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3 OS PRECEDENTES JUDICIAIS

3.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CARACTERÍSTICAS DOS PRECEDENTES NO COMMON LAW

3.1.2 A doutrina do stare decisis

Conforme ensinam Rupert Cross e J. W. Harris, é um princípio básico da administração da justiça que casos iguais devem ser decididos igualmente (treat like cases alike). Isso justifica o porquê de o precedente judicial ter ao menos um efeito persuasivo em quase todos os lugares, independentemente da tradição jurídica da qual fazem parte.295

Nos sistemas de common law, entende-se que o juiz não pode desapontar os cidadãos, o que aconteceria caso estes fossem surpreendidos por uma decisão que nunca poderia ter sido imaginada antes. Isso porque, normalmente, os cidadãos pautam suas condutas de acordo com os termos das decisões judiciais. Desse panorama, extrai-se o entendimento de que a previsibilidade é inerente ao Estado de Direito, sendo ela alcançada, no sistema de common law, pela prática de se obedecerem precedentes. E estabilidade, uniformidade e solidez são requisitos para que haja previsibilidade. Estando presentes essas condições, a igualdade, que é um dos principais fundamentos do sistema

293 MACCORMICK, Neil. 1966, p. 205 apud DUXBURY, Neil. 2008, p. 40. 294 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 35.

de precedentes vinculantes, acaba sendo respeitada naturalmente.296 A característica peculiar da doutrina inglesa do precedente é a sua forte natureza coercitiva, de modo que os juízes ingleses são, por vezes, obrigados a seguir uma decisão anterior, apesar de terem boas razões para não o fazer, não fosse essa acentuada coercibilidade.297

No entanto, ao traçar linhas históricas sobre a doutrina do precedente judicial, Neil Duxbury afirma que, no século XIII, embora as cortes pudessem, ocasionalmente, seguir e, até mesmo distinguir precedentes, ninguém acreditava que elas pudessem estar vinculadas por uma decisão anterior. Assim, ainda que nas cortes medievais os precedentes fossem às vezes tratados como evidência do que o direito comumente era considerado, os juízes não hesitariam em dizer que precedentes não deveriam ser confundidos com o direito298, embora autores como Bracton já ressaltassem a importância de ater-se, na decisão de casos similares, àqueles que já haviam sido decididos antes.299

Já no século XVII as cortes estavam prestando mais atenção do que nunca nos precedentes, mas ainda assim seria um engano pensar que os juízes, naquela época, consideravam decisões particulares como vinculantes. A teoria do stare decisis, tal como hoje é concebida, ainda não existia naquela época. Tais fatos, segundo Neil Duxbury, apontam para uma conclusão: o common law não precisa de uma doutrina do precedente para funcionar.300

Sendo assim, deve-se deixar claro que o common law não se confunde com stare decisis. Nesse sentido, Simpson assevera que, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dos precedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, estará fadada ao insucesso, pois a elaboração de regras e princípios regulando o uso dos precedentes e o seu status de autoridade são relativamente modernos, e a ideia de que podem existir precedentes vinculantes é mais recente ainda. O common law existe há séculos antes de qualquer pessoa se entusiasmar com tais questões, e ele funcionou muito bem como sistema de direito sem certos adereços e

296 ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. 2009, p. 5. 297 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 3. 298 DUXBURY, Neil. 2008, p. 32-33.

299 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São

Paulo: RT, 2004, p. 153.

conceitos como, por exemplo, o conceito de ratio decidendi.301

Com efeito, ao estar diante de um caso para julgamento, o juiz poderá se deparar com diversos tipos de precedente para levar em consideração, em menor ou maior grau. Assim, o juiz pode estar obrigado a simplesmente considerar uma decisão anterior como parte do material a ser levado em consideração para elaborar a decisão do caso presente, ou ele pode estar obrigado a decidir o caso presente no mesmo sentido do caso anterior, ao menos que ele exponha uma boa razão para não o fazer. Por fim, o juiz pode estar obrigado a decidir o caso presente no mesmo sentido do caso anterior, mesmo que ele tenha boas razões para não o fazer. Nesta última hipótese, diz-se que o precedente possui efeito vinculante (binding effect), em contraste ao efeito meramente persuasivo dos precedentes levados em consideração nas hipóteses anteriores.302

