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Maria Lourdes Cruz (2011), num artigo que investiga o lugar das TDIC nas esferas do uso da linguagem, caracteriza a contemporaneidade como marcada pelas transformações tecnológicas possibilitadas por essas novas mídias, mesmo no que tange à dimensão sociocultural dessas mudanças. Velocidade, ruptura de barreiras geopolíticas, interatividade e uma acentuada multimodalidade são marcos desta nova era. Tais mudanças repercutem nas nossas formas de nos relacionarmos e de ser no mundo.

Ao mesmo tempo, esse quadro tem provocado resistência por parte das instituições escolares, procrastinando uma inexorável adaptação frente a essa nova realidade, ainda que paulatinamente tenham despontado algumas iniciativas nesse tocante. Essas transformações, é claro, estão intimamente associadas ao advento da internet que, por sua vez, tem gerado reações diversas, oscilando entre o deslumbramento e o ceticismo. Tendo em vista apreendermos esse novo fenômeno de um modo consequente do ponto de vista educativo, faz- se necessário manter um equilíbrio frente ao mesmo. Para tanto, é válido abordar alguns dos seus aspectos centrais, na concepção dos estudiosos citados pela autora, que passaremos a considerar (CRUZ, 2011).

No que tange às informações salienta-se o excesso implicado na facilitação do seu acesso (CRUZ, 2011). Em entrevista a Abujamra no programa Provocações da TV Cultura, Rubem Alves, ilustra bem, com o habitual apelo imagético de suas palavras, o paradoxo da pobreza no excesso de informação, comparando a informação à água. Ele explica que apesar

10 Refiro-me aqui à chamada Escola Sem Partido, movimento da sociedade civil que causou polêmica no ano 2016 em razão da proposta de um projeto de lei que reivindicava a “pluralidade” em sala de aula, enquanto, ao mesmo tempo, prescrevia a possibilidade de sancionar o professor caso ele não se adequasse à referida pluralidade nos moldes estabelecidos pelo documento: http://www.escolasempartido.org/

de abundante ser a água no nosso planeta Terra, água potável vem se tornando um bem cada vez mais escasso. Do mesmo modo, a informação tornou-se abundante com o advento da internet. Contudo, “informação potável”, ou seja, informação de qualidade, confiável e pertinente não é fácil de encontrar-se (ALVES, 2011).

Além do excesso de informação, devemos tomar nota dos seguintes aspectos: a velocidade possibilitada pela comunicação em tempo real, as novas configurações do espaço público que se diluem na esfera privada e a multimodalidade que constitui as narrativas veiculadas pela rede global. Já conceituamos esta última característica e podemos afirmar a respeito dela que, embora a internet não a tenha inventado, ela tem garantido a sua expansão. Nesse meio encontra-se o audiovisual, juntamente com outras mesclas de códigos semióticos – como o escrito, verbal, gestual, espacial, entre outros. Segundo Cruz (2011), tais artefatos multimodais são produtos de uma sociedade pós-moderna que privilegia a fragmentação e a diversidade. Um desdobramento crítico desse quadro encontra-se na introdução dos hipertextos nessa conjuntura. Os hipertextos para Lemos “são informações textuais, combinadas com imagens (animadas ou fixas) e sons, organizadas de forma a promover uma leitura (ou navegação) não linear, baseada em indexações e associações de ideias e conceitos, sob a forma de 'links'” (LEMOS, 2011 apud CRUZ, 2011, p. 102).

A referida definição deixa entrever a circulação do audiovisual que nesta era foi elevada ao patamar da ubiquidade. Ora, se o nascimento do cinema enquanto um veículo de comunicação em massa, pressupunha uma relação emissor-receptor unidirecional, uma vez que determinantes técnicos e econômicos situavam os centros de produção cinematográficos em polos concentrados, neste novo panorama nos deparamos com uma configuração comunicativa muito mais complexa. A novidade aqui se apresenta na multilinearidade permitida pelo hipertexto. De resto, os centros de produção, com a democratização de equipamentos de gravação, possibilitados pela Terceira Revolução Industrial, foram em alguma medida pulverizados, ainda que mantenham muito do seu poder econômico e prestígio de outrora (ROJO, 2012).

