• Nenhum resultado encontrado

E SPAÇO R URAL : P ROCESSO DE C RISTIANIZAÇÃO DOS C AMPOS

PROBLEMÁTICA DA EVOLUÇÃO E TRANSFORMAÇÕES REGISTADAS EM VILLAE NO

DECORRER DA ANTIGUIDADE TARDIA

Em trabalhos recentes, vários investigadores espanhóis têm-se debruçado sobre temáticas relativas à fase final das uillae, às transformações por que passaram e pela evolução terminológica do nome uilla no decorrer da transição para a Alta Idade Média. Em 2001, Amâncio Islas Frez publicou um artigo onde analisou esta última temática, concluindo a palavra uilla foi substituída por uillula na documentação alto medieval no que respeita à sua função original, passando a designar pequenos povoados do tipo uicus (ISLAS FREZ, 2001: 9 a 19). Em 2006, foi José Ignácio quem se dedicou a esta temática, dedicando a sua atenção aos tipos de povoamento rural, omo os pagi, os uici, as uillae e os castella (MARTINEZ MELÓN, 2006: 113 a 131). Em 2001, Gisella Ripoll e Javier Arce publicaram um artigo onde trataram o problema da transformação e final das uillae no ocidente mediterrânico entre os séculos IV e VIII, registando as várias alterações e reformas observadas, de que se destacam, só para citar as mais importantes, as alterações de espaços de habitação e de recepção em zonas produtivas; a construção de uma igreja em sectores da uilla; estruturas monásticas reutilizando sectores de uillae; colocação de necrópoles no interior de espaços habitados; o abandono do espaço e a sua utilização como local de habitat temporário e precário, e a transformação de uilla em povoados, sobretudo na transição para a Alta Idade Média (RIPOLL e ARCE, 2001: 21-54). Num trabalho publicado recentemente, Alexandra Chavarría Arnau apresentou algumas propostas, desenvolvendo alguns tópicos relativos à organização interna das uillae, onde apresentou várias hipóteses muito interessantes sobre a continuidade, as transformações e o desenvolvimento que ocorrem nestas estruturas no decorrer da Antiguidade Tardia. Neste campo, destacam-se os capítulos sobre as Iglesias y Villae (capítulo X) e sobre as Villa, Praetorium, Castelum: Las Transformaciones del vocabulário (capítulo XI). No último, a investigadora apresenta as transformações provocadas no vocabulário que ocorrem fundamentalmente a partir das grandes alterações por que passam estas estruturas, entre as quais se destaca o desenvolvimento de uillae em uici (CHAVARRÍA ARNAU, 2007).

É interessante observar o processo evolutivo das uillae no decorrer da Antiguidade Tardia. Numa primeira fase, situada numa época indeterminada do século III, várias uillae de dimensões arquitectónicas modestas foram profundamente alteradas. Um pouco por todo o sul e levante da Península Ibérica, vários sectores das uillae foram substituídos e redimensionados, observando-se que as áreas residenciais foram substituídas por instalações de cariz produtivo, substituindo-se ou eliminando-se elementos decorativos ou de uso habitacional, para colocar prensas, lagares, fornos e pavimentos de opus signinum (CHAVARRÍA ARNAU, 2007: 137). Paralelamente às transformações registadas nas uillae mais modestas, também nas uillae monumentais mais abastadas se registam alterações. Em alguns casos, como por exemplo São Cucufate, são arrasadas para serem edificados autênticos palácios (ALARCÃO et alii, 1990). Esta situação acontece fundamentalmente a partir do século IV, época em que muitas uillae passam a ter os pavimentos das suas grandes salas revestidas com belíssimos mosaicos, como são os casos de Torre de Palma e de Pisões (LANCHA e

ANDRÉ, 2000).

Apesar de ser extremamente difícil determinar se o desaparecimento de algumas uillae, ou a alteração das suas funções habitacionais, correspondem a alterações nas dimensões das propriedades rurais, a documentação textual da época parece apoiar esta situação. Alexandra Chavarría Arnau, citando D. Vera, escreveu que Higino, nas suas obras, apontou a existência de possessores que adquiriam várias propriedades contíguas, conservando apenas algumas das uillae em funcionamento, abandonando outras (CHAVARRÍA ARNAU, 2007: 137). Mas esta concentração da propriedade não é exclusiva da Antiguidade Tardia, verificando-se em épocas mais recuadas em torno de São Cucufate, por exemplo (ALARCÃO, ÉTIENNE e MAYET, 1990). O próprio Plínio, numa conhecida passagem onde relata a aquisição de uma nova propriedade, refere a importância de administrar vários fundi a partir de uma única uilla. Esta situação de concentração de propriedades justifica o abandono de algumas uillae, ou a sua transformação em consequência da reocupação do antigo espaço residencial por parte de alguns camponeses livres, mesmo que continuassem dependentes do proprietário da terra, que entretanto monumentalizava a uilla que “encabeçava”, ou servia de centro principal, dos seus domínios (CHAVARRÍA ARNAU, 2007: 138).