A teoria moderna do precedente vinculante em seu sentido próprio, ou seja, abarcando a vinculação das cortes inferiores aos precedentes das cortes que estão acima delas, começou a tomar corpo na segunda metade do século XVI e veio a se consolidar completamente no direito inglês apenas no final do século XVIII, como reflexo da teoria declaratória de William Blackstone, quando afirmava que os precedentes deveriam ser seguidos, salvo quando manifestamente absurdos e injustos. Nesse sentido, observam-se vários julgados de Mansfield, ao longo da segunda metade do século XVIII, nos quais ele seguia precedentes, apesar de desaprová-los.303

Nesse sentido, colhe-se o pronunciamento de Parke J. quando do julgamento do caso Mirehouse vs Rennel, pelo King´s Bench em 1983:

O nosso sistema de common law consiste na aplicação, a novos casos, de regras legais que extraímos de princípios jurídicos e de precedentes judiciais; e, com o escopo de obter uniformidade, consistência e certeza, devemos aplicar tais regras, onde elas não se afigurem irrazoáveis e inconvenientes, a todos os casos que surgirem; e não possuímos a liberdade de rejeitá-las e de desprezar a analogia nos casos em que elas ainda não foram judicialmente aplicadas, somente

301 SIMPSON, A. W. B. The common law and legal theory. In: HORDER, Jeremy

(ed.). Oxford essays in jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1973. p. 77 apud DUXBURY, Neil. 2008, p. 35.

302 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 4.

porque entendamos que as referidas regras não sejam tão razoáveis e convenientes quanto desejaríamos que fossem. Parece-me de grande importância ter presente esse princípio de julgamento, não meramente para a solução de um caso particular, mas para o interesse do direito como ciência.304

A doutrina do stare decisis, na sua versão mais forte - ou seja, com vinculação também no sentido horizontal, de modo que a House of Lords e as Courts of Appeal estariam vinculadas pelas suas próprias decisões anteriores - contudo, foi constituída em um tempo relativamente recente. Segundo Thomas da Rosa de Bustamante, a tese do efeito estritamente vinculante (strictly binding) do precedente horizontal foi insinuada pela primeira vez por Lord Eldon, em 1827, no caso Fletcher vs Sondes, defendida com especial ênfase na metade do século XIX por Lord Campbell - especialmente no caso Beamish vs Beamish, no ano de 1861 - vindo a ser definitivamente sedimentada apenas no caso London Tramways Co. vs London County Council, no ano de 1898.305

Nesse caso, a discussão girava em torno de quanto a empresa London Tramways Co. receberia de indenização por ter sido desapropriada pelo London County Council. O método de calcular esses valores já havia sido estipulado quatro anos antes pela House of Lords ao julgar um recurso vindo da Escócia, no caso Edinburgh Street Tramways vs Lord Provost etc. of Edinburgh, tendo o mesmo método sido aplicado imediatamente em seguida no julgamento de um recurso inglês, no caso London Street Tramways Co. vs LCC, também no ano de 1894. Assim, a única questão que se decidiu no caso London Tramways Co. vs London County Council, foi se a House of Lords estava, ou não, vinculada aos seus precedentes, e a resposta foi positiva.306

A vinculação das cortes de apelação inglesas aos seus próprios precedentes, conforme asseveram Rupert Cross e J. W. Harris, também é produto do século XX, sendo que, em 1938, ainda encontrava-se decisões dessas cortes que não respeitavam os próprios precedentes.307

Com efeito, a influência de Jeremy Bentham para a doutrina do stare decisis pode se fazer sentir em ao menos dois sentidos.

304CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 26. 305BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012, p. 77. 306CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 102-103. 307CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 25.

Primeiramente, como relata Jim Evans, pela influência que ele exercia sobre Henry Brougham, que foi o grande arquiteto das reformas das cortes inglesas nas décadas de 1820 e 1830. Entre essas reformas, no que toca ao fortalecimento da doutrina do precedente, destacam-se a profissionalização da House of Lords, bem como a criação, em 1830, de uma única Cour of Exchequer Chamber, superior a todas as cortes de common law e intermediária entre estas e a House of Lords.308 Além disso, a criação dos law reports foi parcialmente baseada no argumento de Jeremy Bentham no sentido de que, se se deve aceitar que o juiz cria o direito (judge made-law), então deve-se ao menos ter os precedentes sistematicamente organizados e relatados.309 Por outro lado, de acordo com Thomas da Rosa de Bustamante, a teoria do precedente horizontalmente vinculante teve como fundamento justamente o positivismo jurídico do século XIX, capitaneado por Jeremy Bentham, que teria invertido por completo a balança entre a ratio e auctoritas, passando a atribuir mais peso à última e, portanto, colocando a segurança jurídica acima de todos os outros valores, de modo que mesmo decisões injustas ou irracionais deveriam ser seguidas.310

