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Educação alimentar estética: é possível fazer uma transposição dos conceitos

TRANSPARÊNCIA 3: COMER COM OS OLHOS, PARA APRECIAR COM A BOCA

3.2 Educação alimentar estética: é possível fazer uma transposição dos conceitos

Se existe uma proposta educacional em Schiller, esta se encontra na possibilidade da autoformação por meio do fim da dicotomia entre razão e sentidos, teoria e prática. Assim, é possível uma proposta educacional em que a escola, mediante a educação alimentar, possa proporcionar uma experiência harmoniosa entre os conteúdos que devem ser interiorizados e a vida cotidiana dos alunos. Essa “fusão cuidadosa, esse equilíbrio, que é próprio da experiência estética lhe dá uma qualidade que vai além da interdisciplinaridade, ela é transdisciplinar porque permite integrar conhecimentos diluindo fronteiras”. (VERÁSTEGUI, 200ι, p. 2)

O ser humano, conforme vimos em Schiller, procura aquilo que é belo e bom, e isso também é válido quando tratamos de alimentação. Ninguém come apenas para se nutrir, a fim de adquirir as calorias necessárias do dia. Comemos porque gostamos de comer, para estar junto de alguém, para conhecer outras culturas, para nos lembrar do gosto da infância, por gula, por amor, por questão de educação e etiqueta, para ser visto, para ver alguém, por saúde, por doença, por questões religiosas, por circunstâncias de sobrevivência, entre muitos outros motivos. São tantas as questões subjetivas e objetivas que envolvem a alimentação que se torna quase impossível tentar resolver os problemas alimentares com apenas informação (conteúdo, conceitos), pois não transforma o ser humano moralmente – a capacidade de escolher o bem (SCHILLER).

Nossa moralidade torna-se evidente quando seguimos racional e conscientemente uma regra, um preceito, ou seja, fazemos algo porque sabemos que é o melhor, mesmo que não queiramos fazer. Podemos escolher, contudo, aquilo que não é bom se houver um forte estímulo na direção contrária; nesse caso, poderemos escolher mal, por tencionar o prazer. Não é simplesmente escolher o que é mal, pela vontade de quebrar as regras, mas de buscar naquilo que se realiza a satisfação e o prazer, como Schiller (2002, p. 126) bem expressa em suas cartas:

A moralidade pode ser favorecida de duas maneiras, e impedida igualmente de duas maneiras. Ou se deve reforçar o partido da razão e a força da boa vontade, de forma a que nenhuma tentação a possa superar, ou se deve quebrar o poder da tentação, para que mesmo a razão mais fraca e a boa vontade mais débil lhe sejam superiores.

Levando a quentão da moralidade para o campo da alimentação, como devemos proceder? Melhoramos as regras do comer saudável, afastando o indivíduo de toda a tentação (isolando-o de todo tipo de guloseimas, frituras, transgênicos etc.)? Schiller nos ajuda a perceber que esse não é um caminho excelente, pois mesmo afastando o ser humano de toda tentação, isso não é uma solução para que ele não erre, além de atentar contra a liberdade.

Schiller nos ajuda a compreender que é necessária uma proposta pedagógica que concilie essas questões e que proporcione uma verdadeira transformação moral. Isso porque,

Esteticamente falando, o ser humano precisa esculpir-se, produzindo uma harmonia entre o que é, entre o que está chamado a ser, e o real dentro do qual se encontra imerso (...). estou pensando na vida como um jogo criativo, na vida como uma tarefa artística, como um exercício artístico, jogo, tarefa e exercício que se concretiza muitas vezes na luta por adquirir virtudes, sim, mas não com a rigidez de um falso ascetismo, ou pela obediência infracriadora de normas externas, obediência cujas motivações nem sempre são as mais racionais e pode, até mesmo se apoiar no calculismo, na covardia ou mesmo em interesses inconfessáveis. (PERISSÉ, 2004, p. 175).

Com efeito:

A dieta e o prazer, incompatíveis no passado, fazem agora parte da mesma estratégia. Valoriza-se socialmente não a privação, a austeridade, mas a sabedoria em combinar os alimentos corretamente, em aproveitar o máximo do seu poder nutritivo e energético. (Couto, 2000).

