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São pilares da Educação Histórica as seguintes abordagens: “a problematização, o ensino e a construção de conceitos, a análise causal, o contexto temporal e o privilegiamento da exploração do documento histórico” (SCHMIDT, 2002, p. 121). É neste último pilar que o trabalho do professor de História com o cinema se revela mais profícuo. A exploração do documento histórico no âmbito da Educação Histórica é o que abordaremos com maior ênfase neste tópico.

A pesquisa não é apanágio do bacharel em História. A metodologia dedicada à análise de fontes históricas deve ser apropriada pelo profissional de ensino que, por sua vez, deve tornar seus educandos familiarizados com tais métodos e procedimentos. Desejamos neste ponto retomar as observações que assinalamos no item 2.2, no tocante ao trabalho do historiador profissional com fontes históricas fílmicas. Tudo o que foi escrito a esse respeito deve ser objeto de transposição didática para um professor que deseje abordar o cinema em sala de aula.

Vimos, anteriormente, como a Escola dos Annales rompendo com o paradigma da Escola Rankeana, diversifica as fontes históricas. No Brasil, a escola incorpora essas novas fontes ao âmbito da sala de aula muito tardiamente. Durante o regime militar, cuja instalação se deu com do golpe de 1964, a disciplina de História foi reunida à de Geografia sob a denominação de Estudos Sociais. A ideologia da ditadura coadunava-se perfeitamente com o pressuposto teórico do positivismo segundo o qual o Estado é o sujeito da história. Sendo assim, o objetivo do ensino de História tornou-se enaltecer a Pátria (SANTANA, 2016). Da mesma forma, quando a ciência histórica se constitui como tal, ainda no século XIX – época da formação dos Estados Nacionais – o papel do ensino de História estava relacionado à promoção de uma doutrinação ideológica no sentido de incutir nos cidadãos um senso de respeito e até mesmo idolatria em relação à comunidade nacional (OLIVEIRA, 2011).

Apesar do trabalho com fontes históricas diversificadas surgir na academia já na primeira metade do século XX, e ser ensaiada no Brasil em algumas escolas vanguardistas pelos intelectuais da Escola Nova, é somente na década de 1980, no contexto da luta contra o entulho autoritário herdado do regime militar, que uma transposição didática dessa metodologia encontrará por meio de seus proponentes alguma amplitude (SANTANA, 2016). Quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, temos marcos importantes nesse processo, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN) e, principalmente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1999.

No que se refere ao componente curricular de História, a abordagem cuja inauguração este documento representa é aquela da Educação Histórica. Esse conceito nos remete a uma proposta de ensino de História cuja finalidade não é doutrinar para uma ideologia seja ela conservadora ou pretensamente progressista. A educação histórica rompe com o método tradicional na medida em que ela visa estimular o pensamento crítico pelo desenvolvimento de uma consciência histórica. Isto significa construir conhecimento visando atingir objetivos específicos para que os educandos aprendam a pensar historicamente. Alguns exemplos das competências nas quais implicam a educação histórica:

Saber “ler” fontes históricas diversas – com suportes diversos, com mensagens diversas; saber confrontar as fontes nas suas mensagens, nas suas intenções, na sua validade; saber selecionar as fontes, para confirmação e refutação de hipóteses (descritivas e explicativas); saber entender – ou procurar entender – o “Nós” e os “Outros”, em diferentes tempos, em diferentes espaços; saber levantar novas questões, novas hipóteses a investigar – algo que constitui, afinal a essência do conhecimento (BARCA, 2005, p. 17 apud OLIVEIRA, 2011, p. 37-38).

Todos os procedimentos apontados acima se aplicam igualmente à abordagem do cinema nas aulas de História. Nesse sentido, o filme, produto audiovisual da Indústria Cultural, merece ser analisado criticamente pelos estudantes nas aulas de História da educação básica, considerando-o como uma fonte histórica. Propõe-se assim uma transposição didática dos procedimentos metodológicos da crítica histórica do filme para o contexto da sala de aula. Procedimentos estes que, sendo assimilados pelos estudantes, contribuirão na formação de uma consciência histórica (OLIVEIRA, 2016).

