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4 REVISITANDO CONTEXTOS: UM OLHAR SOBRE AS FUNÇÕES DA

4.2 EDUCAÇÃO DE ADULTOS: PERMANÊNCIA E MUDANÇAS

Concomitantemente à realização de algumas campanhas, movimentos populares e programas oficiais já mencionados, o Ensino Supletivo segue sendo uma marca da oferta da educação de adultos. Mesmo que a concepção de Educação de Adultos como suplência seja algo que atravessa a EJA, é com a Lei 5.692 – aprovada em 1971- que o ensino supletivo é regulamentado e ganha um capítulo próprio na

referida lei. Esse ensino foi criado para atender às pessoas que não conseguiram concluir sua escolarização dentro da faixa etária “adequada” – 7 a 14 anos.

O ensino supletivo, conforme Paiva (2009, p. 174), era concebido com um “subsistema integrado, independente do ensino regular, mas com ele intimamente relacionado”, cujas metodologias propostas deveriam ser “ajustadas às características da modalidade”.

Uma das finalidades atribuídas ao ensino supletivo era “suprir a escolarização regular para adolescentes e adultos, que não a tinham seguido ou concluído na idade própria”, conforme disposto no artigo 24 da Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971). A abrangência do supletivo, de acordo com o artigo 25, seria desde a “iniciação no ensino de ler, escrever e contar e a formação profissional definida em lei específica até o estudo intensivo de disciplinas do ensino regular e a atualização de conhecimentos” (BRASIL, 1971).

Os sistemas estaduais de ensino, de acordo com seus respectivos Conselhos de Educação, organizariam os cursos e exames. Esses exames, segundo disposto no artigo 26, deveriam ser entregues a “estabelecimentos oficiais ou reconhecidos” cuja validade de indicação seria anual, ou poderiam ser “unificados na jurisdição de todo um sistema de ensino ou parte deste”, em observância às normas do respectivo Conselho de Educação.

De acordo com Paiva (2009, p.175), o ensino supletivo era tão complexo que foi necessária a criação do Departamento de Ensino Supletivo – organismo federal responsável por sua coordenação. A autora cita ações do departamento que poderiam sanar algumas falhas existentes na estrutura educacional, como: “a) enfoque tecnicista na programação dos projetos e no controle da execução; b) centralização técnico-financeira da programação; c) ênfase na certificação; d) prioridade à formação de mão-de-obra”.

Vale ressaltar que os Centros de Estudos Supletivos, atuais Centros de Educação de Jovens e Adultos, foram criados, por volta de 1974, pelas Secretarias Estaduais de Educação e contribuíram para a “enorme expansão do Ensino Supletivo, que cresceu paralelamente à estrutura regular do MEC” (VENTURA, 2011, p. 72).

Dos pareceres e resoluções que regulamentam o ensino supletivo, no período, destacou-se o Parecer CE nº 699/72, de Valnir Chagas, pois este documento assinalava as funções atribuídas a este ensino: suplência, suprimento, aprendizagem e qualificação.

A primeira função – suplência – era vista como a substituição, de forma compensatória, do ensino “regular” pelo supletivo por meio de cursos e exames, garantindo a certificação aos jovens e adultos maiores de 18 anos32. Assim, essa função deveria suprir a escolarização “regular” de adolescentes e adultos excluídos dos sistemas de ensino.

No Parecer CE nº 699/72, Valnir Chagas associou, ainda, a função de suplência à ideia da madureza; entretanto, o relator afirmou que essa ideia “já não se limita quer em âmbito, quer na forma de realização”. Chagas prossegue em suas afirmações:

Pode, é certo, ainda reduzir-se à parte geral do currículo e visar apenas "ao prosseguimento de estudos em caráter regular" (Lei 5.692: art. 26), como antes acontecia; mas pode igualmente realizar- se "para o exclusivo efeito de habilitação profissional de 2º Grau" (Lei 5.692: idem) ou — o que é mais importante — revestir ambas as características e conduzir a um diploma de técnico (BRASIL, 1972, p. 229).

Além de “suprir carências”, indicando sua função de suplência, o Parecer CE nº 699/72, segundo Fávero (2009, p. 79) trouxe outras finalidades do ensino supletivo: suprimento, qualificação e aprendizagem, prevendo cursos e exames para cada uma delas. Na visão do autor, essa definição possui como justificativas “[...] a necessidade de formação de mão obra para o mercado de trabalho que se expandia [...] e a perspectiva da educação permanente que chegava ao Brasil [...]” (FÁVERO, 2009, p. 79).

Nesse sentido, a perspectiva da educação permanente, anunciada por Fávero, que chega ao país tanto pelas propostas feitas na Europa quando da América Latina,

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Essa idade refere-se ao mínimo exigido para a conclusão do 1º grau (atualmente ensino fundamental). Para aqueles que desejassem concluir o 2º grau (atual ensino médio), a idade mínima era 21 anos.

[...] revitaliza o papel da escola, defendendo que a função educativa realizada por outras instâncias da sociedade, de maneira formal ou informal, e nas várias circunstâncias da vida. Como seu desdobramento, começa-se a trabalhar, no mesmo período, com a ideia de educação continuada, hoje traduzida como educação ao longo da vida (FÁVERO, 2009, p. 79).

