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A menção mais antiga acerca da existência da comunidade cristã na Lusitânia data de 254, tratando-se da carta 67 de S. Cipriano, bispo de Cartago, dirigida aos fiéis de León, de Asturica Augusta, ao diácono Élio e aos fiéis de Emerita Augusta. No entanto, tudo indica que já existissem comunidades cristãs na Península Ibérica. Como é óbvio, não existem testemunhos claros de edifícios pertencentes a essas mesmas comunidades. As perseguições aos cristãos foram constantes até à data do Édito de Milão, em 313, pelo que não convinha às comunidades cristãs demonstrarem publicamente a religião que professavam, quer através da existência visível de locais de culto, quer pela ostentação de símbolos que os conotassem com a religião cristã.

Apesar de tudo, podemos constatar que ao longo do século IV, sobretudo a partir do século V, começaram a despontar um pouco por todo o território edifícios religiosos cristãos, quer nas cidades, quer nos campos, e símbolos de uma nova religião de estado.

Verifica-se com alguma facilidade que o cristianismo começou a ser divulgado e a instalar-se na zona do conuentus Pacensis em época antiga, pois trata-se se uma zona onde se encontram menos inscrições de deuses indígenas e menos dedicatórias ao imperador (neste último caso, sobretudo ao longo do século III) e mais inscrições relativas aos vários cultos orientais. Assim sendo, podemos considerar o cristianismo ter chegado ao sul do actual território português “à boleia” de outros cultos orientais autorizados no império localizados no território português nas cidades de Salacia Imperatoria, Liberalitas Iulia Ebora, Pax Iulia e Ossonoba e ainda junto a Estremoz, entre os séculos I e III.

Na opinião de Theodor Hauschild, o cristianismo teve, em primeiro lugar, um maior número de fiéis nas cidades, nas quais se formaram comunidades com bispos e diáconos, como por exemplo dessa mesma situação é a cidade de Tarraco, onde em 259 o bispo Fructuoso e os seus diáconos Auguris e Eulogius foram martirizados (HAUSCHILD, 1995: 377). Não obstante a maior importância das cidades, existem no campo, desde muito cedo, indícios da penetração do cristianismo, de que é exemplo um monograma de Cristo na uilla Fortunatus, perto de Fraga, na província de Huescar. Nesta perspectiva, temos de ter em consideração que, passada a grave crise económica e social do século III, ao contrário da maior parte das províncias romanas do império do ocidente, a Hispânia gozou de uma importante prosperidade. Como resultado, quer da crise, em que os grandes proprietários fugiram das grandes cidades para o campo, onde se instalaram com as suas famílias e a sua criadagem, fugindo assim dos pesados impostos citadinos, quer da fase próspera, em que aqueles investiram grandes somas de dinheiro no incremento e no embelezamento das suas propriedades, temos o aparecimento de um elevado número de grandes e prósperas uillae ao longo de todo o século IV. É precisamente nesta fase que acontecem grandes transformações em ambiente rural. No caso do conventus Pacensis, por volta de 360, São Cucufate, no concelho da Vidigueira, foi alvo de um planeado conjunto de obras que se reflecte no monumental edifício que podemos observar ainda hoje em dia. A partir de finais do século IV, parte da estrutura é modificada com o intuito de construir locais de culto cristãos, no caso uma basílica e um mosteiro, os quais trataremos um pouco mais

adiante. As transformações também são visíveis em Torre de Palma, concelho de Monforte, onde foi construída uma monumental igreja de absides contrapostas.

Um importante conjunto de uillae foi ocupado até épocas muito tardias. Para além de São Cucufate e Torre de Palma, regista-se a continuidade de ocupação, seja na sua função original, seja na sua transformação em uici, palatia ou monasteria, em uillae como Terrugem (Elvas), Silveirona e Santo Estêvão (concelho de Estremoz), Juromenha, São Brás dos Matos e São Miguel da Mota (concelho do Alandroal); Malcabrão, São Bartolomeu, São Francisco e São Neutel/Sant’Águeda (concelho de Alvito), Marmelar e Monte da Cegonha (concelho da Vidigueira), Vilares de Alfundão (Ferreira do Alentejo), Moinho do Panasca, Monte da Panasqueira e Pedras de Zorra (concelho de Cuba), Corte Piornes, Pisões, Torre da Cardeira e Vale de Aguieiro (Beja), Monte da Salsa, Abóbada e Cidade das Rosas (Serpa), Monte do Roxo, Conqueiros e Defesa III (Alvalade, Santiago do Cacém), Montinho das Laranjeiras (Alcoutim), Póvoa de Milreu (Faro), Quinta do Marim (Olhão), entre muitas outras. Como é lógico, na maior parte destes locais foram encontrados vestígios de cristianização, sobretudo através da identificação de locais de culto, que, na maior parte dos casos, datam de finais do século IV, ou de inícios do século V. Daqui poderemos inferir que, aproveitando esta importante fase construtiva em ambiente rural alguns espaços das uillae foram aproveitados para a instalação de pequenos oratórios ou edifícios de índole religiosa.

