveis como sendo terrenos de marinha, termina por lhes ser subtraída a possibilidade de, com o decurso do tempo na posse dos imóveis que ocupam, e mediante ação de usucapião, adquirir a propriedade desses bens. Isso em razão de que, conforme prescrevem os arts. 183, §3.º, e 191, parágrafo único, ambos da Constituição de 1988, os bens públicos não podem ser objeto de usucapião.

A condição de interessado em um determinado processo confere ao indivíduo uma esfera de proteção a que também se atribui o status de fundamental, a qual Marinoni e Mitidiero (2013, p. 699) designam de “Direitos fundamentais processuais”. Tais direitos

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A razão pela qual se considera apenas parcial a derrogação do título reside no fato de que, perante terceiros, para fins de invocação da proteção possessória por exemplo, ainda conserva ele alguma utilidade para o seu detentor. Além do mais, nos termos e nas hipóteses do que dispõe o art. 105, §1.º, do Decreto-lei n.º 9.760/1946, pode conferir ao seu favorecido preferência ao aforamento do terreno de marinha a que se referir.

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Diga-se mediata pois a efetiva cobrança das taxas de ocupação somente será veiculada após a conclusão do processo de cadastramento das ocupações. O cadastramento das ocupações é, portanto, providência que se verifica posteriormente ao processo demarcação, mas que se encontra condicionado à conclusão deste.

decorrem de normas constitucionais expressas e implícitas que se destinam a regular o processo, instrumento por meio do qual o Estado profere decisão ou se manifesta. Prestam-se tais direitos, assim, “a colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos mediante a organização de um processo justo” (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2013, p. 700).

Gilmar Mendes (2012, p. 214), por sua vez, utiliza a denominação “Direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais do processo”, embora faça a expressa ressalva de ser ela genérica e imprecisa, notadamente em razão de que pode conduzir à ideia de limitação à esfera jurisdicional, o que não é o caso, pois, segundo mesmo afirma Mendes, esses direitos se aplicam “no âmbito dos procedimentos administrativos em geral.”

Manifestamos, no entanto, preferência à terminologia adotada por Marinoni e Mitidiero, “direitos fundamentais processuais”, em razão de que esta, por adotar formulação que se atenta ao gênero (processo), e não a uma de suas espécies (judicial), afasta a imprecisão quanto ao âmbito de aplicação identificada por Mendes. Além disso, a referência ao vocábulo “garantia” pode conduzir à equivocada conclusão de que os direitos fundamentais processuais têm sua existência condicionada à de um direito material, o que não é correto.

A esta pesquisa, contudo, não convém minuciar a análise relativa aos direitos fundamentais processuais. Aqueles relacionados ao objeto deste trabalho serão oportunamente trabalhados, especificamente quando desenvolvido, mais adiante, o conceito de “processo justo”.

Antes, porém, como o presente estudo se propõe realizar uma “releitura do processo de demarcação à luz dos preceitos constitucionais vigentes”, impõe-se, precedentemente, expor sob que premissas metodológicas se pretende realizar esse intento.

2.9. A proposta hermenêutica de releitura do processo de demarcação dos