Desafortunadamente, essas novas vicissitudes não nos levam à conclusão de que a alienação tenha sido superada. No contexto da Web 2.0, em que a cisão produtor/leitor de mídias foi superada em prol de uma nova concepção de “lautor”, embora o usuário possa construir o seu próprio percurso nas redes hipermidiáticas, e assuma a autoria de suas próprias mídias, qualquer veleidade desviante é rigorosamente minimizada e estatisticamente

controlada. O marketing digital e a publicidade exercem influência decisiva na navegação dos usuários. Os algoritmos desenvolvidos para as redes sociais digitais atendem ao imperativo da maximação do lucro das empresas que oferecem esse serviço, o que é natural para qualquer empresa numa economia de mercado, como a que vigora entre nós contemporaneamente. Mas quando a mercadoria é a informação, ela nunca é neutra. E se cada cidadão, bem ou mal informado, não passa de um consumidor em potencial – conforme instaurado pela ideologia neoliberal vigente – a informação que chega até ele atende menos a algum critério racional de exposição da verdade factual, nos termos tradicionalmente cultuados pelo jornalismo profissional, do que responde de uma forma calculada aos impulsos mais rasteiros na direção da gratificação imediata, proporcionada pelo alívio momentâneo do tédio e da depressão (que o vazio existencial provocado pela dissolução de todo vínculo humano significativo e pela obliteração de todo projeto coletivo outrora sonhado provocou), e da tensão insustentável de ter de submeter-se a empregos cada vez mais precarizados (HARVEY, 2008). Assim a perspectiva de construir conhecimento crítico na internet é prejudicada em função dos ditames da superficialidade reinante, num ambiente em que as distrações acionam as nossas inclinações em desfavor da profundidade, sugando todo o nosso elã vital para dentro de um vórtice de futilidades. Qualquer rota alternativa na cartografia da hipermodernidade requer proatividade (ROJO; BARBOSA, 2015).

Ghaziri e Arena (2011) compartilham da mesma cautela que Cruz (2011) quando apontam a necessidade de considerar a tecnologia digital a uma distância crítica. O seu uso não é intrinsecamente bom nem mau, mas segundo esses autores, essas modernas linguagens comunicacionais podem ser apropriadas pela escola de um modo vantajoso se situarmos tal fenômeno no âmbito da teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos já referida alhures.

Os autores relatam os avanços que o ensino da língua materna realizou no Brasil, sendo a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais bastante emblemática nesse sentido. Por meio deles, a comunicação (verbal) passa a ser reconhecida como uma prática enraizada nos processos sociais. A partir dessa mudança paradigmática, a missão da escola será colaborar para desenvolver as competências comunicativas dos educandos, para que estes possam transitar por esferas da sociedade vedadas àqueles que não lograram prévia iniciação aos ritos comunicativos desses espaços. O conceito de “gênero” torna-se particularmente útil na medida em que, mediante a identificação dos padrões de estruturação relativamente

estáveis dos enunciados, possibilita refletir sobre os sentidos da língua calcados em atividades reais do cotidiano (GHAZIRI; ARENA, 2011).

Essa perspectiva é conducente à obtenção de uma aprendizagem significativa, uma vez que a criação de situações reais e condições de comunicação efetiva confere um significado concreto às práticas escolares, afastando-nos do ensino normativo da gramática, no qual o texto serve apenas como pretexto para explorar questões alheias à subjetividade dos aprendizes e seus afetos verdadeiros. O texto é aqui, antes, a expressão de um discurso cujo sentido convém apreender. E a gramática nos serve na medida em que facilita essa apreensão e nos capacita para a veiculação dos nossos próprios discursos com maior eficácia.

Criar um tutorial de um jogo e publicar no youtube11

exige uma série de competências que não devem ser menosprezadas pela escola. O tutorial é, na perspectiva aqui desenvolvida, um gênero digital e para que sejamos felizes na sua produção, o letramento digital é um indispensável requisito. Esse exemplo evidencia a centralidade que o audiovisual adquire na hipermodernidade e como os multiletramentos encontram-se intimamente imbrincados (GHAZIRI; ARENA, 2011).

