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C) Estrutura da pesquisa

3. A RELEITURA DO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DOS TERRENOS

3.1. A trajetória do processo como instrumento de realização dos direitos

3.1.2. Os direitos fundamentais e o (direito fundamental ao) processo

A ligação entre os direitos fundamentais e o processo é bastante íntima, circunstância que conduziu Alexy (2012, p. 488) a colocá-los em uma relação de essencialidade, ao afirmar que “direitos a procedimentos judiciais e administrativos são direitos essenciais a uma ‘proteção jurídica efetiva’”.

Esse entendimento é também compartilhado por Konrad Hesse (2009-B, p. 53), que pontua a relação de realização entre os direitos fundamentais e o processo nos seguintes termos:

Na medida em que os direitos fundamentais precisam consideravelmente de organização e procedimento, atuam, ao mesmo tempo, sobre o Direito Administrativo e o Direito Processual, os quais contribuem desta forma para realizá- los e assegurá-los.

Todavia, o processo ao qual se referem Alexy e Hesse não é qualquer processo, mas aquele que seja suficiente para assegurar que os direitos fundamentais dos indivíduos sejam efetivamente exercidos, ou ao menos colocados à disposição destes.

Marinoni e Mitidiero chegam a qualificar esse modelo de processo como necessário e indispensável para que o Estado possa ofertar aos indivíduos decisões justas, apontando-o como “princípio fundamental para organização do processo no Estado Constitucional”. E não se pode dizer que seja uma conclusão exagerada. A propósito da questão, é preciso atentar para o fato de que a Constituição, desde o seu preâmbulo, promove a associação entre o processo e os direitos fundamentais, bem como entre estes e o valor justiça.

Convém aqui transcrever o que disseram os constituintes do Estado brasileiro:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Esse compromisso de assegurar a justiça e de realizar efetivamente os direitos fundamentais extrapola, em muito, a simples noção de itinerário correto à qual a idéia de devido processo legal remete, ainda que este seja tomado em sua dupla acepção. É bem mais que isso. Relaciona-se às questões estruturais do Estado, aí se compreendendo sua organização em termos de aparelhamento, sua processualização mediante o estabelecimento de instrumentos dos quais os indivíduos possam se valer para realizar seus direitos fundamentais, e, por que não, a incorporação plena do sentimento vontade de Constituição215 à práxis governamental.

A menção à expressão “governamental” aqui foi proposital, devendo-se atentar para o fato de que ela foi tomada no sentido do conjunto de estruturas que conduzem politicamente o exercício do poder estatal, ou seja, uma conotação ampla que alcança todos os poderes constituídos, embora se ressalte esteja mais relacionada aos Poderes Executivo e Legislativo. Isso porque a todos os poderes importa compreender que o Estado não é “governo”, muito

215

Sobre o que seria vontade de Constituição, questão já esclarecida nesta pesquisa, Hesse (2009-E, p. 133) leciona: “Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta- se, também, na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. (…) A força que constitui a essência e a eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionando-a, conduzindo-a e transformando-se, assim, em força ativa. Como demonstrado, daí decorrem os seus limites. Daí resultam também os pressupostos que permitem a Constituição desenvolver de forma ótima a sua força normativa”.

menos “um governo”, pior ainda “um governante”. O Estado precede, é superior e condiciona a atuação do governo. Os compromissos estatais estão fincados na Constituição, e não em um programa de(um) governo(ante), de modo que não podem se vincular aos interesses deste.

É certo, contudo, que a coincidência entre os interesses do Estado e do governo é sempre almejada, embora por vezes, infelizmente, não se verifique. Contudo, deve-se ter em mente que ela se desenvolve em conformidade com a lógica constitucional, ou seja, “de cima para baixo”, do Estado para o governo, e não no sentido oposto.

