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Efeito de Sentido de Cerceamento (ESC): “A transgeneridade não é libertadora

7. SÉTIMO SEGREDO: AS VOZES DAS LUAS

7.1. FORMAÇÃO DISCURSIVA DE INFERNO SOCIAL (FDIS)

7.1.2. Efeito de Sentido de Cerceamento (ESC): “A transgeneridade não é libertadora

Vinculado ao Efeito de Sentido de Expurgo, o Efeito de Sentido de Cerceamento revela uma face da experiência LGBT+ que se vincula a sentidos de repressão, de perda, de reclusão. As Luas enunciaram este sentido de forma mais evidente quando, durante as entrevistas, conversamos sobre a infância e as expectativas acerca do futuro. Lua Minguante, entretanto, enunciou este sentido nas experiências do presente. Cercear, de acordo com o Caldas Aulete, significa

Quadro 15 - Sintagma cercear: sentidos dicionarizados Cercear – verbo

1 Impor limites a; impedir que algo se dê ou se processe completamente, dificultar o desenvolvimento, a difusão, a circulação de (algo); limitar; restingir.

2 Tornar menor, suprimir ou anular (quase) inteiramente.

3 Cortar cerce, rente, pela base, pela raiz.

4 Fig. Acabar com, desfazer, extinguir, anular.

Fonte: material produzido pelo pesquisador

Os sujeitos entrevistados apontaram essa “imposição de limites” que “impede o crescimento de algo”, uma “supressão”. Lua Cheia, ao falar sobre experiências de vida, aponta que viveu uma infância muito criativa, muito cheia de imaginação, mas que “[...] as coisas da vida fizeram eu... parar com aquilo sabe... tipo... meio que deixar aquilo em stand by [...]” [grifos meus]. As “coisas da vida”, enunciadas por Lua Cheia, encontram ressonância no enunciado de Lua Crescente, que também fala desse cercear, da experiência do abafamento:

Lua Crescente

“[...] eu tinha um traço muito forte, que eu não tenho mais, de quando eu era criança, de quando eu era adolescente, que eu era extremamente sensível [...] eu sentia mais... o mundo... as coisas e... inspirações... e eu gostava de escrever histórias e tudo mais. E... depois do processo de me assumir... eu acho que eu meio que... fechei essa sensibilidade um pouco. [...]” [grifos meus]

Lua Cheia, em outro momento da entrevista, fala também: “[...] o preconceito, a

homofobia, essas coisas, eu sempre vivenciei desde cedo. Por isso, inclusive, que meu primeiro, meu primeiro pensamento do que é ser gay, era ser um erro [...]”. É como se estivessem dizendo que “as coisas da vida” (nesse caso, é cabível compreender como um outro nome para a LGBT+fobia), “impõem limites, impedem, dificultam o desenvolvimento, limitam” estes corpos. Abrindo breve parênteses no tocante ao deslizamento de “coisas da vida” para “LGBTfobia”, lembro da insistência de certas palavras que, ditas demais, reiteram essa aproximação como possível. Em diferentes momentos de nossa conversa, as quatro Luas, ao falarem sobre as “coisas” de suas vidas, o fizeram por meio de palavras como “desconforto”, “fantasmas”, “asco”, “rejeição”, “violento”, “batalhas familiares”, revelando não apenas um sujeito que se forma por meio do outro, mas também os caminhos sinuosos de suas vidas quando espreitadas pelo olhar desse outro. Insistências no dizer, como as mencionadas, são uma marca forte da harmonia com os dizeres, e saberes, da FD Inferno Social, mobilizando pelo interdiscurso os pré-construídos e a memória que permitem esses dizeres em detrimento de outros, e que fazem esses dizeres carregados de sentido de cerceamento, exatamente por já estarem inscritos e já constituírem sentido em outro lugar, em outro momento.

O Efeito de Sentido de Cerceamento coloca o próprio sujeito como agente final da restrição: “[...] eu acho que eu meio que... fechei essa sensibilidade um pouco”, “[...] as coisas da vida fizeram eu... parar com aquilo [...]” ou, como aponta Lua Nova, “[...] eu mantive isso por muitos anos oculto [...] eu demorei muito pra... pra que isso fluísse. Porque eu me, eu me podei”. O “eu” se responsabiliza por cortar-se, por tolher-se, por cercear-se, criando um efeito

outro de evidência de que o “eu” é o único responsável pelo próprio bem-estar, como se não houvesse condições de produção específicas que agissem sobre este ou aquele sujeito, formações imaginárias, situações imediatas, memórias do dizer que não colocassem em movimento sujeitos e sentidos naquele ponto tenso em que língua, história e ideologia se encontram.

