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2.2 Cinema e Educação

2.2.1 O cinema na perspectiva da mídia-educação

Desde a década de 1950 que estudiosos, educadores e jornalistas têm se debruçado sobre os efeitos dos meios de comunicação de massa e seus impactos sobre o público. Trinta anos antes, as ondas eletromagnéticas de rádio já cobriam o céu dos dois hemisférios. A televisão, porém, era uma grande novidade. O cinema, combinando som e imagem já desde a

década de 1930, existia há mais de meio século. Nessa Era Dourada do Capitalismo, como foi chamado o período de prosperidade, pelo menos para o Ocidente desenvolvido, uma nova sociedade de consumo se edificava. A publicidade convidava o cidadão de todas as classes a consumir enquanto geravam a demanda efetiva para a produção fordista, aumentando a arrecadação e garantindo as benesses do Estado de Bem-Estar Social. A democracia havia triunfado sobre os regimes totalitários derrotados na Segunda Guerra Mundial. Eleições e campanhas políticas tornar-se-iam a norma no mundo para o oeste da “cortina de ferro”. A liberdade de expressão foi garantida, mas junto com ela o poderio dos grandes conglomerados midiáticos que transformam a informação numa rentável mercadoria (HOBSBAWN, 1995).

Esse é o cenário em que, ao longo dos anos de 1950 e 1960, é cunhado a expressão “mídia-educação”. Embora iniciativas pontuais de educação para as mídias tenham se realizado antes desse período (ALMEIDA, 2012). Nos documentos oficiais da Organização das Nações Unidas ele passa a figurar desde 1973, evidenciando a necessidade sentida pelos representantes das conferências mundiais de fomentar uma formação crítica em relação às mensagens midiáticas. As mídias, impressas, ouvidas ou televisivas, passam a ser reconhecidas como objetos de estudo passíveis de serem problematizados no contexto da educação (BELLONI; BÉVORT, 2009).

Em 1982 representantes de 19 países se reuniram na cidade alemã de Grünwald para ratificar uma Declaração destacando a importância das mídias e a obrigatoriedade dos sistemas educacionais de implementarem medidas para auxiliar os cidadãos a melhor compreenderem esse fenômeno, consagrando a partir desse encontro o conceito de “mídia- educação”. Com a Declaração de Grünwald, uma apropriação não apenas crítica, mas também criativa, emerge como um novo paradigma de mídia-educação – formar não apenas para as mídias, mas também pelas mídias. A fim de romper com a passividade tão necessária para a indústria cultural e mídia de massa obter êxito em ocupar o “tempo de cérebro” do espectador/ouvinte/leitor desavisado, formando um sujeito acrítico sempre disposto a consumir bens materiais e simbólicos; no intuito de superar essa assimetria reinante entre mídia e usuário, é que se passa a adotar como um dos eixos da mídia-educação a noção de criar a sua própria mídia (BELLONI; BÉVORT, 2009).

Na América Latina, graças a iniciativas como as do brasileiro Paulo Freire, do uruguaio Mario Kaplún, e de Jesús Martín-Barbero na Colômbia, a mídia-educação, ou “educomunicação”, como é também chamada, ganhou contornos peculiares. O contexto de

enfrentamento ao imperialismo e às desigualdades estruturais, tão características às economias subdesenvolvidas da América Latina, emprestou à mídia-educação uma dimensão revolucionária, na medida em que ela assumia então a tarefa de conscientização das massas oprimidas, na luta pela inversão desse quadro societário (ALMEIDA, 2012).

O cinema, desde o início do século XX, tornou-se um espetáculo para o divertimento das massas ou instrumento de propaganda para doutrinar o povo (frequentemente as duas coisas ao mesmo tempo). Ainda na década de 1940, (ou seja, antes ainda do advento da televisão), ele passou a ser considerado a expressão cabal da já referida Indústria Cultural, tal qual conceituada pelos filósofos da Escola de Frankfurt. Os intelectuais do marxismo ocidental, como Theodor Adorno e Max Horkheimer, judeus alemães refugiados do regime nazi-fascista nos Estados Unidos da América, viam nos filmes comerciais de Hollywood uma continuidade lógica com a propaganda política nazista. Segundo eles, a mesma lógica de dominação que caracterizava o nazismo estava presente nesse produto peculiar do capitalismo norte-americano que é o cinema hollywoodiano – sendo a repetição e a padronização alguns de seus principais elementos. Nazismo e capitalismo, para eles, eram faces da mesma moeda (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).