Desse modo, a Educação Histórica se revela como um modo de superar a notória “educação bancária” denunciada por Paulo Freire na qual não se trata mais de transferir conhecimentos, mas sim de proporcionar ao estudante os meios para a construção de um conhecimento no sentido da sua autonomia (FREIRE, 1987, 2002). Nessa perspectiva, a aprendizagem significativa (MOREIRA, 2012) torna-se possível em razão do protagonismo do educando no processo de ensino-aprendizagem, dentro do que também pode ser denominado de “aprendizagem por descoberta”.

A lógica de ensino-aprendizagem que embasa as ações do profissional que se queira conduzir em consonância com as postulações expostas até aqui se baseia na seguinte premissa: o educador opera junto ao educando em torno da sua própria concepção acerca do que se quer aprender, tendo em vista a construção de novos conteúdos, através da modificação dos esquemas cognitivos do educando (SOLÉ;COLL, 1997). Mas a intervenção do educador

não se limita à esfera cognitiva, uma vez que o educando é considerado na sua integralidade, isto é, na esfera afetivo-relacional do seu desenvolvimento pessoal. Nessa concepção o papel do educador consiste em auxiliar sistematicamente o estudante numa atividade intelectual que seja fundamentalmente sua (op. cit.). Isso porque não se trata de impor sobre o educando uma narrativa “correta” da historiografia acadêmica, mas permitir que o educando construa com autonomia, a partir de fontes históricas apresentadas, sua própria narrativa acerca do mundo.

Em linhas gerais, essa pedagogia crítica não é nenhuma novidade na História da Educação Brasileira. Ela vem tomando corpo na educação escolar pelo menos desde a década de 1980. Para não mencionar as propostas de educação popular encabeçadas por Paulo Freire já na década de 1960. Entretanto, assumir esse ideário nunca se fez tão urgente quanto nos tempos atuais, que podemos denominar como a hipermodernidade9

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Examinemos de forma mais acurada os postulados teóricos do mestre pernambucano. Ele nos ensinou que o educando é um sujeito cognoscente com estatuto de dignidade na relação de ensino-aprendizagem. Ele constrói seus próprios saberes de acordo com suas experiências subjetivas e não assimila passivamente o que o professor lhe quer impingir. Freire critica a educação bancária, aquela na qual não se busca a horizontalidade entre educador e educando e os conteúdos são meramente depositados por um agente na mente do outro, mero recipiente. Nesse sentido, podemos inferir que, para Freire, o verdadeiro perigo de uma educação bancária é de que o potencial dos educandos para pensar por si próprios seja subestimado e ignorado pelo professor, deixando de ser fomentado por este (FREIRE, 1987).

Se quisermos refletir sobre a validade do pensamento freiriano para os tempos atuais, podemos considerar que a questão não é a ameaça de o professor praticar uma lavagem cerebral, domesticando a mente do estudante. No contexto atual, a autoridade do professor é disputada por inúmeras fontes de saber, numa sociedade da informação instantânea. Poderíamos ir além dessa ingênua predição e dizer que o risco de um tal empreendimento de “doutrinação ideológica” é o de os conteúdos supostamente sendo impostos caírem na nulidade. O diálogo hoje é mais do que nunca necessário, em razão de situarem-se os estudantes num patamar de igualdade gnosiológica com o professor (FREIRE, 1987), mas também em função da crise de autoridade que a era digital contribuiu para aprofundar. Ainda

9 Pode-se entender a “hipermodernidade” como uma radicalização do projeto da modernidade, este caracterizado por princípios como a racionalidade técnica, a economia de mercado, a valorização da democracia e a extensão da lógica individualista. (LIPOVETSKY 2004)

assim, em pleno século XXI, há grupos políticos que militam para censurar a fala do professor, temendo a prática de “doutrinação ideológica”10.

Para compreender a condição peculiar na qual atualmente professores e estudantes se encontram, de serem convidados a reinventarem seus papéis, é preciso discutir o lugar das TDIC no contexto da hipermodernidade. É nesse meio hipermidiático que circula o audiovisual hoje. Em virtude dessas inauditas circunstâncias, consideramos bastante oportuno avaliar a função do letramento digital nesse processo. (ROJO, BARBOSA, 2015).