Apesar das promessas emancipatórias das transnacionais do Vale do Silício, é improvável que sem um letramento digital de viés crítico, o usuário passe realmente a usar as TDIC, em vez de as TDIC usarem os seus usuários. Os algoritmos que regulam os mecanismos que estruturam a internet não são neutros, mas sim uma engrenagem na valorização do valor capitalista (ainda que muito inovador e criativo). A era da inteligência coletiva, conforme preconizada por Pierre Levy, conclama os cidadãos digitais a assumirem um protagonismo consciente na construção de uma verdadeira revolução de ideias (SENAC, 2016).

Vale frisar que todas as questões que levantamos acerca do progresso nas concepções do ensino da língua na história da educação brasileira não são apenas relevante para o componente curricular de português, inglês ou espanhol. Se pensarmos com Edgar Morin (2000) acerca da complexidade que a educação deve reivindicar almejando promover o conhecimento humano, toda intervenção pedagógica deve ser pensada através do prisma da interdisciplinaridade, ou da transdisciplinaridade, sob o risco do conhecimento escolar tornar- se uma racionalização escusa. Nem a leitura, tampouco o letramento (como já salientamos),

são apanágio do professor de línguas. Sendo assim, o que diz respeito à leitura se refere igualmente ao professor de História.

Os apontamentos que realizamos a respeito da construção crítica do conhecimento no contexto da hipermodernidade nos impelem a reconhecer a cultura de participação que os ambientes digitais fomentam. Nessa cultura participativa, segundo Jenkins (2009, p. 378 [o grifo é nosso])), “consumidores são convidados a participar ativamente da criação e da circulação de novos conteúdos”. Percebe-se que o protagonismo é permitido apenas na medida em que se consome. Em outras palavras, “a vaga é de uso exclusivo para clientes em atendimento”. A questão se torna então como fazer esses usos corriqueiros das TDIC ultrapassarem a dimensão do consumo.

Nossos apontamentos críticos a respeito dos seus limites não visam menosprezar as contribuições seminais que essas transformações societárias podem representar para a educação. Em que pese a demonização da qual amiúde as TDIC são alvo, a sua natureza hipermidiática para além de nos convocar a incluí-las como dispositivos ou objetos de estudo nas nossas aulas, nos instiga a repensar os paradigmas seculares que nortearam a educação. A dinâmica colaborativa dos textos hipermidiáticos, que circulam nas redes sociais, empresta- lhes contornos revolucionários quando rompe com patrimônios fundados sobre a noção de propriedade autoral sobre as ideias. Em contraposição, surge a noção de fratrimônio, segundo a qual, os bens simbólicos – tais como os softwares livres de código aberto – são produzidos de um modo coletivo. À educação escolar caberia a tarefa de se reinventar estimulando a aprendizagem colaborativa, com ou sem o uso de uma parafernália tecnológica, evitando abordar o conhecimento na perspectiva analógica de antanho. Para tanto, o professor precisa se desapegar do seu tradicional lugar de fonte sacrossanta do saber, algo que, a despeito de todo um discurso progressista prontamente reivindicado por muitos, permanece enraizado nas práticas cotidianas do professorado. Sem essa desconstrução, a utilização de tablets ou de

lousa digital não fará a menor diferença (HILU; TORRES, 2014).

Nesse sentido, impõe-se um novo paradigma curricular fundamentado no princípio da “aprendizagem interativa”, segundo o qual, assim como a multilinearidade permitida pelo hipertexto, o educando assume o protagonismo na direção que pretende tomar em função de seus interesses e suas necessidades (LEMKE, 2010).

Refletimos acerca de qual seria o papel da educação escolar na conjuntura da hipermodernidade. Todavia, temos de levar em conta que a escola não é o único espaço

educativo em que uma visão de mundo alternativa pode ser projetada. No que se refere à cultura audiovisual, e as possibilidades formativas advindas dessa fonte, desejamos a partir de agora nos debruçarmos no estudo das lições que o cineclubismo tem a dar para a escola.