A inscrição cristã mais antiga que se conhece, encontrada no conventus Pacensis, poderá ter sido recolhida no concelho de Tavira. Trata-se de um epitáfio escrito em grego, dedicado a um jovem ali falecido, muito provavelmente no século III (PEREA YÉBENES, 1995: 169-184 e MACIEL, 2003: 108 e 109). Esta inscrição torna-se ainda mais importante na medida em que nos mostra que os cristãos, por motivos óbvios, não se diferenciavam dos restantes membros da sociedade romana, associando o vocabulário pagão a símbolos cristãos nos seus monumentos funerários. Outra inscrição muito importante foi encontrada no concelho de Serpa, mais concretamente no Monte da Salsa. Trata-se da oferta de um dolium à igreja de Santa Maria por uma Lacatancia, filha de Agripa (LOPES, CARVALHO e GOMES, 1997: 33 e 34, entrada 43). Pela paleografia e pela fórmula que apresenta, com a filiação de tradição romana, poderá tratar-se de uma inscrição eventualmente datável do século V,

sendo, ao mesmo tempo, uma das mais antigas inscrições que nos indicam a existência de um culto Mariano na Península Ibérica.

Até ao momento, apenas foram intervencionados dois locais com grandes concentrações de epitáfios: Mértola (basilica do Rossio do Carmo, basilica do Cineteatro Marques Duque e Mausoléu) e a Silveirona junto a Estremoz. Tratam-se dos únicos dois sítios extensamente escavados em Portugal, correspondentes a esta época. Acreditamos que será por falta de intervenções arqueológicas, sobretudo nos principais centros urbanos, que não conhecidas mais inscrições paleocristãs/visigóticas no actual território português. Os casos de Beja e de Évora são paradigmáticos dessa situação. Como é que é possível que tenha sido recolhido um número muito reduzido de epitáfios nestas duas sedes episcopais de época tardo-romana e suevico-visigótica? Só se pode explicar pelo facto de muitas dessas inscrições ter sido reutilizadas na construção de edifícios, ou, pura e simplesmente, destruídas.

Quer nos campos, quer nas cidades, têm vindo a ser observadas quatro fases distintas da evolução do cristianismo, que pretendemos confirmar no território que serve de base à nossa investigação. Na primeira, pré-constantiniana, os cristãos não se diferenciam, dos restantes membros da sociedade romana. Nos seus epitáfios usam símbolos cristãos em associação clara com formulários pagãos, aos quais acrescentavam pequenas fórmulas cristãs, em forma de código secreto. Na segunda fase, que ocorre entre o édito de Milão, em 313, e meados do século VI, dá-se a grande manifestação do cristianismo, com o início de uma grande difusão de ecclesiae e monasteria, quer nas cidades, quer nas grandes propriedades e pequenos povoados rurais. Corresponde a esta época o maior número de inscrições funerárias encontradas até ao momento no território português. É também esta a fase das grandes contendas religiosas entre Católicos e Arianos.

A terceira fase situa-se meados do século VI, com a presença Bizantina no sul do actual território português e com a conversão oficial dos Visigodos ao catolicismo, e o final do primeiro quartel do século VIII. É uma fase de menor fulgor no que diz respeito à existência de epitáfios encontrados até ao momento, mas corresponde à época em que mais se investiu na construção de monasteria rurais, a maior parte deles situados em antigas uillae abandonadas, e na construção ou na ampliação de ecclesiae rurais e urbanas. É provável que a grande percentagem das ecclesiae urbanas de Beja datará

desta época, enquanto o mesmo acontece duas das três basilicae conhecidas em Mértola e provavelmente com o mausoléu recentemente localizado nesta localidade. É neste última período que se regista a maior difusão artística de índole cristã, atestada em todo o território em elementos arquitectónicos pertencentes a antigas basilicae rurais, nomeadamente em transennae de iconostase, pilastras, pilastrins, colunelos, ábacos, pés-de-altar, frisos, cruzes vazadas, entre outros elementos. Trata-se de uma cristianização global do território do conventus Pacensis que, paulatinamente, chega às principais cidades e daí irradia para toda a zona envolvente.

A quarta fase corresponde ao período pós-reconquista islâmica, com a permanência das comunidades moçárabes que irão contribuir para a sobrevivência do cristianismo e dos antigos edifícios cristãos sob domínio islâmico, tendo como ponto de partida uma sã e condescendente convivência entre os ocupantes islâmicos e as comunidades cristãs, pois apesar do estabelecimento de árabes e berberes, o território continuou a ser maioritariamente habitado por aqueles. No início da ocupação islâmica estabeleceram-se pactos, sobretudo com as comunidades que haviam pactuado com os muçulmanos no momento da conquista, reconhecendo o direito de personalidade aos cristãos, com garantia de liberdade de culto e gozo pleno dos seus direitos públicos e privados. Formam-se então as comunidades moçárabes, impregnadas de cultura árabe, mas fiéis ao culto cristão, que tinham de pagar anualmente um imposto de capitação, recolhido pelo comes, chefe da comunidade, assistido por um juiz ou alcaide (CATARINO, 1999: 85-90). Os habitantes cristãos mantiveram a posse das terras e demais propriedades e a liberdade religiosa encontra-se bem patente no culto a São Vicente, no promontório de Sagres. Só a partir de finais do século VIII ou inícios do século IX começam a observar-se perseguições, com a consequente fuga de comunidades moçárabes para norte, onde irão fundar novos mosteiros e contribuir para uma maior coesão e consolidação da Igreja (CATARINO, 1999: 85-95).