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Gostaríamos de chamar a atenção do leitor para o subtítulo do nosso trabalho: “o cinema como mediador no ensino e aprendizagem de história na perspectiva dos multiletramentos”. Já discutimos a perspectiva de “cinema” e audiovisual adotada neste estudo no item 2.1. Ademais, subsidiamos nossos postulados nesse tocante ao refletirmos a respeito do cineclubismo no item 2.6. Também já defendemos o nosso posicionamento no que diz respeito à relação entre “História” e Cinema no item 2.1, bem como elucidamos como o Cinema deve ser incorporado ao “Ensino de História” a partir da discussão nos itens 2.3 e 2.4. Nossa fundamentação no que tange à Educação (leia-se, “ensino e aprendizagem”) foi, aliás, desenvolvida ao longo dos diversos subtópicos presentes no item 2.2, incluindo o subtópico 2.2.2, que versa especificamente acerca da “perspectiva dos multiletramentos”, cujas propostas foram aprofundadas mais adiante nos itens 2.2.3 e 2.5. Resta, portanto, conceituar com maior detalhe o que estamos chamando de mediação e explicar em que sentido consideramos o cinema como um mediador na pesquisa que ora empreendemos.

Em sua tese a respeito do papel do cinema como mediador na formação inicial de professores de espanhol, Fabio Souza (2014) busca suporte nas teorizações do pensador soviético Lev Semenovich Vigotski12

para conceituar o papel que o filme pode ter na reformulação das crenças desses profissionais acerca do ensinar e aprender espanhol. Para Souza, a perspectiva sociocultural, a qual o pensador se filia,

assume a cognição humana como emergente do engajamento em atividades sociais, e são as relações socais e os materiais culturalmente construídos, signos e símbolos, chamados de artefatos semióticos, que medeiam as relações que criam formas exclusivamente humanas de pensamento em nível superior (SOUZA, 2014, p. 81).

Analogamente à tese elaborada por Souza, este trabalho adota o filme como um artefato semiótico nesse mesmo sentido. Com vistas a viabilizar o esclarecimento do conceito de mediação, que é tão peculiar à perspectiva sociocultural, faz-se, portanto, necessário buscar aportes teóricos nos estudos do referido intelectual, Vigotski.

12 Diante das diversas possibilidades, optamos - nesta dissertação – por grafar Vigotski, seguindo o padrão adotado pelas traduções publicadas no Brasil pela Editora Martins Fontes.

Segundo Marta Kohl de Oliveira (1992, p. 26), Vigotski caracterizava a mediação como um “processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação” entre o ser humano e o meio físico e social. O interesse principal do psicólogo bielo-russo era buscar compreender como se originavam no ser humano “as funções psicológicas superiores, distinguindo o homem [leia-se, o ser humano] dos outros animais" (op. cit., p. 33). E sua tese central era de que o processo de mediação é determinante nesse desenvolvimento.

Podemos definir as funções psicológicas superiores como

mecanismos psicológicos mais sofisticados, mais complexos, que são típicos do ser humano e que envolvem o controle consciente do comportamento, a ação intencional e a liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do espaço presentes. (op. cit., p. 26)

Mas esse “dom” tão peculiar à natureza humana não foi dádiva de Prometeu, nem de nenhuma outra divindade do Olimpo. Ele é oriundo de um processo histórico. Em termos vigotskianos ele advém de um processo filogenético – porque decorre da evolução da espécie –, ontogenético – porque resultado do desenvolvimento biológico do ser – e sociogenético – porque pertence à socialização do indivíduo. Segundo Vigotski (2007), esse nível de operação cognitiva que só o humano conhece, apenas pôde ser alcançado graças à mediação que, por sua vez, dá-se apenas pelo uso concreto de instrumentos ou o uso abstrato de signos.

Imerso no ambiente intelectual efervescente da Rússia pós-revolucionária, Vigotski tomou de empréstimo da teoria marxista, bastante em voga naquele contexto, muitos dos seus postulados. Dentre estes podemos destacar o conceito ontológico de trabalho. De acordo com o materialismo histórico de Marx e Engels, o trabalho, isto é, a capacidade de transformação da natureza, é o que diferencia o ser humano dos outros animais. É a partir do trabalho que a cultura e a história são inauguradas. O trabalho desenvolve-se por meio da atividade coletiva. E é por seu intermédio que são criados instrumentos. Vigotski define instrumento como um "elemento interposto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza" (OLIVEIRA, 1992, p. 29).

Talvez uma referência cinematográfica torne mais transparente a nossa exposição. Num outro trabalho, fizemos uma análise da representação da evolução dos hominídeos realizada por Stanley Kubrick na clássica obra de ficção científica “2001: Uma Odisseia No Espaço” (ALMEIDA; SOUZA, 2018). Desejamos tomar de empréstimo alguns dos apontamentos feitos nesse estudo a fim de apresentar ao leitor algumas das teses centrais de Vigotski no que se refere ao conceito de mediação.