O que surpreende num filme como o Judeu Süss, por exemplo, produzido pelo próprio Goebbles, ministro de propaganda do Terceiro Reich, para angariar o apoio do povo alemão ao projeto da “solução final” não é tanto o seu antissemitismo descarado, mas sim como ele é parecido com qualquer outro filme hollywoodiano de ideologia pretensamente liberal. Bastaria trocar os personagens e o espectador moderno sentir-se-ia muito à vontade diante dessa narrativa repleta de fórmulas clicherizadas que representam o velho combate entre o bem e o mal. Mocinhos, bandidos, uma donzela em perigo, a justiça se restabelecendo no final – nada aqui é estranho ao repertório das convenções estéticas consagradas por Hollywood (FERRO, 2010).

Quer aceitemos ou não os seus postulados, a Escola de Frankfurt nos permite perceber que a propaganda e seus artifícios não são apanágio de regimes totalitários. Sendo assim, num país que se crê democrático como o Brasil do século XXI, a mesma manipulação é empreendida tanto por políticos em campanha eleitoral, quanto por marcas de cosméticos numa campanha publicitária. O produto a ser vendido muda de um caso para outro, mas permanecem os enunciados semióticos que apelam para os mesmos sentidos. Com o fracasso das grandes narrativas e das ideologias globalizantes, especialmente após a queda do Muro de

Berlim e a ascensão do Consenso de Washington, o apelo ao consumo substituiu o apelo à mobilização coletiva. Com a entrada da internet em cena, na era da web 2.0, a propaganda não diminuiu, apenas diluiu-se em meio à dispersão dos centros de produção de informação, que se tornam mais porosos e capilarizados (ROJO; BARBOSA, 2015).

Neste momento, é importante considerar as teorizações dos proponentes dos Estudos Culturais que

têm fortemente argumentado que o papel da cultura na mídia, incluindo o poder dos meios de comunicação de massa, com seus massivos aparatos de representação e sua mediação do conhecimento, é central para compreender como a dinâmica do poder, do privilégio e do desejo social estrutura a vida cotidiana de uma sociedade; […] enfatizam o estudo da linguagem e do poder, particularmente em termos de como a linguagem é usada para moldar identidades sociais e assegurar formas específicas de autoridade (GIROUX, 1995, p. 90;95;96, apud MACEDO, 2010, p. 61).

Essas reflexões devem ser o suficiente para justificar a pertinência da mídia-educação na contemporaneidade. No que concerne especificamente à mídia-educação através do cinema bastaria levar em consideração o fato de que “o audiovisual é a linguagem do principal meio de comunicação social contemporâneo” (MACEDO, 2010, p. 35). Sendo uma característica central da nossa sociedade contemporânea a sua “'mediatização' e a constituição dos espaços mediáticos [sic] (essencialmente audiovisualizados) como campo privilegiado do embate simultaneamente econômico, político e ideológico” (MACEDO, 2010, p. 40). O cinema foi a primeira forma histórica que assumiu o audiovisual. Se hoje temos variadas outras expressões do audiovisual – o seriado de televisão, os videogames, a teledramaturgia, os videoclipes musicais, o vlog, os memes nas redes sociais, etc –, é relevante perceber que o cinema serviu por muito tempo como referência para muitos desses outros gêneros discursivos.

A multimodalidade que se manifesta no cinema na forma particular do audiovisual nos convida à discussão acerca das oportunas teorizações empreendidas por Roxane Rojo em torno da pedagogia dos multiletramentos. Vejamos as contribuições que suas ideias trazem para o nosso tema de pesquisa.