No entanto, vale abrir um parêntesis aqui para ressaltar uma grande contradição existente entre o positivismo clássico e a doutrina do stare decisis. Explica-se. Para os positivistas clássicos, até mesmo Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito311, a força vinculante de uma norma consiste no fato de elas serem respaldadas por alguma sanção imposta àquele que a transgrida.312 Pois bem. Embora alguma sanção formal possa ser imposta ao juiz que insistentemente se recusa a seguir precedentes aos quais estaria vinculado, não existe uma sanção legal e previamente estipulada para essa hipótese.313 Ou seja, surge aí uma questão de difícil resposta para o positivismo clássico: como podem os juízes estar obrigados a seguir precedentes se eles não estão ameaçados por nenhuma sanção legal na hipótese de não o fazerem?314 A resposta veio a ser dada

308 EVANS, Jim. Change in the doctrine of precedente during the nineteenth

century. In: GOLDSTEIN, Laurence (org.). Precedent in law. Oxford: Clarendon, 1987, p. 64 apud BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012, p. 88.

309 DUXBURY, Neil. 2008, p. 43.

310 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012, p. 86-90.

311 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado.

São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8.

312 DUXBURY, Neil. 2008, p. 14.

313 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 99. 314 DUXBURY, Neil. 2008, p. 19.

somente pelo positivismo contemporâneo de Herbert Hart, quando ele desmantela a teoria do direito como ordens coercitivas e apresenta o ponto de vista interno das normas, cuja característica é encará-las como padrões aceitos de conduta.315

Assim, fica clara a possibilidade de os juízes sentirem-se constrangidos a seguir os precedentes, mesmo que não exista uma sanção específica prevista para o caso de ignorá-los. Quando os juízes seguem precedentes, eles não fazem isso por temer uma sanção, mas porque seguir precedentes é visto entre eles como uma prática correta (padrão aceito de conduta), uma norma, cujo desvio é visto negativamente, lhes expondo à críticas, principalmente de seus pares.316

A autoridade dos precedentes no common law, portanto, não provem da lei. Dizer que ela é fruto exclusivamente do princípio de que casos iguais devem ser decididos igualmente também não é correto, uma vez que esse princípio remonta à ideia de igualdade formal ínsito na longínqua teoria de Aristóteles.317

Em resumo, portanto, a doutrina do stare decisis é “uma doutrina encampada pelos tribunais, respeitada pela comunidade jurídica e apoiada pela sociedade”.318

Conforme ensina Teresa Arruda Alvim Wambier:

O sistema de precedentes vinculantes faz com que as cortes ajam em duas dimensões: resolvem conflitos, e isto diz respeito ao passado; e têm o papel de fazer direito, criando regras para o futuro. A primeira função atinge uma audiência limitada: o réu e o autor. A segunda atinge uma audiência mais ampla, que inclui o público, os tribunais, a mídia, os acadêmicos e outros tribunais.319

315 HART, Herbert. 2009, p. 115-117.

316 DUXBURY, Neil. 2008, p. 21. No mesmo sentido, cf. CROSS, Rupert;

HARRIS, J. W. 1991, p. 99.

317 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 3 ed. Tradução de Mário da Gama Kury.

Brasília: UNB, 1985, 1131a e 1131b, p. 95 et seq.

318 SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do

precedente judicial. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2012, p. 150.

319 ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Estabilidade e adaptabilidade como

objetivos do direito: civil law e common law. Revista de processo, São Paulo, vol. 172, p. 6, jun. 2009 (versão online).