É possível pensar reescritas para os enunciados de Lua Cheia, Lua Crescente e Lua

Nova, retirando do “eu” a responsabilidade da supressão:

Lua Cheia [...] as coisas da vida fizeram com que... aquilo parasse um pouco [...]

Lua Crescente [...] eu acho que meio que... essa sensibilidade se fechou um pouco [...]

Lua Nova [...] isso ficou, por muitos anos, oculto [...] demorou muito pra... pra que isso fluísse. Porque foi muito podado. [...]

Escrito desta forma, caberia a pergunta: quem ou o que gerou essa supressão? Esse cerceamento? Que força externa gerou esta imposição de limites, de desenvolvimento? As condições de produção ficam mais expostas mediante tais alterações. Pensadas a partir do “eu” como sujeito soberano e consciente de tudo o que faz, desde uma ilusão subjetiva que torna o sujeito evidente, borram-se os efeitos das condições de produção e individualiza-se um processo que, em verdade, é muito afetado pelo social. Resume-se, dessa forma, a questão do assumir- se, ou não, como sujeito LGBT+ a um domínio do pessoal, que pouco dialoga com o exterior, que pouco tem de político. O efeito de sentido de cerceamento, pensado desde a perspectiva do “eu” – “eu escolhi”, “eu decidi”, “eu podei”, gera uma ilusão de empoderamento para o sujeito, que passa a ser o único condutor da própria história. É como se as Luas dissessem: “Ninguém infere sobre meus caminhos, apenas eu mesmo”. É possível compreender este movimento como uma ilusão protetiva. A responsabilidade sobre o “eu” ameniza o embate do coletivo, pois internaliza algo que está presente no todo, no em redor, gerando uma ilusão de controle, de domínio: “No momento certo, eu vou fazer”. Esta ilusão de domínio foi manifesta por Lua Nova ao falar da namorada: “[...] lá pelas tantas vamos sair de mãos dadas na rua e deu. Vamos casar, ué. Como não vou sair com a minha esposa, vou beijar minha esposa, né?

Simples assim. [...]” [grifos meus].

social. Decidir “beijar a esposa”, “sair de mãos dadas”, entra em conflito com os medos enunciados por Lua Nova – “[...] eu tenho muito receio das pessoas que eu amo sofrerem. Entendeu... Do mundo... ser injusto com elas. É isso... É... Só isso. [...]”. O “simples assim” não é tão simples, pois tange uma série de escolhas que não cabem apenas ao “eu’. Decidir sair de mãos dadas com a futura esposa gera uma série de reações que remontam ao “inferno social”. O “eu” não consegue impedir que aconteçam, apesar de iludir-se de que pode ser responsável por contingenciar este sofrer. Este conflito entre o “eu-controlador” e as condições de produção também foi enunciado por Lua Crescente ao falar de experiências escolares.

Lua Crescente

“[...] na escola eu sabia que eu precisava ficar... pra trás e não fazer essa performance ou não manifestar qualquer uma dessas coisas, porque eu tinha medo de chacota ou de comentário... ao mesmo tempo eu queria fazer essa coisas tanto porque... é como eu me constituo identitariamente, mas também porque eu queria chamar atenção pra essas coisas, porque... eu queria que as pessoas vissem isso em mim, mas também não queria que elas vissem essas

coisas em mim...” [grifos meus]

O desejo de negar o cerceamento, a limitação, conflita-se com as condições de produção, afetadas pela ação das formações imaginárias: O que aconteceria se eu fizesse isso? Quem sou eu para agir desta forma? Quem são eles para que comentem minhas ações? As consequências seriam boas ou ruins? Estas questões são afetadas pelo trabalho da ideologia, que coloca em evidência a noção de que o “eu” é grande responsável pelos resultados. A questão do assédio contra mulheres parece orbitar em funcionamentos parecidos: “Você se vestiu com esta roupa”, “Você pediu”, “Você chamou a atenção”, “Você não se deu o respeito”. O “eu” é responsabilizado inteiramente pelo não exercício de um “já esperado cerceamento”, como esperado também dos e das LGBT+. O sujeito passa, então, a ser visto como o responsável por todo o sofrimento que enfrenta.