No intervalo do que escolher para nos alimentar melhor, para o ato de ingerir os alimentos, fazemos comida. O que diferencia o ser humano dos outros animais não está no

fato dele selecionar o que come de acordo com suas preferências, pois alguns animais também são capazes de fazer essa seleção alimentar. Nosso grande diferencial está no fato de manipularmos o que vamos comer, transformar alimento em comida, ou ainda o ato de fazer cozinha. “A cozinha é uma linguagem feito o inconsciente, em permanente atualização, reatualização, tradutora de entornos, matrizes étnicas, costumes, sociedades, indivíduos e principalmente memórias” (LτDY, 200κ, p. 91).

σa percepção de Montanari (200κ, p.ηθ) “cozinhar é atividade humana por excelência, é o gesto que transforma o produto ‘da natureza’ em algo profundamente diverso: as modificações químicas provocadas pelo cozimento e pela combinação de ingredientes permitem levar à boca um alimento, se não totalmente ‘artificial’, seguramente ‘fabricado’”. Assim, passa pela cozinha a transformação da natureza, do cru para o cozido (LEVI- STRAUSS), fazendo que o ato de se alimentar extrapole o âmbito da Nutrição. Para Cornelli (2007, p. 33), o

[...] cozinheiro é mágheiros em grego, uma palavra que tem em comum com a magia do mágos a mesma raiz mag-: o mago é o contínuo transformista, transformador da realidade (de príncipe a sapo e vice-versa – só para gente se entender), é re-criador. Assim, cozinhar é um ato de rebeldia das leis do mundo: é reinventar continuamente nossa relação com ele.

Foi o controle do fogo pelo ser humano que lhe permitiu se tornar uma espécie de alquimista, bruxo controlador de poções, ou ainda há quem fale que, pela manipulação do fogo, esse se tornasse divino, semelhante aos deuses. Na mitologia grega

o fogo pertence somente aos deuses, mas apenas até o momento em que o gigante Prometeu revela o seu segredo aos homens. É um gesto de piedade em relação a esses seres nus e indefesos, dos quais o seu irmão Epimeteu, encarregado de distribuir as várias habilidades entre os vivos, tinha se esquecido: para remediar essa distração, Prometeu rouba o fogo na oficina do deus Hefesto e o presenteia aos homens. Dessa forma, ele se torna o verdadeiro artífice da civilização humana, que, com o novo instrumento, consegue se elevar do plano animal e aprender as técnicas de domínio da natureza. O controle do fogo em qualquer medida permite ao homem tornar-se divino, não ser mais submisso, mas senhor dos processos naturais, que ele aprende controlar e a modificar. (Montanari, 2008, p. 56 e 57)

Ainda sobre a manipulação do fogo pelo ser humano e a sua relação com a cozinha, prazer e saúde, Montanari (2008, p. 83) compreende que:

τ uso do fogo e as práticas de cozinha servem para tornar “melhores” os alimentos não somente do ponto de vista do sabor, mas também da segurança e da saúde. A cumplicidade entre cozinha e dietética é um dado permanente e, por assim dizer, originário da cultura alimentar, que talvez possamos fazer remontar ao exato momento em que o homem aprendeu a usar o fogo para cozinhar os alimentos. Esse gesto simples teve seguramente, desde o início, o objetivo de tornar a comida mais higiênica, além de mais saborosa: de toda forma, podemos dizer que a dietética nasceu com a cozinha.

τ autor ainda nos esclarece o fato de ser assim que surge “a cozinha, entendida como arte da manipulação e da combinação, dado que na natureza não existem alimentos perfeitamente equilibrados. Torna-se necessária, portanto, uma intervenção para corrigir as qualidades naturais do produto (...) e restabelecê-las na medida certa.” (200κ, p. κη).

