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Lezírias ou marinhas: qual instituto deu origem aos terrenos de marinha?

C) Estrutura da pesquisa

1.5. Lezírias ou marinhas: qual instituto deu origem aos terrenos de marinha?

Como se percebeu, na narrativa apresentada neste trabalho, sustentou-se que das marinhas (ou marinhas de sal) se originou o instituto dos terrenos de marinha. Contudo, essa questão ainda se encontra controvertida dentre aqueles que escrevem sobre o tema, pois alguns afirmam que os terrenos de marinha tiveram nas lezírias portuguesas o instituto que lhe emprestou os fundamentos. Esse entendimento, no entanto, não é procedente, conforme se demonstrará a seguir.

Sobre a origem dos terrenos de marinha, já em 1893 Carvalho (1893, p. 32) afirmava que estes derivaram das marinhas, sendo oportuno transcrever o trecho de sua obra do qual se extrai essa conclusão:

c) - A antiga marinha da Cidade.

Antes de regulada, como fez a legislação moderna, essa parte do domínio do Estado, conhecida pelo nome de marinhas, prestou-se a toda a sorte de invasões, que, toleradas e depois legalizadas, converteram-se em domínio particular, pleno ou menos pleno.

A associação da origem dos terrenos de marinha às marinhas também foi feita por Aarão Reis (1923, p. 312) , conforme se extrai da transcrição que se segue:

Em relação ao Brasil, data de 1678 a mais remota deliberação formal tomada e expedida — a respeito dos terrenos de marinha e acrescidos da cidade do Rio de

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Sobre o aspecto originário da aquisição dos terrenos de marinha, este decorre de não ter havido sucessão do proprietário anterior, e não por inexistir título. Título de propriedade havia, embora questionado, estando consubstanciado no Tratado de Tordesilhas celebrado em 1494, conforme anteriormente referido. E quanto a haver proprietários anteriores à chegada da esquadra de Cabral, estes existiam e eram muitos. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio - FUNAI (2015), estima-se que, por ocasião do descobrimento, a população nativa brasileira girasse em torno de 3.000.000 (três milhões) de índios.

Janeiro — pela Ordem Régia de 4 de dezembro, que, expressa e terminantemente, estipulava serem — estes mangues de minha propriedade (falava ElRey, representante nato, então, da coletividade nacional), por nascerem em salgado onde o mar só chega com a enchente.

À deliberação tal seguiram-se vários Avisos explicativos, confirmando, todos, o mesmo princípio, e são: - o de 18 de novembro de 1818, determinando serem sempre reservados, da linha d'água para dentro, 15 braças pela borda do mar; - o de 29 de abril de 1826, já do Império, esclarecendo dever de ser contada à distancia de 15 braças do bater do mar nas marés-vívas, e frisando o que se chama, propriamente, marinhas; - o de 13 de julho de 1827, definindo, em termos precisos, terreno de marinhas o que se compreende em 15 braças de terreno contadas do ponto onde chega a maré nas maiores enchentes.

Themístocles Cavalcanti (1950, p. 104) também relaciona a origem dos terrenos de marinha à legislação das marinhas:

Toda a nossa legislação, como veremos, desde as nossas primeiras leis, alvarás e decretos sobre as marinhas, até os decretos-leis mais recentes, sempre teve como base para demarcação da faixa de terrenos de marinha, a linha do preamar médio, fixado este pela influência das marés, em certas e determinadas épocas.

Mas além dos testemunhos de Carvalho, Aarão Reis e Themístocles Cavalcanti, há muitos outros argumentos que confirmam esse entendimento.

Segundo o dicionário Léxico70-71, lezíria significa “terreno alagadiço, na margem dos rios. Margens, que os rios alagam na enchente”.

O dicionário Priberan72 apresenta três definições possíveis para a palavra lezíria. A primeira delas, tal como o Léxico, afirma que lezíria seria o “terreno alagadiço nas margens de um rio”. Como segundo significado, afirma que pode ser tomado como ínsua73, que tanto pode ser uma “ilha formada numa foz ou por um rio” ou um “terreno marginal de rio”. O último significado apresentado para lezíria é o que afirma que se trata de uma “Ilhota de nateiros74”, significando esta última expressão “lodo fertilizador formado pela água das chuvas e detritos” ou “lodo depositado pelos rios quando se espraiam com as grandes cheias”.