A ideologia trabalha colocando a responsabilidade individual em evidência e, por consequência, invisibiliza as condições de produção, a responsabilidade deste grupo social no qual dominam sentidos de machismo, de LGBT+fobia, de discriminação. Ao sujeito cabe cercar-se, limitar-se, restringir-se para que o “inferno social” não o pegue, não o capture. A vítima é significada aqui como algoz de si mesma, sujeito que, por invigilância, descuido, desrespeito ao social, sofreu o rebote da própria inconsequência. Sob certo aspecto, a análise, como tecida aqui, possibilita descrever, mesmo que minimamente, o movimento dos sujeitos LGBT+ por um processo de identificação que constitui as suas identidades e, ao mesmo tempo,

aponta para a dominância de certos sentidos na circulação e legitimação social do discurso a partir de um regime do político compreendido, desde Orlandi (1996), como o fato de que o sentido é sempre dividido, tendo uma direção que se especifica na história, pelo mecanismo ideológico de sua constituição.

Quando falo em identidade, busco elementos em Zoppi-Fontana (2003, p. 262) que a explica como um feixe provisório de processos de identificação que se definem em relação a posições de sujeito determinadas no interdiscurso pelo movimento sem fim das formações discursivas na história: “[...] consideramos que a identidade se constitui através de processos de identificação do indivíduo com posições de sujeito presentes no interdiscurso, processos que são de natureza ideológica e se dão pela inscrição do indivíduo na língua afetada pela história”. Sobre tal ponto, Orlandi (1996; 2012) complementa, esclarecendo que a identidade trata-se de um movimento do sujeito do discurso na história, movimento do qual, como analista, posso traçar os trajetos na materialidade do corpus. Especificamente no tocante às quatro Luas, é possível especular que do “eu” dito demais escoem sentidos, ao mesmo tempo, de

empoderamento (pela ilusão subjetiva de um ego uno, estável e autoevidente) e de enfraquecimento (pela assunção individual da culpa/responsabilidade pela sua própria

destinação social).

Considerando que sentidos e sujeito se constituem simultaneamente como efeitos do interdiscurso, a identificação de tais sentidos permite especular que as identidades LGBT+ se fazem na contradição entre espaços de identificação socialmente estruturados e legitimados. Tais espaços delegam aos sujeitos LGBT+ o pesado ônus por aquilo que é considerado desviante e errado – o ônus de ter que assumir a responsabilidade por si mesmo e pelas “coisas da vida” decorrentes de seu desvio desde uma vez que ele/ela escolheu, podou, decidiu. Como também o surgimento de novas articulações entre posições de sujeito que, mesmo sob o abrigo de uma ilusão, ao falar “eu” deixam escapar um desejo de protagonismo, um desejo de tomada de sua história com as próprias mãos, não pelo caminho da culpa e do cerceamento, mas por qualquer outro itinerário possível. Talvez o caminho do “beijar a esposa”, o do “sair de mãos dadas” sem temer o olhar do outro/Outro não porque o outro se deslocou de sua posição-sujeito juiz ou posição-sujeito carrasco, mas porque, lembrando o poema de Jin Meiling, as quatro

Luas tenham, com seu contraolhar, transformado o sistema de evidências e significações,

fornecido pelo discurso LGBT+fóbico, em caos como ele tentou estabilizar as “coisas da vida” delas em desterro.

Retornando ao corpus, Lua Minguante enuncia os efeitos cumulativos do cerceamento, da automutilação:

Lua Minguante

“[...] vivi um momento assim... é... da minha vida que parece que a minha

existência foi tão esvaziada, sabe, foi tão questionada, que... parecia que eu não tinha nem possibilidade mais de existir nesse mundo, sabe, que eu não cabia aqui [...]”. [grifos meus]

A vivência como pessoa cisgênero gerou um cerceamento tão constante e tão profundo que a própria “existência foi esvaziada”, a vida pareceu ser impossível. Ocupar o lugar da transgeneridade, apesar das dificuldades e do inferno social, tem relação direta com a experiência da liberdade.