Com efeito, a doutrina do stare decisis em sua versão mais forte, de absoluta rigidez inclusive para a House of Lords, desde 1898, trouxe diversas dificuldades ao ordenamento jurídico inglês, que ficou impossibilitado de acompanhar a natural evolução do direito. Nesse sentido, Jim Evans enfatizou que:

Nessa visão [doutrina do precedente do final do século XIX], quando tomada estritamente, uma decisão poderia ser considerada equivocada apenas se ela decorresse de uma má interpretação de uma lei ou, no âmbito do case law, de uma falta de conhecimento sobre casos que estabeleçam uma regra ou doutrina pertinente, ou de má aplicação de precedentes com os quais a corte já estivesse familiarizada. A [mera] inconsistência com o princípio que se achava na base de outros casos não era suficiente.320

Em razão disso, duras críticas foram tecidas contra a doutrina do stare decisis nos moldes em que se encontrava, ficando famosa a afirmação de Arthur L. Goodhart, na década dos anos 30 do século passado, de que:

O produto [dessa doutrina] é que o juiz inglês é um escravo do passado e um déspota para o futuro, vinculado pelas decisões dos mortos que o precederam e vinculador das gerações por vir.321

As críticas parecem ter sido ouvidas e, mais de um século após a decisão do caso Beamish vs Beamish, a House of Lords, em 26.07.1966, decidiu que era hora de assumir a necessidade de flexibilizar a rigidez da teoria do stare decisis, e assim o fez por meio de uma resolução específica, denominada Practice Statement of Judicial Precedent, ocasião em que o Lord Chancellor Gardiner deixou consignado o seguinte:

Os Law Lords consideram o uso do precedente um

320 EVANS, Jim. 1987, p. 70 apud BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012,

p. 90.

321 GOODHART, Arthur L. Precedent in english and continental law – Na

inaugural lecture before the University of Oxford. Londres: Stevens and Sons, 1934, p. 48 apud BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. 2012, p. 90.

indispensável fundamento para determinar o direito e sua aplicação aos casos individuais. Ele fornece pelo menos um grau de certeza sobre o qual os cidadãos podem confiar ao conduzir os seus negócios, assim como serve de base para o desenvolvimento ordenado das regras legais. Os Law Lords, no entanto, reconhecem que a adesão muito rígida ao precedente pode trazer injustiças em certos casos, e ainda restringir indevidamente o desenvolvimento apropriado do direito. Propõe-se, portanto, modificar a praxe atual, de modo a considerar os precedentes da House of Lords como normalmente vinculantes, podendo os seus membros afastarem-se de um precedente desta corte, quando pareça que isso seja o certo a fazer. [...]

Essa resolução não é destinada a alterar o uso dos precedentes em qualquer outra corte além da House of Lords.322

A proposta de afastar-se de seus precedentes, segundo Neil Duxbury, seria muito tímida. Isso porque, mesmo antes de 1966, a House of Lords já vinha realizando diferenciações (distinguishing) em seus precedentes, em pontos que já estivessem despidos de autoridade, o que já significava afastar-se dos seus precedentes. Portanto, o que o Practice Statement realmente quis dizer era que, a partir daquele momento, a House of Lords poderia revogar (overruled) explicitamente seus precedentes. Mas como a palavra overruling significa um ato judicial muito ousado, talvez por isso mesmo ela não tenha constado no Practice Statement323 e isso, certamente, está ligado ao fato de que poucas vezes a House of Lords revogou seus precedentes, conforme se verá adiante.

De todo modo, essa mudança no entendimento da House of Lords permitiu que o direito inglês pudesse se adaptar às mudanças sociais, bem como prestar atenção às decisões de cortes superiores de outros países da Commonwealth.324 Isso também foi importante para que a House of Lords alinhasse sua prática com a de cortes superiores de outros países, tal como a Suprema Corte dos Estados Unidos, que não é vinculada aos seus

322 CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. 1991, p. 104. 323 DUXBURY, Neil. 2008, p. 127-128.

324 Commonwealth é uma organização intergovernamental composta por 53

países membros independentes, em sua maioria, países que faziam parte do Império Britânico.

próprios precedentes. Do mesmo modo, essa nova prática deixou a mais alta corte doméstica do Reino Unido alinhada com o entendimento tanto da Corte Europeia de Justiça, como da Corte Europeia de Direitos Humanos, uma vez que nenhuma das duas encontra-se vinculada a uma rígida doutrina dos precedentes, embora na prática, não seja usual elas ignorarem seus próprios precedentes. Com efeito, a possibilidade de a House of Lords modificar suas decisões anteriores significa o reconhecimento de que o direito, esteja expresso em leis ou na jurisprudência, é vivo e, portanto, uma instituição em constante modificação, que deve adaptar-se às circunstâncias em que e para as quais se aplica, se for para manter sua relevância prática.325