Através da função de suprimento a educação deveria, conforme o Art. 24 da Lei 5.692/71, “proporcionar, mediante repetida volta à escola, estudos de aperfeiçoamento ou atualização para os que tenham seguido o ensino regular no todo ou em parte” (BRASIL, 1971). Os adolescentes e adultos poderiam retornar às instituições de ensino não somente para concluírem seus estudos, mas também para buscarem uma constante “atualização”.

Recorremos novamente ao Parecer CE 699/72 para compreender essa função atribuída à EJA. De acordo com o relator, o suprimento era a função mais abrangente e mais característica da Educação de Jovens e Adultos, pois podia desenvolver-se em paralelo com “qualquer nível de escolarização regular, conforme o progresso educacional e cultural alcançado pelas várias comunidades”. Sendo assim, afirmou Valnir Chagas que:

A complexidade crescente que assumem as formas de vida e de trabalho, impondo mudanças que se operam em rápidas sucessões, exige de todos uma constante atualização em "repetida volta à escola". Tal escola, porém, já não há de ser a tradicional ou mesmo a "regular", na concepção mais dinâmica em que agora se estrutura, porém algo inteiramente aberto em que alguns já vislumbram a própria educação do futuro (BRASIL, 1972, p. 229).

Observando o disposto no artigo 27 da Lei 5.692/71, os cursos de aprendizagem e de qualificação seriam indicados como possibilidade de prosseguimento de estudos, desde que esses cursos incluíssem “disciplinas, áreas de estudo e atividades que os [tornassem] equivalentes ao ensino regular conforme [estabeleciam] as normas dos vários sistemas” (BRASIL, 1971). Com isso, foram conferidas à EJA as funções de aprendizagem e a qualificação, como já mencionado.

A aprendizagem, segundo o Parecer CE nº 699/72, ficava a cargo de empresas e instituições, pois essa função refere-se à “formação metódica no trabalho”. Já a

qualificação, segundo o relator, era “o oposto da natureza tradicional: baseia-se obrigatoriamente em cursos, e não apenas em exames, e visa eletivamente à profissionalização, sem preocupações de educação geral” (BRASIL, 1972, p. 230).

Haddad (1987, p. 20) afirma que as funções atribuídas ao ensino supletivo poderiam ser consideradas “com maior ou menor grau de supletividade”, pois a abertura e a flexibilidade deste tipo de ensino poderiam vitalizar a escola regular e não excluí-la. Assim, prossegue o autor, a função de suplência “tendencialmente deveria desaparecer do ensino supletivo na medida em que fossem atendidas todas as crianças na idade adequada”. Desse modo, segundo Haddad, a função de suprimento passaria a “representar todo o ensino supletivo” (HADDAD, 1987, p. 21), pois os sujeitos da educação de jovens e adultos retornariam às instituições escolares não somente em busca de conclusão dos estudos, mas de atualização, indicando a perspectiva da educação permanente de uma escola diferente da tradicional.

De acordo com Machado e Oliveira, a modalidade Suplência foi a oferta que se caracterizou mais expressiva na maioria dos estados brasileiros, não havendo articulação considerada relevante com as funções de Aprendizagem ou Qualificação. Ao invés disso, segundo as autoras, houve uma “adaptação do currículo previsto para o Ensino de 1º e 2º Graus, com redução de carga horária e de conhecimentos relacionados nos componentes curriculares a serem trabalhados” (MACHADO; OLIVEIRA, 2012, p.60).

Ainda convivemos com a oferta da EJA como suplência, embora a Lei que cria o ensino supletivo, como veremos adiante, tenha sido revogada pela atual LDB. Segundo Fávero (2009), há em vários estados brasileiros os antigos Centros de Ensino Supletivo, que foram definidos, na época da Lei 5.692/71, como projetos do Departamento de Ensino Supletivo. Esses espaços, segundo o autor, foram concebidos

[...] como uma escola diferente para atender a clientela do supletivo, com base no princípio de estudo individualizado, com apoio de professores e emprego de diversas técnicas: módulos didáticos, estudo dirigido, orientação individual e em grupo, rádio, televisão etc (FÁVERO, 2009, p. 80).

Uma dessas instituições, atualmente chamada Centro de Educação de Jovens e Adultos, localizada no município de Colatina33, fez parte de minha trajetória como professora e pesquisadora. Essa instituição é um dos lócus dessa pesquisa, cujos resultados serão demonstrados nos capítulos 6 e 7, conforme já mencionado.

Diante do exposto e revisitando os contextos da Educação de Jovens e Adultos após a regulamentação do Ensino Supletivo, observamos que a função de suplência acentuou-se ao invés de desaparecer, diferentemente da intenção demonstrada pelo legislador do Parecer CE nº 699/72. É possível afirmar, como veremos adiante, que esta função da EJA ganhou sua materialidade que persiste nas práticas e na forma como tem sido internalizada no imaginário da sociedade brasileira.

Assim, (con)viver com algumas expressões como “suplência”, “segunda chance” e “aceleração dos estudos”, além de atitudes que indicam a concepção compensatória ainda presente na EJA, é um desafio para aqueles que veem os jovens e adultos como “sujeitos de direitos e não de favores” (SOARES, 2005, p. 287).