Lua Minguante

“[...] primeiramente, eu vivencio essa identidade e essa expressão por uma

questão de liberdade eu me sinto muito livre... ah... me identificando dessa

maneira e me expressando assim [...]”. [grifos meus]

Na busca de ressignificar a vida, de “preenche-la” novamente, fez-se indispensável uma contramedida ao cerceamento: a transgeneridade. A assunção de formas outras de produzir sentidos acerca do corpo, do ser e estar em sociedade, que vem acompanhada de efeitos de sentido de ruptura os quais permitem suspeitar da movência de uma posição de sujeito subalterno do inferno social para uma posição de sujeito que se quer livre, que se pensa possível numa condição de liberdade. Nos ditos de Lua Minguante, a transgeneridade a “[...] libertou de alguns armários [...]”. No entanto, o Efeito de Sentido de Cerceamento manteve sua dominância: Lua Minguante olha para o passado e aponta que “[...] antes, quando eu era uma pessoa cis e me identificava com bicha, eu também sempre incomodei dentro desse espaço [...] porque... tinha um limite até onde eu podia chegar [...]”. Ao fazê-lo, novamente a ilusão do eu origem do sentido de manifesta. Mas seria esse “eu” que incomodava ou os saberes de determinada noção acerca do ser “bicha” é que apontavam este “eu” como incômodo? O verbo seria “incomodei” ou “incomodou”? Antes de qualquer tentativa de respostas a tais questões, preciso atá-las aos lugares teóricos para os quais a Análise de Discurso me joga.

Desde concepções de Orlandi (2006, p. 21), a “[...] memória discursiva é trabalhada pela noção de interdiscurso: ‘algo fala antes, em outro lugar e independentemente’”. Dessa forma, o que dá sustentação para o discurso é a relação com sentidos outros produzidos em outros processos discursivos, isto é, quando enunciamos nos filiamos a “[...] todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2001, p. 33).

Se algo faz sentido é porque foi acionada toda uma memória discursiva, uma vez que, ao formular seu enunciado, o sujeito discursivo o faz acionando toda uma filiação a sentidos “já ditos”. Essa filiação a sentidos se relaciona com a posição ocupada pelo sujeito que diz, pois o processo de formulação de sentido ocorre também por um processo de identificação do sujeito com sentidos a respeito daquilo de que se fala.

A esse processo Pêcheux (2014, p. 147) definiu como formação discursiva: “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”. Nesse sentido, é o interdiscurso que dá ao sujeito a autonomia para dizer o que pode/deve ser dito a partir da posição que ele ocupa, fornecendo ao sujeito um sistema de evidências e significações.

Em se tratado dos depoimentos de Lua Minguante, o que fala antes? O que fala em outro lugar? O que fala independentemente? Ao enunciar, Lua Minguante se filia a que “conjunto de formulações feitas e já esquecidas” que determinam o que ela diz? Que filiação a sentidos “já ditos” foi acionada por ela? Lua Minguante declara que:

Lua Minguante

“[...] vivi num momento assim... é... da minha vida que parece que a minha

existência foi tão esvaziada sabe, foi tão questionada, que... parecia que eu não tinha nem possibilidade mais de existir nesse mundo, sabe, que eu não cabia aqui [...]” [grifos meus]

“[...] primeiramente, eu vivencio essa identidade e essa expressão por uma

questão de liberdade eu me sinto muito livre... ah... me identificando dessa

maneira e me expressando assim [...]” [grifos meus]

“[...] antes, quando eu era uma pessoa cis e me identificava como bicha, eu também sempre incomodei dentro desse espaço [...] porque... tinha um limite até onde eu podia chegar [...]” [grifos meus]

