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Intérprete de Libras e alunos surdos: formação e atuação no espaço escolar

1. Educação dos Surdos

Inicio este estudo com a apresentação do contexto histórico de organização da Comunidade Surda Brasileira, enfocando sua língua e educação, além de relatar como se deu a conquista e o desenvolvimento do serviço pro issional do intérprete da Língua Brasileira de Sinais, em nosso país, e a interpretação em língua de sinais. Como tais assuntos são, ainda, de conhecimento restrito dos pro issionais que atuam na área, seus registros se tornam imprescindíveis, pois fornecem informações relevantes para a contextualização do tema deste trabalho.

Convém ressaltar que, ao fazer referência ao desenvolvimento das potencialidades da pessoa surda, tomo por base o sentido conforme está colocado por Skliar (1998):

potencialidade como direito à aquisição e desenvolvimento da língua de sinais como primeira língua; potencialidade de identi icação das crianças surdas com seus pares e com os adultos surdos; potencialidade do desenvolvimento de estruturas e funções cognitivas visuais; potencialidade para uma vida comunitária e de desenvolvimento de processos culturais especí icos; e, por último, a potencialidade de participação dos surdos no debate linguístico, educacional, escolar, de cidadania, etc. (Skliar, 1998, p.26).

Em vista disso, observar, analisar e compreender a atuação do intérprete de Libras na sala de aula, como uma das práticas da Política de Educação Inclusiva vigente em nosso país, é uma tarefa que realizo com o objetivo de contribuir, criticamente, para o avanço da educação de surdos. Nesse sentido, acredito que esta venha a cumprir as diretrizes e metas estabelecidas pela educação geral, em relação ao aspecto transformador que deve proporcionar à sociedade.

A Proposta de Inclusão Escolar das Minorias Sociais, com base na “Declaração de Salamanca”2 e encaminhada pelo Ministério

da Educação – MEC – em nosso país, por intermédio das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, orienta a inserção das crianças surdas em salas de aula do sistema regular de ensino, podendo este ensino ser público ou privado, com a colocação de um intérprete de LIBRAS, como forma de atender às necessidades de acesso aos conhecimentos acadêmicos por parte desses alunos. A presença de um intérprete de língua de sinais na sala de aula é um tema polêmico, não havendo consenso sobre sua adequação entre os especialistas na área da educação de surdos.

Questiona-se, ao optar exclusivamente pela atuação do intérprete de Libras nesse espaço, se a escola estaria garantindo um atendimento diferenciado e e iciente ao aluno surdo. As razões que se colocam estão relacionadas a questões de ordem linguística, cultural, pedagógica, entre outras, visto tratar-se de uma minoria linguística

2 A Declaração de Salamanca foi resultado das várias declarações das Nações Unidas

que culminaram no documento intitulado “Regras Padrões sobre Equalização de Oportunidades para Pessoas com De iciências”, o qual demanda que os Estados assegurem que a educação de pessoas com de iciências seja parte integrante do sistema educacional.

Língua Brasileira de Sinais – Libras: a formação continuada de professores: discussões teóricas... 59 que, como diz Felipe (1992), necessita de práticas educacionais adequadas às suas diferenças enquanto pessoas surdas.

Há ainda, uma série de outras questões pertinentes: a contratação de intérpretes sem “[u]m real domínio da Língua de Sinais”, como aponta Fernandes (2003, p.83); a indagação de Felipe sobre quem seria “esse super-pro issional, super-intérprete multidisciplinar” (Fernandes, 2003, p.92), parecendo se referir a uma visão idealizada do intérprete para atuar na educação; além da desigualdade, que marca a relação de poder entre intérprete e alunos surdos, apontada por Teske (2003), quando justi ica:

Que a lógica contemporânea é mercantil, logo a função do intérprete nesse processo é apenas de reprodução externa e super icial dos fenômenos, sem necessidade de um comprometimento maior (Teske 2003, p.101).