Analisando-se todos os significados possíveis para a palavra lezíria, nos quais sequer se cogita a referência ao mar ou à água salgada, constata-se que o traço característico daquele instituto é sua relação com os rios, em especial com as áreas que margeiam tal espécie de corpo de d’água e que estão sujeitas a alagamentos.

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http://www.lexico.pt/leziria/

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Importante consignar que os dicionários acima são do português de Portugal, informação que se mostra relevante na medida em que, embora a língua tenha a mesma matriz semântica, há várias palavras que apresentam significados diferentes em Portugal e no Brasil.

72 http://www.priberam.pt/dlpo/lez%C3%ADria 73 http://www.priberam.pt/dlpo/%C3%8Dnsua 74 http://www.priberam.pt/dlpo/nateiros

A propósito do tema, Beirante (1998, p. 773) afirma que a palavra lezírias é de origem árabe, significando “terras que o rio arrasta e se depositam nas margens”. Madaleno (2006, p. 2) também promove a associação das lezírias com os rios, ao afirmar que “são porções de sedimentos fluviais que emergem pouco acima do nível médio das águas do mar e cuja fertilidade as elege como as preferidas tanto pelos homens como pelas aves migratórias.”

Mas essa relação não é ressaltada somente de agora, sendo observada desde 1823 por Alberto Carlos de Menezes (1923, p. 83 e 131), Desembargador da relação do Porto, como se observa nos trechos de sua obra a seguir transcritos:

Os bens da Coroa são (...) as terras criadas pelos rios navegáveis, como são ínsuas, lezírias, mouchões, acrescidos de inundações; (...)

As lezírias são terras criadas ao longo do Tejo, ou dentro do seu álveo, separadas de outras lezírias, ou juntas a outras lezírias já antigas da Casa Real; no Rio Mondego chamam-se ínsuas essas terras baixas, alagadiças, cortadas de braços, e alvcercas, ou escavações dos rios, e suas inundações; são terras, praias, cabeças de áreas criadas nos álveos, e ao longo do Tejo, chamados mouchões, assim como o mouchão dos Coelhos, mouchão do Inglês, mouchão de Alfange, e outros de que falo no meu Tratado do melhoramento da Agricultura: todos estes terrenos criados de novo são bens da Coroa, como sabiamente lhes chama este Regimento75;

É preciso reconhecer que, a despeito dessa associação com o regime das cheias dos rios, há possibilidade de que nas lezírias se verifique também a influência das marés, como se extrai do trecho do Relatório de Sustentabilidade de 2010, da Companhia das Lezírias S/A76:

Enquanto os terrenos da Lezíria Norte (66 km2) são ligeiros e de origem exclusivamente fluvial, os da Lezíria Sul (68 km2) são constituídos em parte por areias de origem marinha, estão sujeitos às marés e sofrem de forte salinização, apenas mitigada pela água das chuvas e das regas. No perímetro do estuário, existem extensas áreas de sapal de grande valor para a conservação da Natureza.

Contudo, embora se admita que o alagamento das lezírias possa se verificar também por influência das marés, essa circunstância não é essencial à caracterização da lezíria. Em outros termos: a influência das marés é ocorrência casual, não obrigatória, de modo que um ecossistema ser ou não qualificado como lezíria independe do contato com a água salgada. Na verdade, o que se constitui componente elementar para a caracterização das lezírias é sua relação com os rios, suas margens e áreas alagadiças.

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O regimento de que fala Menezes é o Regimento das Lezírias e dos Pauis, de 4 de fevereiro de 1577.

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A Companhia das Lezírias é uma sociedade anônima portuguesa, com capital predominantemente público, que se destina à exploração agropecuária e florestal em Portugal, na região das Lezíria de Vila Franca de Xira, Charneca do Infantado, Catapereiro e os Pauis (Magos, Belmonte e Lavouras). A referida Companhia existe há aproximadamente 185 anos.

Diferentemente disso, em relação às marinhas, o contato com a água salgada é tão elementar que beira obviedade, já que, consoante afirma Micael (2011, p. 13), a expressão “marinhas” corresponde à terminologia utilizada na documentação da Baixa Idade Média para designar o local de produção de sal, o que explica as diversas referências a esses espaços como “marinhas de sal”.(BASTOS, 2009, p. 27; VENTURA, 2007, p. 82).