Desde 1966, a House of Lords tem usado muito pouco a faculdade de se afastar de seus precedentes e isto não ocorre quando simplesmente a decisão anterior estava errada. Normalmente é necessário demonstrar uma mudança substancial das circunstâncias. O primeiro caso de overruling, desde então, ocorreu em 1968, no julgamento de Conway vs

Rimmer, quando restou superado o entendimento firmado no caso Duncan vs Cammel Laird and Co, em 1942.326 Até o ano de 2003, pode-se citar

pelo menos mais oito casos327 em que a House of Lords revogou seus

próprios precedentes. Mas de 1966 a 2009, conforme afirma Louis Blom- Cooper's, pelo menos 21 posições da House of Lords foram desconsideradas ou alteradas, de acordo com as técnicas que autorizam o afastamento de precedentes.328

325 SLAPPER, Gary; KELLY, David. 2006, p. 82. 326 SLAPPER, Gary; KELLY, David. 2006, p. 82.

327 Esses casos, com as devidas anotações, são apontados por Gary Slapper e David Kelly (2006, p. 82-85; 209-210): Herrington vs British Railway Board

[1972], que revogou Addy and Sons vs Dumbreck [1929]; Miliangos vs George

Frank Textiles Ltda [1976], que revogou R vs United Railways of the Havana and Regla Warehouses Ltda [1961]; R vs Secretary of State for the Home Department ex p Khawaja [1983] que revogou R vs Secretary of State for the Home Department ex p Zamir [1980]; Murphy vs Brentwood District Council [1990],

que revogou Anns vs Merton London Borough Council [1978]; R vs Howe [1987], que revogou DPP for Northern Ireland vs Lynch [1975]; Hall vs Simons [2000], que revogou Rondel vs Worsley [1969]; R vs Shivpuri [1986], que revogou

Anderton vs Ryan [1985]; R vs R [1991], que revogou R vs Miller [1954]; e, por

fim, tem-se outro caso de overruling citado por Catherine Elliot e Francis Quinn (2006, p. 11): R vs G and another [2003], que revogou R vs Caldwell [1981].

328 BLOM-COOPER, Louis. 1966 and All That: The Story of the Practice

Statement. In: BLOM-COOPER, Louis; B. Dickson; G. Drewry (coords.). The Judicial House of Lords: 1876-2009. OXFORD: Oxford University Press, 2009,

3.1.2.1 O Poder Judiciário inglês também recebe críticas

Um desses casos e outro, no qual não se realizou o overruling, são dignos de nota, a fim de se demonstrar que o common law também peca quando o assunto é previsibilidade, uniformidade e certeza do direito.329

Pois bem. No caso Anderton vs Ryan, julgado em 1985, a House of

Lords interpretou o Criminal Attempts Act de 1981 de tal forma que o

tornou praticamente sem efeito. Depois de muitas críticas da doutrina, a

House of Lords reconheceu o seu equívoco e, já no ano seguinte, ao julgar

o caso R vs Shivpuri, revogou o precedente de Anderton vs Ryan. Em seu voto condutor. Felizmente, nesse caso, a House of Lords teve a oportunidade de julgar outro caso em pouco espaço de tempo e revogar o precedente tido por equivocado, o que facilmente pode não ocorrer em outras ocasiões.330

O outro caso diz respeito ao entendimento da House of Lords sobre o efeito retroativo do Human Rights Act de 1998 [HRA]. Em julho de 2001, no caso R vs Lambert, a House of Lords, com os Lords Slynn, Steyn, Hope, Hutton e Clyde, este presidindo, decidiu que o HRA não teria efeito

p. 143-144 apud ANDREWS, Neil. A Suprema Corte do Reino Unido: reflexões sobre o papel da mais alta Corte Britânica. Revista de Processo, São Paulo, vol. 186, p. 6, ago. 2010 (versão online).

329 Importante observação nesse sentido é feita por Lawrence M. Friedman

(FRIEDMAN, Lawrence M. Law in America: a short history. New York: A Modern Library, 2002, p. 8 apud CAMBI, Eduardo. 2013, p. 5, nota 12): “ninguém fora do círculo da dominação inglesa de fato adotou o Common Law. Em tempos modernos, alguns países não ocidentais procuraram importar modelos jurídicos do ocidente, os quais (segundo eles pensaram) funcionariam melhor para os impulsionar no mundo contemporâneo do que seus sistemas nativos.