Estes são questionamentos importantes que levantam polêmicas, como as que surgiram recentemente no Seminário intitulado: “Surdez e Escolaridade: Desa ios e Re lexões”, realizado pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos em setembro de 2003, no Rio de Janeiro. Lacerda (2002) re letindo sobre sua pesquisa, registra em um artigo que [a] presença do intérprete em sala de aula e o uso da língua de sinais não garantem que as condições especí icas de surdez sejam contempladas e respeitadas nas atividades pedagógicas (Lacerda, 2002, p.128).

A proposta de educação inclusiva veio a ser rati icada pelo Ministério da Educação em 2001, através do Programa Nacional de

Apoio à Educação de Surdos PNAES/MEC/FENEIS.3 Entre outras ações,

tal Programa promoveu cursos de capacitação para intérpretes de Libras, com o objetivo de possibilitar a inserção de alunos surdos na rede regular de ensino, preferencialmente, em escolas de alunos ouvintes.

Ao analisar os itens 9 e 21 da Declaração de Salamanca, é possível depreender que a referida inserção pode se dar, também, em escolas públicas só para surdos, em respeito às suas especi icidades linguísticas. Conforme registrado no item 21 do documento: “Face às necessidades especí icas de comunicação de surdos e de surdos-cegos,

3 Planes Nacionales de Acción para el Empleo/ Ministério da Educação e Cultura /

seria mais conveniente que a educação lhes fosse ministrada em escolas especiais ou em classes ou unidades especiais nas escolas comuns” (DS, 1994, p.30). Estou chamando atenção, neste ponto, para o fato de que o documento deixa clara a necessidade de um atendimento educacional que possibilite aos alunos surdos, como minoria linguística, a interação entre si, em um mesmo espaço de atendimento escolar.

Entretanto, para que isto se viabilize, é preciso levar em consideração não só o número de alunos surdos reunidos, mas também as suas diferentes faixas etárias, para que haja uma interação produtiva e e icaz do ponto de vista linguístico. E, consequentemente, isso é importante para que se promova a aquisição da língua de sinais e a construção da identidade surda. Lacerda (2002) identi icou essa questão em sua pesquisa, e assim se referiu ao assunto chamando a atenção para sua importância em relação à construção dos conhecimentos acadêmicos:

O fato de a criança surda não ter outros parceiros com domínio em língua de sinais nos parece um aspecto negativo. Um grupo de surdos poderia favorecer mais discussões em sinais e trocas de ideias sobre os conteúdos a partir da ótica da surdez (Lacerda, 2002, p.124).

Essa é uma visão defendida pelas próprias pessoas surdas em depoimentos que corroboram com o pensamento de Salamanca. Seguindo essa proposta, acredito que o atendimento escolar dos surdos poderia acontecer, também, em classes só com alunos surdos, quando estes forem em menor número em uma cidade e, essencialmente, em escolas de surdos, no caso dos grandes centros. São as próprias pessoas surdas que avaliam e constatam a necessidade de escolas de surdos, como podemos veri icar em artigos publicados em revistas e livros da área. Destaco um primeiro depoimento feito por um pedagogo surdo, quando disse: “Hoje vejo a importância da presença do professor surdo na escola de surdos. Isso porque os surdos olham para mim e identi icam valores e traços comuns que nós temos” (Reichert, 1999, p.31).

O segundo depoimento foi cedido por outro estudante surdo, também do curso de pedagogia: “A maioria dos Surdos, ao longo de sua vida, não recebe a herança da língua pelos seus pais ouvintes.

Língua Brasileira de Sinais – Libras: a formação continuada de professores: discussões teóricas... 61 Entretanto, isto poderá acontecer quando forem para a escola de Surdos começarem a interagir com Língua de Sinais com seus colegas, também surdos” (Barros, 2000, p.14-15).

No entanto, a realidade acadêmica dos alunos surdos, com a proposta que se denomina “inclusão escolar”, pode estar longe do desejo das pessoas surdas, que vêm re letindo sobre a realidade de sua educação desde a última década do século passado. O MEC optou por inserir os alunos surdos em turmas de ouvintes, colocando a presença de intérpretes de Libras em salas de aula, como solução para o impasse em relação ao uso de diferentes línguas pelos participantes nesse contexto: Língua Portuguesa – modalidade oral e escrita – utilizada pelo professor, alunos e intérprete ouvintes, e Língua Brasileira de Sinais – modalidade gestual-visual, utilizada pelos alunos surdos e intérprete.