Essa conclusão mais ainda confirma o entendimento de que as marinhas emprestaram suas origens aos terrenos de marinha, uma vez que, também quanto a estes, o contato com a água salgada é um elemento característico essencial, sobretudo para aqueles situados nas margens dos rios77. Neste sentido, conveniente se recorrer mais uma vez ao que leciona Themístocles Cavalcanti sobre o tema:

Os terrenos de marinha são aqueles que a lei define como tal. Compreenderão, portanto, as faixas territoriais definidas e delimitadas pela lei.

A sua noção está, entretanto, ligada à orla litorânea como à ação das marés, isto é, à penetração das águas do mar nas praias e no litoral, compreendidas aquelas terras banhadas pelas águas salgadas nas fozes dos rios.

Além da dessemelhança quanto às características físicas essenciais das lezírias e das marinhas, a questão da cronologia normativa também evidencia a ausência de pontos em comum nos regimes jurídicos desses dois institutos, já que coexistiram por quase trezentos anos, até quando pela primeira vez foi mencionada a expressão ‘terrenos de marinha” em 1829.

Como registrado neste trabalho, já em 1534 a expressão “marinhas” constou na Carta de Doação da Capitania de Pernambuco, passada por Dom João III em favor de Duarte Coelho. Todavia, embora existam registros de concessões de lezírias que antecedem o século XVI, o “Regimento das Lezírias78 e dos Pauis” somente foi expedido pelo Rei D. Sebastião I (O “Desejado”) em 4 de fevereiro de 1577, tendo ele a seguinte disposição inaugural:

Primeiramente declaro que todas as Liziras, assim como as criadas, como as que novamente se criarem em terras novas, e que se ajuntarem às ditas Liziras, ou a outras terras, ainda que sejam de áreas do rio do Tejo, e braços dele, são da Coroa de meus Reinos: porque, como Lisboa, Santarém e as outras ao redor foram tomadas aos Mouros pelos reis meus antecessores, logo por eles foram as ditas terras contadas, e aplicadas para Coroa, segundo se contém em uma Lei de declaração feita por ElRei Dom Affonsso Segundo79, que está na Torre do Tombo.

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Em conformidade com o disposto na parte final da alínea “a”, do art. 2.º do Decreto-lei n.º 9.760/1046, há terrenos de marinha situados nas margens de rios, desde que nestes se faça sentir a influência das marés, que se caracteriza “pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano”.

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Na obra original, o nome “lezírias” se encontra grafado como “liziras.”

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O que se constata, então, é que não há qualquer confusão conceitual entre as marinhas e as lezírias, tratando-se de institutos distintos e que, pelos menos desde o Século XIV, jamais foram disciplinados normativamente de modo idêntico ou similar. E disso decorre a impossibilidade de se fazer qualquer cogitação no sentido de que os terrenos de marinha tiveram, ainda que de forma mais remota e longínqua, origem nas lezírias portuguesas.

Mas de todos os argumentos que se tem para afastar definitivamente o equívoco de relacionar os terrenos de marinha às lezírias, sem dúvida alguma o mais relevante é a disciplina normativa das marinhas destinadas aos espaços litorâneos do Brasil, bem como sua posterior conversão no regramento inicial dos terrenos de marinha.

Diferentemente do que ocorreu em relação às marinhas, que já em 153480 foram mencionadas em diplomas destinados ao disciplinamento da ocupação das terras ainda no Brasil colônia, inexiste um documento oficial sequer que tenha feito referência às lezírias. Mais que isso, nenhuma fonte histórica menciona a expressão “lezírias” relacionando-a a qualquer espaço costeiro no Brasil. A propósito dessa questão, realizadas consultas a documentos digitalizados e disponíveis no Arquivo da Torre do Tombo, no Ius Lusitaniae (Fontes Históricas de Direito Português) e outros repositórios de legislação portuguesa, no Arquivo Nacional Brasileiro, na Câmara dos Deputados (do Brasil), Senado Federal, Supremo Tribunal Federal (obras históricas), nenhum dos resultados apontados como respostas positivas para o termo “lezírias”81 tinha qualquer relação com o Brasil.

Além disso, há de se ter claro que, quando criado o instituto em terras brasileiras no início do século XIX, inexistia no Portugal de então a categoria de bens denominada “terrenos de marinha” (SANTOS, 1985, p. 4). Isso não quer dizer que Portugal, antes daquela época, não tivesse dedicado atenção à disciplina das ocupações nos espaços costeiros. Aliás, já mencionadas nesta pesquisa, inclusive, diversas ordens, avisos e outros instrumentos que se destinaram a esse propósito82.

