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Mundo da educação: o despertar de José para a dissonância do agir ativamente José teve uma trajetória escolar irregular, mas sempre em unidades da rede pública de

4. Os perfis sociológicos dos repórteres-amadores

4.1 O universo de José do Interior 44 : pedreiro e líder comunitário

4.1.3 Mundo da educação: o despertar de José para a dissonância do agir ativamente José teve uma trajetória escolar irregular, mas sempre em unidades da rede pública de

ensino. Na condição de filho mais velho da família, tinha que ajudar o pai a ganhar a vida. A prioridade para José era o trabalho. O estudo estava em segundo plano e não era valorizado pelos pais. Ele entrou em uma sala de aula pela primeira vez aos nove anos, já com um atraso em relação às outras crianças. No ano seguinte, começou a trabalhar com o pai. Os pais acreditavam que ele não precisava se qualificar na escola para fazer o que o pai fazia. Chegou ao 6º ano com 14 anos. Como se cansava muito, decidiu abandonar a sala de aula.

Nessa primeira fase, a escola não o atraiu nem o estimulou a querer ler e escrever, apesar de já ter ficado fascinado com o dom da oratória de um pastor e de um padre. Foi o próprio José que teve a iniciativa de voltar a estudar. A vontade surgiu quando estava no Exército. Queria buscar conhecimento, uma vez que lá teve a oportunidade de ler jornais e revistas diariamente e gostou. Afirmou que procurava ler as notícias dos cadernos que retratavam a vida da cidade e do campo político.

É bom lembrar que José tinha passado por outra experiência ligada ao consumo da informação quando frequentava cultos evangélicos e missas católicas na infância e adolescência. Primeiro com a mãe, depois, sozinho, comportamento que foi sendo apagado depois que casou. José observou que no Exército poderia ativar as disposições que acionava inconscientemente quando frequentava os templos religiosos: a vontade de ler e de dominar a oratória.O gosto pela escrita foi sendo despertado com a leitura dos periódicos no Exército. Começou copiando os textos que lia.

Lendo a gente aprende. Eu leio muito. Gosto de ler jornais. A gente vai aprendendo no dia a dia, também pesquisando na internet. Aí a gente vai aprendendo as coisas (José).

Depois, passou a resumir os textos que estava lendo, sem a orientação de ninguém. Foi procurar livros em bibliotecas. Disse que gostava de treinar a caligrafia. Como tinha ficado fora da sala de aula entre os 15 e 28 anos de idade, foi cursar o supletivo. Queria aprender mais para arranjar um trabalho melhor. Isso demonstra que o ascetismo para encontrar um emprego fixo foi a mola propulsora desse retorno ao colégio. Fez o supletivo em uma escola estadual por um ano, equivalente ao período do 6º ao 9º ano do ensino fundamental II.

Nessa época, encontrou estímulo para ativar a disposição sincrônica para ler e escrever. Aos 29 anos, decidiu fazer o ensino médio normal em outra escola estadual. Concluiu com 34 anos. Repetiu duas vezes, mas não desistiu. Percebeu que só assim poderia crescer, como ele mesmo recordou em sua entrevista.

Nessa segunda fase da socialização na escola, quando retornou adulto, José foi estimulado a acionar a sua disposição para as ações culturais, quando passou a querer ler e escrever mais e melhor. Essa disposição começou a se formar na infância. Não foi pelo incentivo dos pais, mas pelo que presenciou nos templos religiosos. Ele passou a admirar a oratória. Depois, no Exército, quando teve acesso diário a jornais e revistas.

Nessa etapa, conheceu um professor de português e redação que o incentivou a escrever e ler de forma mais crítica. Começou a enviar textos para a sessão de cartas à redação de jornais e revistas, estimulado pelo professor que também tinha essa prática. Inicialmente, falava das dificuldades que encontrava na escola pública. Depois, dos problemas das ruas.

O professor o influenciou na ativação de disposições para as ações sociais, políticas e culturais e para buscar informação. José começou a perceber que os problemas que afetavam a sua vida também se relacionavam ao dia a dia da coletividade, da comunidade. O interesse para o social, que estava individualizado nele, ia para além da família original e das campanhas voluntárias das quais participava no Exército e nas igrejas.

Isso significa que José também estava sendo motivado a práticas políticas mais amplas que não ficavam restritas ao voto ou à vida partidária, mas estavam voltadas para a vida em sociedade. Por meio das cartas enviadas aos jornais, ele tornava públicos os problemas da escola e dos lugares por onde passava. Procurava contribuir para encontrar uma solução. Fazia como o professor ensinava. Lembrou que os seus textos naquela época já eram publicados.

Essa coisa de reivindicar veio na comunidade (falando do lugar onde mora), mas começou mesmo com o professor. Falava do melhoramento da merenda, da escola, dos livros nas bibliotecas. Comecei a me preocupar com a educação (José).

É bom ressaltar que a disposição para ler e escrever foi estimulada pelo professor, não pela escola como um todo. O papel desse professor isoladamente foi muito importante para o acionamento das disposições para o jogo do agir ativamente no jornalismo. O professor ensinou as técnicas da escrita que ele utilizava quando escrevia para a grande imprensa, interagia com o fórum do DP e produzia os textos em seu blog.

O patrimônio disposicional para agir ativamente, construído inconscientemente nos processos de socialização da família original, da atividade profissional em sua passagem pelo Exército e na escola – e posteriormente levado para o jornalismo –, foi acionado com mais força anos mais tarde quando José ocupou um terreno em uma comunidade humilde. Foi morar lá com a família formada porque não tinha dinheiro para pagar o aluguel da casa onde residia, o que explicaremos mais adiante.

A atuação política do professor ia além da sala de aula e das práticas que adotava como cidadão participativo, lembradas por José. O seu mestre também chegou a disputar um cargo público eletivo, o de vereador do Recife, mas não se elegeu. Anos depois, José quis seguir os passos do professor, mas não conseguiu se candidatar. A disposição para fazer o assistencialismo na comunidade em que iria morar com a família formada levou José a ser cabo eleitoral e a querer ser candidato.

José disse que sempre foi curioso e tinha vontade de “conhecer as coisas” cada vez mais, sendo persistente e apresentando muita força de vontade. Seu sonho é fazer o curso de direito. Gosta de escrever sobre a comunidade e a política. Exerce um trabalho informal e não tem nenhum curso para atuar profissionalmente como pedreiro, exercendo o ofício pela prática. A experiência do retorno à escola contribuiu para que ele se preparasse para realizar atividades que demonstrou gostar mais de fazer na ocasião das entrevistas: ser líder comunitário e ser repórter-amador.

As leituras dos livros e dos jornais levados pelo professor de português, além do próprio exemplo de vida dele, foram importantes para a formação dos valores culturais de José. Como não podia comprar esse material, passou a frequentar bibliotecas para que tivesse acesso a ele. José não vai a museus, teatros ou cinemas. Quando teve a oportunidade de assistir a uma peça teatral com o filho mais novo, gostou. Se fossem mais acessíveis, disse que frequentaria esses lugares.

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