A segunda fase começa a documentar-se em níveis do século V d.C. e, sobretudo, dos séculos VI e VII d.C., nas uillae monumentais que até essa época foram

utilizadas como residências aristocráticas. Estas transformações implicam uma degradação progressiva das condições de vida nos edifícios, com a construção de silos, lagares, muros de compartimentação, estruturas de habitat construídas com materiais perecíveis e, em várias ocasiões, sepulturas (RIPOLL e ARCE, 2001: 21-37 e

CHAVARRÍA ARNAU, 2007: 137). É também neste período que os oratórios de

algumas uillae foram transformados em basílicas, muito provavelmente associadas a uma maior difusão de monasteria, como é o caso do Monte da Cegonha. Noutros casos, como por exemplo, Torre de Palma (Monforte), São Bartolomeu (Alvito), Quinta do Marim (Olhão) e Cerro da Vila (Quarteira), para além da manutenção das casas mais abastadas foram construídas outras, bem como se processa à edificação de basilicae devidamente dotadas de baptisteria, transformando-se assim simultaneamente em uici e monasteria, constituindo-se alguns deles como sedes paroquiais.

A evolução de algumas uillae para uici provocou algumas alterações no tipo de povoamento do território e, inclusivamente, no próprio vocabulário da época. A designação uilla, pelo que, pelo que se pode depreender a partir dos antigos tratados agronómicos produzidos na época altoimperial, designava um conjunto de edifícios de carácter disperso situados no campo e organizados em partes diferenciadas do ponto de vista funcional, separando a pars urbana, destinada à habitação do proprietário, da pars rustica, destinada à produção e à habitação dos servos. O termo uilla servia também para designar o fundus que lhe era correspondente. No entanto, numa fase mais tardia esta designação acaba por cair em desuso, sobretudo a partir do século V, época em que foi substituída pelas designações uillula ou praetorium. Apesar de nas Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha identificar uilla com o edifício residencial e com toda a propriedade rural dela dependente, o termo uilla foi escassamente utilizado nas leis Visigóticas, exceptuando quando alude a locus ou possessio. A análise da documentação textual demonstra que num determinado momento avançado no decorrer da Antiguidade Tardia, e durante a idade média, a palavra uilla passou a designar outras formas de povoamento mais extensas (ISLAS FREZ, 2001: 9 a 19 e CHAVARRÍA

ARNAU, 2007: 153).

É muito natural que este novo tipo de povoados continuem a constituir propriedade privada, tendo em consideração vários aspectos: se um proprietário concentra toda a sua família e todos os seus empregados em apenas um espaço, é muito natural que haja uma aglomeração de construções em torno da casa principal ou em

volta de uma igreja e esse parece ser o caso São Bartolomeu (Alvito, que viria a designar-se por Ares ou Mugia d’Arem) e da Quinta do Marim (Olhão). Na opinião de Denis Graen seria esta última a famosa Statio Sacra, que aparece representada no Itinerário de Antonino (GRAEN, 2007). Por isso, não é estranho que, em alguns casos, esses novos povoados possam ter adquirido para topónimo o nome do proprietário, pois o dominus continuava a ser o possessor de todas as construções existentes no fundus que lhe pertence. Basta estarmos atentos à toponímia da idade média que sobreviveu até à actualidade. Por exemplo, no actual concelho de Mértola, topónimos como Monte dos Fernandes, Monte João Serra e Monte de Moreanes, entre outros, não reproduzem a realidade. No fundo, não são “montes” na verdadeira assunção da palavra, mas sim autênticas aldeias, algumas das quais com mais de 300 habitantes, que evoluíram a partir de propriedades rurais e adoptaram o nome do seu antigo proprietário num período histórico muito recente. Existirão também os casos que adoptaram o nome do Santo a quem foram dedicadas as igrejas em torno das quais evoluíram, registando-se vários os uici situados em locais designados como São Romão (São Romão, na Herdade da Torre Vã, Panóias, Ourique é um desses exemplos). Para uma época mais recente, e na região em estudo, temos o caso de Sant’Águeda, na freguesia de Vila Nova da Baronia, onde no século XVIII existia uma aldeia em torno da ermida edificada no século XVI.

Noutras zonas do antigo império romano, como por exemplo a Gália, no decorrer da antiguidade tardia o termo uilla servia para designar realidades muito diversas: propriedade rural e respectivo fundus; um conjunto de terras; uma circuncisão administrativa com fundo comum a muitos proprietários e assentamentos do tipo aldeia (CHAVARRÍA ARNAU, 2007: 154). Na obra de Beda, relativo à antiga Britannia, o termo villa aplica-se geralmente a pequenas aldeias (Idem, ibidem, apud CAMPBEL, 1986: 108-112).