Por esses motivos, a cozinha não pode ser resumida a um conjunto de técnicas de como se preparar determinado alimento, mas deve ser vista como uma rede complexa de operações, símbolo da civilização e da cultura, e que por isso, não está refém na mão de um só profissional. De acordo com This e Gagnaire (2010, p. 56 e 57),

A cozinha tem duas funções: nutrir o corpo e nutrir o espírito. Nutrir o corpo é fornecer nutrientes, sob forma química adequada, para uma assimilação apropriada. Isso é essencial para as sociedades carentes de alimentação, mas não para aquelas em que a fome em massa não mais ocorre. Alimentar o espírito é uma outra questão. (...) De forma geral, o espírito satisfaz-se com a tradição porque não nos alimentamos de nutrientes, mas de amor. (...) porque não temos fome de nutrição, temos fome do amor de quem está cozinhando.

Efetivamente, a cozinha pode funcionar como laboratório, um lugar de aprendizagem e prazer onde as crianças, além de aprenderem técnicas, receitas, dicas de higiene, valor nutricional dos alimentos, entre outras informações para nutrir o corpo de forma saudável, poderão trocar experiências de valor simbólico que saciarão a sua alma. Assim, a proposta de

[...] educação alimentar e nutricional inclui transmitir informações e comunicar conceitos de nutrição, mas também penetrar na história de vida, na inserção social do sujeito, na cultura, no universo de significados afetivos que dão sentido às práticas de alimentação, tanto aquelas passadas de geração a geração como as que são construídas nas novas formas de viver. (BOOG, 2013, p. 31).

Durante muito tempo, a cozinha foi um espaço fechado para as crianças, em razão dos cuidados e perigos com o fogo, por exemplo. Se essas, porém, estiverem devidamente acompanhadas e com os materiais corretos para a sua proteção – tais como avental e touca –

as atividades nesse local podem ser bem produtivas e colaborar com aspectos importantes do desenvolvimento infantil. Horta (2002, p. 84) reforça essa ideia, enunciando que,

[...] ao manipular o alimento, olhá-lo, entendê-lo, explicar ao aluno como é feito, deixar que vejam como se faz, permitir que deem uma mãozinha, tudo isso pode ajudar a remover barreiras de preconceitos e fazer com que a criança coma de tudo. Ajudando o aluno a discernir o que é bom e o que é ruim, verde e maduro, aceitando críticas, conversando sobre o cru e o cozido, o fresco e o podre, ensinando que ao ler o código de validade ou puxar a coroa do abacaxi, estará fazendo um trabalho de enorme importância.

Então, na tentativa de unir os preceitos de uma alimentação saudável e o prazer de comer, trabalhando harmoniosamente teoria e prática (estética), é que elaboramos “laboratórios culinários”, onde a sala de aula foi transformada em uma extensão da cozinha e os alunos puderam, ao realizar receitas, refletir sobre suas escolhas alimentares; e, ao apreciar e degustar os pratos preparados, ampliarem seus hábitos alimentares, aprendendo a comer por prazer e não por obrigação ou constrangimento. Nisso poderemos chegar numa educação estética do gosto, pois “o gosto requer moderação e decoro, tendo horror a tudo o que é anguloso, duro, violento, e inclinando-se para tudo o que se conjuga em leveza e harmonia”. (SCHILLER, 2002, p. 127).

Para servir de guia para a realização das receitas, procuramos uma literatura que não tivesse expressões do tipo “faça isso”, “coma aquilo”, nem que estivesse presa aos padrões estéticos visuais comum das cartilhas de alimentação, com textos longos e por vezes complicados, próprios da linguagem da saúde, onde não há espaço nem para o lúdico, nem para a reflexão (uma vez que os conteúdos já estão prontos).

Investimos em uma literatura divertida, com uma formatação visual afastada dos padrões formais das publicações didáticas, e que tivessem antes de tudo o desejo de convidar as crianças a serem sujeitos da sua aprendizagem, pois, só assim, acreditamos que ela poderia ser um instrumento sensibilizador da estética que registramos até então. Com base nesses critérios, chegamos à produção do cartunista Ziraldo, mesmo que essas não tenham sido escritas com a intenção de ser adotada em escolas, ou com finalidade didática. Elas possuem um currículo e querem ensinar algo e, por isso, o seu conteúdo será mais bem explorado no capítulo seguinte.