Também não se afirma aqui que, depois de instituídos os terrenos de marinha, Portugal não tenha também criado regramento específico para promover o ordenamento das

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O aludido diploma corresponde à Carta de Doação da Capitania de Pernambuco passada por D. João III em favor de Duarte Coelho.

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Foram feitas tentativas inclusive com o nome no singular, bem como com as grafias erradas: “lesíria”(s), “lizíria”(s) e “lisíria”(s). Tentou-se, ainda, a busca pelo nome “lezira”(s), que significa a mesma coisa que “lezíria”.

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orlas marítima e fluvial. Neste sentido, referencie-se o Decreto de 31 de dezembro de 186483, que declarou “do domínio público imprescindível, os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais e valas, os portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam (...)” (APA, 2013, p. 10).

Entretanto, o fato é que, até quando pela primeira vez foi mencionada a expressão terrenos de marinha pelo Aviso de 7 de julho de 1829, bem como até a vigência da Lei Orçamentária de 15 de novembro de 1831, não havia em Portugal instituto com a mesma designação ou, ainda, com regramento idêntico ou semelhante ao daquela espécie de bens.

Mas mesmo sendo um instituto nascido no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, é certo que a regulamentação dos terrenos de marinha não surgiu do nada. Não se tratou de uma “abiogênese” normativa. Conforme demonstrado efetivamente nesta pesquisa, o regime jurídico inicialmente estabelecido para os terrenos de marinha foi quase que integralmente herdado da disciplina normativa das marinhas.

Até 1809, toda a disciplina das marinhas no Brasil apontava que a vocação desses espaços seria a destinação ao serviço da Coroa e ao uso comum do povo, tudo em conformidade com as Ordens Régias de 21 de outubro de 1710, de 7 de maio de 1725 e de 10 de dezembro de 1726. Nada obstante, por meio do Decreto de 21 de dezembro de 1809, o soberano português, já em terras brasileiras, determinou que se concedesse parte dos terrenos das praias da Gamboa e Sacco do Alferes em aforamento ou arrendamento. Modificou-se com isso a vocação original das marinhas, que passam a ser áreas passíveis de utilização privativa por particulares, desde que em contrapartida estes promovam o pagamento do respectivo foro. Essa mudança de vocação das marinhas é o início da aproximação da disciplina desses espaços com o regramento dos terrenos de marinhas, pois estes têm no aforamento o principal regime de utilização pelos particulares.

Mesmo tendo sido autorizada a concessão de aforamento nas marinhas, não se tinham definidos os elementos característicos desses espaços, providência que somente foi adotada pelo Aviso de 18 de novembro de 1818, o qual estabeleceu como parâmetro para a largura das marinhas a “(...)linha d'água para dentro sempre são reservadas 15 braças pela borda do mar para serviço público, nem entram em propriedade alguma dos confinantes com as marinhas(...)”.

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Atualmente a questão é tratada em Portugal pela Lei n.º 54, de 15 de novembro de 2005. A propósito do tema, em Portugal as áreas adjacentes aos corpos de água integram o domínio público hídrico, a partir da idéia de que aqueles espaços corresponderiam à extensão dos mares, rios e lagos.

Esses dois instrumentos normativos, o Decreto de 21 de janeiro de 1809 e o Aviso de 18 de novembro de 1818, que ainda se destinavam a regular o instituto das marinhas, emprestaram os fundamentos ao regime jurídico inicial dos terrenos de marinha. O primeiro indicou a vocação de destinação dos terrenos de marinha, que seria a utilização pelos particulares mediante a constituição de aforamento e o pagamento do respectivo foro; e o segundo definiu quais seriam as características físicas destes espaços, que passou a utilizar o mesmo parâmetro de medida constante no Aviso de 18 de novembro de 181884, em conformidade com o disposto no art. 4.º das Instruções 14 de novembro de 183285.

A partir de todas essas considerações, não há espaço para quaisquer dúvidas: no Brasil, os terrenos de marinha tiveram sua origem a partir das marinhas (ou marinhas de sal), das quais herdaram toda a disciplina normativa, assim como a medida de largura corresponde a 15 braças craveiras (33,00 metros).