Por conseguinte, é da Constituição que devem ser extraídos os elementos que integram esse ideal de processo justo. É dela que se projetam, de forma expressa ou implícita, diversos direitos fundamentais processuais, os quais são dotados de plena eficácia e, por conseguinte, ensejam reconhecimento e aplicação, ainda que inexista um direito material para ser tutelado. Daí se preferir utilizar o vocábulo “direitos” em lugar de “garantias”, já que existem abstratamente216, independentemente de que a pretensão deduzida seja rejeitada quando da decisão de mérito proferida pelo órgão estatal julgador (jurisdicional ou administrativo).

Recorrendo-se mais uma vez ao magistério de Marinoni e Mitidiero, é necessário aqui apresentar, sucintamente, quais sejam esses elementos do processo justo, o seu “perfil mínimo”, sendo conveniente advertir que esta pesquisa não contempla ou enseja o desenvolvimento do tema. Aqui, portanto, serão eles apresentados em conformidade com o entendimento dos aludidos doutrinadores, ao qual se manifesta concordância e adesão.

E nesse sentido, lecionam (MARINONI e MITIDIERO, 2013, p. 700-701):

O direito ao processo justo conta, pois, com um perfil mínimo. Em primeiro lugar, do ponto de vista da “divisão do trabalho” processual, o processo justo é pautado pela colaboração do juiz para com as partes. O juiz é paritário no diálogo e

216

Por óbvio que não se está aqui a sustentar que qualquer pretensão possa ser deduzida processualmente e justificar a instauração de uma relação processual. Longe disso. É de se reconhecer, sempre, que o processo de apresenta como instrumento de realização de uma pretensão admitida material e legalmente. Não atendido esse pressuposto, não há de se reconhecer o direito a uma decisão de mérito em um processo.

Importante esclarecer, ademais, que garantias fundamentais processuais não se encerram com a eventual decisão que reconheça a inexistência do direito material, sendo que muitas delas se conservam ou, até mesmo, tem lugar quando expedido provimento com conteúdo desfavorável ao interessado. É o caso, por exemplo, do direito à comunicação dos atos processuais e, ainda, do direito ao duplo grau de jurisdição (ou à pluralidade de instâncias, nos caso dos processos administrativos).

É bem verdade que alguns direitos processuais podem ser limitados após a decisão de primeiro grau (de jurisdição ou de decisão administrativa), como, por exemplo, o direito à (re)produção de provas. Essa circunstância, no entanto, não representará ofensa às normas constitucionais, uma vez que o direito a receber do Estado uma decisão não alberga a pretensão de ser esta decisão necessariamente favorável. Assim, sendo contrária, e mesmo diante do reconhecimento, constitucional e legal, de que a insatisfação é característica natural do ser humano, há de se por limites ao direito de não se conformar, prestigiando, assim, outros valores também reconhecimento constitucional e legalmente, como a segurança jurídica e a razoável duração do processo.

assimétrico apenas no momento da imposição de suas decisões. Em segundo lugar, constitui o processo capaz de prestar tutela jurisdicional adequada e efetiva, em que as partes participam em pé de igualdade e com paridade de armas, em contraditório, com ampla defesa, com direito à prova, perante o juiz natural, em procedimento público, com duração razoável e, sendo o caso, com direito `assistência jurídica integra e formação de coisa julgada.

O processo justo se presta, assim, a conformar o estado de coisas, a realizar no âmbito social aquilo que se encontra previsto e almejado no plano hipotético-normativo, mas que por alguma razão não se concretizou sem a intervenção do Estado-Juiz. É o processo que nessa acepção justa funciona como instrumento apto a forçar uma coincidência entre a “Constituição Jurídica” e a “Constituição Real,” reafirmando a normatividade dos preceitos constitucionais em face de quem (ou do que, quiçá do próprio Estado-Administração) ignorou este atributo.

E tomando por empréstimo os argumentos de Marinoni e Mitidiero (2013, p. 702), é preciso consignar que a justiça processual refere-se ao gênero “processo”, de maneira que também os processos administrativos estão submetidos a essa cláusula de proteção estabelecida na Constituição.