Ainda que “eu” insista em existir (e reverberar) nos dizeres de Lua Minguante, ele não parece apontar para um mesmo lugar de enunciação ou, como diz Zoppi-Fontana (2017), para uma mesma instância de circulação e legitimação do dizer. Se, por um lado, como afirmado antes, este sintagma pode remeter à ilusão do sujeito de ser origem do sentido e dono do dizer, a uma “[...] potência performativa como autossuficiente e fundadora de uma identificação sem falha” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 70), ecoando efeitos de sentido de empoderamento de

um sujeito que se sente livre porque se assumiu que se constituem no mesmo batimento que

uma posição-sujeito desejante de reconhecimento (PSDR); por outro lado, o mesmo sintagma, na medida que é tocado por outros – “esvaziada”, “questionada”, “limite”, permite delimitar uma posição sujeito que, mesmo enunciada em um “eu”, se percebe dita e olhada

como não legítima, como estranha, talvez como incômoda – uma posição-sujeito de interdição

do eu (PSIE). A identidade, na sua provisoriedade constitutiva, surge atravessada pela

contradição em função mesmo dos efeitos do interdiscurso nas sequências discursivas. Na AD, o discurso é atravessado por outros discursos, como nos dizeres de Lua Minguante (e, também, de Lua Nova, Lua Crescente, Lua Cheia) em que os discursos LGBT+fóbicos, machistas e segregadores estão presentes mediados pela sociedade capitalista em uma formação social e em um tempo histórico que, pela retomada de certo já-lá, tende a agudizar ainda mais a rejeição ao diferente. A AD suscita o efeito de sentido provocado pela condição social e histórica do mesmo, ou seja, o discurso está inscrito na materialidade histórica da língua, não sendo possível prescindir da memória neste jogo.

É interessante observar que certos “malabarismos” de um “eu” que permite reconhecer duas posições de sujeito em conflito também provocam a evidenciação de espaços de memória de uma sequência no modo como propõe Pêcheux, no texto Lecture at mémoire: projet de recherche. Em tal trabalho, o autor enfatiza que a condição de enunciação de uma sequência da língua reside na existência de um corpo sócio-histórico de traços discursivos constituindo o espaço de memória da sequência. Seu foco refere, especificamente, modos a partir dos quais seja possível mostrar como os traços de memória, enquanto materialidade discursiva, exterior e anterior à existência de uma sequência dada, intervêm para constituí-la. Tais traços não devem, contudo, ser confundidos com elementos autônomos, soltos, disponíveis fora da sequência, pois é em relação à própria linguagem que se estabelecem as condições de constituição desses espaços de memória.

De forma direta ou indireta, à constituição de tais espaços se articula uma unidade de sujeito somente possível em decorrência de um esquecimento do discurso outro que habita constitutivamente sujeito e sentidos. Portanto, unidade que se faz pelas ilusões ou esquecimentos já discutidos por Pêcheux em Semântica e Discurso. Como dito antes, nos enunciados supracitados, além do funcionamento de “eu”, despertam a atenção os elementos a ele agregados – “livre”, “esvaziada”, “questionada”, “limite”. Tais palavras parecem exercer o papel de fixar lugares de memória a partir dos quais a vida LGBT+ ganha sentido. Pêcheux, em

O Papel da Memória, ao tecer considerações sobre tal processo, lembra que a análise precisa

remeter ao ponto em que a necessidade do dizer se encontra com o espaço de memória convocado por esse dizer, se constituindo, aí, um acontecimento enunciativo. Que acontecimento é possível vislumbrar aqui? Que lugares de memória tais itens lexicais fixam?

Parece-me que “livre” está associado a uma tomada de posição que coloca esse sujeito em um estado de liberdade pelo tanto que a transgeneridade, como algo que marca seu corpo,

repercute enquanto possibilidade de outro modo de enunciação de si que, por conta da memória, retoma dizeres de luta por reconhecimento que tem acompanhado a história das relações de gênero e sexualidade desde décadas atrás em nosso país e, também, em outros lugares do mundo, dizeres que ecoam de Stonewall e de muitos outros movimentos. E “esvaziada”, “questionada” e “limite” podem ser articuladas a uma posição que estabelece relação tensa com a anterior na medida em que, ao se impor ao sujeito, o faz pelo cerceamento do mesmo e aponta para a retomada de um discurso que, muito presente tanto no passado como nos tempos atuais, tende a demonizar o corpo diferente, fazendo com que ele corresponda a uma ideia de desordem pela qual, de uma maneira ou de outra, ele precisa ser responsabilizado – o que, de certa forma, escapa por alguns “eus” de Lua Minguante. Ela se sente questionada. Mas questionada em função do quê? Por quem? Por quê? Talvez questionada em função de seu desvio, da desordem que provocou em seu corpo, da desordem que pode provocar (ou já provoca) nos ditos bons