Numa das sequências mais célebres da cinematografia, um macaco antropóide vasculha por entre as ossadas de um bicho morto. Ele toma um osso nas mãos e experimenta com este sucessivos golpes. O uso da trilha sonora, da câmera lenta, do tamanho e da angulação dos enquadramentos sugerem o heroísmo da cena. É o momento da descoberta do instrumento, um ponto fulcral da história da evolução humana. Em virtude de tudo isso, é a celebrada transformação da natureza que está sendo representada (ver fotograma 1).

Fotograma 1

Mediante a narrativa audiovisual, Kubrick consegue ilustrar, nessa sequência, o que em termos marxianos poderíamos caracterizar como a gênese do trabalho ontológico. Em termos vygotskianos, por outro lado, poderíamos denominar o momento representado como a etapa filogenética do desenvolvimento humano em que o ser humano descobre o instrumento como mediador da sua relação com o meio físico, potencializando sua habilidade para transformar a natureza (no caso específico em questão, sua habilidade para caçar). Trata-se de um tipo particular de mediação. Porém, os processos psicológicos superiores (...) não seriam alcançados sem a participação no desenvolvimento humano de um outro tipo de mediação: a mediação simbólica (ALMEIDA; SOUZA, 2018).

Segundo Almeida (op. cit.), o processo de mediação está exemplificado no filme não apenas no conteúdo da sequência que ilustra o hominídeo explorando o pioneiro uso de um instrumento de trabalho, mas também na utilização de signos por parte, não do personagem do filme, mas do próprio diretor, especialmente através da montagem cinematográfica. Ele argumenta que a justaposição entre a imagem de um osso (o instrumento do hominídeo) rodopiando no ar e a imagem de um satélite orbitando no espaço sideral, ao permitir uma comparação entre ambos os objetos, constituiu-se como um signo que representa a aventura humana através da história, simbolizando o desenvolvimento técnico-científico que é o apanágio da nossa espécie.

Segundo Vigotski, os signos funcionam como auxiliares psicológicos que potencializam a ação do ser humano no mundo, de um modo análogo a como os

instrumentos ampliam a capacidade humana de transformação da natureza. Esse processo viabilizado pelos signos é denominado de “mediação simbólica”. Por meio dos signos, temos as nossas habilidades de memória, atenção e percepção mediadas e, por isso mesmo, ampliadas. (ALMEIDA; SOUZA, 2018)

É graças à utilização da mediação simbólica na sequência analisada pelo autor que podemos ter “uma compreensão lúcida acerca de um ponto chave da história da humanidade sem recorrer à comunicação verbal” (ALMEIDA; SOUZA, 2018). Desse modo, fica evidente como o audiovisual pode permitir a mediação simbólica, auxiliando na construção de conceitos históricos por parte dos educandos.

Na mesma chave o filme “A Chegada” é analisado pelo autor, levando-o a

constatar como a linguagem cinematográfica, por meio novamente dos seus efeitos de montagem, permite ao espectador vivenciar uma experiência não linear do tempo, que inclusive nos ajuda a intuitivamente apreender a pertinência desses conceitos e teorias científicas, dos quais o universo da ficção lança mão para construir narrativas mais ou menos realistas (ALMEIDA; SOUZA, 2018).

É assim que o autor percebe o filme como “um artefato multissemiótico transmite significados por intermédio de seus signos, bem como colabora na reestruturação do nosso pensamento possibilitando a apreensão de conceitos generalizantes” (op. cit). Isso, porém, não significa que o filme baste a si mesmo no processo educativo, uma vez que a plena fruição dessas narrativas audiovisuais pressupõe “uma série de conhecimentos prévios em relação à temática que abordam e o próprio domínio da linguagem cinematográfica” (op. cit).

É nesse sentido que entendemos este trabalho como uma contribuição à formação de professores. Pois julgamos desejável que o docente se aproprie de todos esses conhecimentos com vistas a que possa ser ele mesmo um mediador na relação entre o estudante e o filme. Nos termos de Vigotski, ele deve intervir sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) do seu pupilo. A ZDP é caracterizada como

a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (…) A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. (…) O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal carateriza o desenvolvimento mental prospectivamente” (VIGOTSKI, 2007, p. 97-98).

Acreditamos, com Vigotski, que a aprendizagem se constrói de um modo social e interativo, entre participantes mais ou menos experientes de uma determinada cultura. Na sala de aula, no cinema, na sala de estar ou no cineclube, o filme permite, mas não garante que processos de mediação atuem. Consciente disso, o profissional do ensino tem uma maior probabilidade de aumentar a eficácia das suas intervenções pedagógicas.