É possível que, ao implantar tal política de inclusão escolar, o MEC venha a interferir na aquisição e no uso natural da Libras como primeira língua pelas crianças surdas inseridas em escolas de ouvintes, pois elas estão sendo inseridas desde a época da educação infantil até o ensino fundamental e médio.

Também pude avaliar que a opção pela inclusão escolar de crianças surdas, desde sua primeira infância, em turmas de alunos ouvintes poderia vir a comprometer a aquisição da Libras por estes alunos. Consequentemente haveria um comprometimento também do desempenho do intérprete de Libras no cenário educacional, frente às di iculdades, dentre outras, a de optar por uma determinada variante da língua de sinais para o seu uso. O intérprete poderá estar diante de alunos surdos com diferentes níveis de pro iciência em Libras, ou ainda sem nenhum conhecimento dela. Com base nessas evidências, a proposta de inclusão educacional parece excluir as crianças surdas da relação com seus pares, pois elas estarão matriculadas nas diversas escolas públicas, chegando mesmo a ser, com frequência, apenas um aluno surdo, em uma determinada série.

Diante do exposto, para tratar o tema da interpretação de Libras em sala de aula, é preciso esclarecer que crianças surdas podem estar incluídas em escolas da rede regular de ensino, isto é, em escolas de ouvintes; e, simplesmente, desconhecerem ou não serem luentes em Libras, comunicando-se através de um sistema familiar de sinalização e/ou de tentativas de comunicação em língua portuguesa oral. Esses,

entre outros, são fatores a se considerar para a discussão do papel do intérprete de Libras em sala de aula.

Em trabalho, intitulado “Surdez: Processos Educativos e Subjetividade”, Lacerda analisa o papel do intérprete nas relações em sala de aula em que este aluno foi incluído em uma turma de alunos ouvintes. Em sua pesquisa, o tema do papel do intérprete é tratado em uma perspectiva pedagógica, educacional, conforme suas próprias palavras:

Este estudo propõe-se a analisar de forma mais pormenorizada a experiência de uma sala de aula regular na qual foi inserida uma criança surda e uma intérprete de Língua de Sinais, como possibilidade de criar uma condição educacional bilíngue para essa criança (Lacerda, 2000, p.58).

A autora toma por base os estudos sobre língua de sinais que revelam ser esta uma língua acessível aos surdos, permitindo que estes obtenham, através dela, um desenvolvimento integral e se constituam enquanto sujeitos. Discute a inserção do intérprete no ambiente da escola regular, mostrando que no contexto analisado, em que tal prática foi adotada, as circunstâncias eram tais que nem os intérpretes e nem a instituição demonstraram ter clareza sobre suas expectativas em relação ao papel do intérprete de Libras em sala de aula.

É de se imaginar que o desconhecimento das habilidades necessárias para um desempenho adequado do intérprete, no ensino, possa afetar negativamente a qualidade do processo de ensino e aprendizagem, pois a sala de aula é uma rede complexa de atos comunicativos produzidos pelo professor e alunos, ao lidarem com objetos do conhecimento, institucionalmente de inidos. Portanto, há que se buscar compreender como o intérprete procede para interpretar uma língua de modalidade gesto-visual para outra língua de modalidade oral-auditiva, em um espaço em que as características são complexas e próprias.

Somando-se ao desconhecimento das habilidades necessárias para o desempenho adequado da função do intérprete de Libras, está a questão da sua formação pro issional, ainda inexistente no Brasil, fator este que pode ser mais um aspecto complicador para sua atuação,

Língua Brasileira de Sinais – Libras: a formação continuada de professores: discussões teóricas... 63 principalmente em se tratando do espaço educacional. A interpretação em língua de sinais no Brasil é uma atividade recente, com menos de duas décadas de desenvolvimento.