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Efeito de Sentido de Expurgo: “[ ] esse mundo não tá pronto [ ]”

7. SÉTIMO SEGREDO: AS VOZES DAS LUAS

7.1. FORMAÇÃO DISCURSIVA DE INFERNO SOCIAL (FDIS)

7.1.1. Efeito de Sentido de Expurgo: “[ ] esse mundo não tá pronto [ ]”

“Expurgo”, de acordo com Caldas Aulete, refere-se à expurgação que, por sua vez, é: “(1) a ação ou resultado de expurgar-se; (2) limpeza, purificação; (3) eliminação do que é nocivo ou prejudicial (expurgação dos vícios); (4) expulsão de um grupo de pessoas tidas por prejudicais (expurgação de alguns membros do clube)”. O inferno social “queima” os sujeitos “impuros” para que sejam expurgados do convívio social. Essas queimaduras deformam o corpo simbólico dos sujeitos, deixando-os marcados de forma indelével. Remontam às punições históricas contra os criminosos – marcá-los com ferro quente a fim de que todos saibam de sua condição de desvio.

Aqueles e aquelas que vivem no inferno social são jogados para um plano outro de existência, que se justapõe a planos diversos que coexistem em um mesmo espaço: a sociedade. Como em um baile de máscaras, os sujeitos sociais são interceptados uns pelos outros, que adequam seu dizer em razão dos seus interlocutores. Diante de diferentes sujeitos, diferentes “máscaras” – as formações imaginárias entram em funcionamento: quem sou eu para me dirigir desta forma a esta pessoa? Quem é esta pessoa para que eu lhe fale deste jeito? Em que lugar

vivemos para que eu possa lhe falar desta ou daquela maneira? Quais são as “regras” desse lugar para que eu possa assim falar?

Pêcheux (2010) definiu discurso como “efeitos de sentidos entre os pontos A e B”, sentidos estes que não estão previamente dados, constituídos, mas que se constituem em relação à língua em sua inscrição na história, bem como em sua relação com o sujeito. Este, por sua vez, é entendido enquanto uma posição discursiva, ou seja, o sujeito quando fala, fala de um lugar sócio-histórico, que o determina: o sujeito projeta no discurso a imagem que ele faz da posição que ele ocupa ao dizer.

Esse lugar teórico rompe com a ideia de que os sentidos estão nas palavras ou nos enunciados uma vez que eles se constituem em relação às condições de produção que possibilitam o discurso, em relação às posições ideológicas demarcadas no dizer, como afirma Pêcheux (2014). Em texto no qual enlaça a discussão a respeito da problemática das identificações de gênero à da contradição constitutiva dos processos de produção de sentido e do sujeito, especificamente quanto às formações imaginárias, elementos estruturais das condições de produção do discurso, Monica Zoppi-Fontana (2017, p. 65) lembra que:

No jogo especular das formações imaginárias, das projeções antecipadas que demandam diversos modos de estar no mundo, ser reconhecido e se reconhecer em relação ao funcionamento social e histórico das masculinidades e feminilidades, em toda sua dimensão contraditória e equívoca, faz parte do processo de constituição do sujeito do discurso.

Parece-me relevante fazer tais considerações e, também, destacar as relações em função do modo como identificações de gênero e sexualidade trabalham os processos imaginários, pois o mesmo sujeito que ocupa o lugar discursivo de pai, filho, marido, esposa, policial, vendedor, professor, professora, religioso, etc., ao se tratar de pessoas LGBT+, pode assumir a posição de juiz e, alternadamente, carrasco. Isso porque, diante de um corpo LGBT+, dos seus símbolos e sentidos, os sujeitos são interpelados ideologicamente pela norma a realizar o julgamento e aplicar a pena sobre aqueles e aquelas que desviam dos seus desígnios. Dito de outra forma: a máscara de “bom cidadão” dá espaço à “face do juiz” que logo dá espaço ao “capuz do carrasco”. O sujeito desliza de posição em posição, assumindo identificações diferentes para cada uma das posições ocupadas e age assim sobre a tessitura social, trabalhando, por vezes, no sentido da manutenção da tradição. Além disso, convém destacar que a figura da interpelação ideológica se faz sempre presente nesse processo de constituição discursiva do sujeito visto que é ela que nos permite compreender os processos de identificação que constituem o sujeito do discurso desde a sua inscrição no simbólico e na história, possibilitando, no caso desta pesquisa,

estender os gestos de interpretação até o ponto em que os estudos da linguagem se encontram com os estudos de sexualidade e gênero que, também neste estudo, é entendido do modo como propõe Zoppi-Fontana (2017, p. 64) – “[...] uma construção discursiva, efeito de um processo de interpelação complexo e contraditório”.

O “baile de máscaras”, referido anteriormente, é o que busca garantir o emparedamento dos sujeitos LGBT+s. Essencial, entretanto, destacar que este “inferno social” apresenta diferentes regiões. Tal qual a obra de Virgílio, a Divina Comédia, onde o inferno se divide em nove camadas, também o “inferno social” dos LGBT+s se subdivide. Alguns sujeitos estão mais próximos da “superfície”, mais nas bordas deste lugar social, o que pode permitir que, em determinados momentos, saiam do “inferno social” e se “camuflem” na norma. Em razão disso, sofrem a LGBT+fobia de maneira menos ostensiva: desde que seu “desvio” permaneça invisível. As condições de produção do discurso movimentam as posições-sujeito em regiões mais atacadas ou menos atacadas desse inferno social. Esta FD Inferno Social, na sua heterogeneidade, coloca em movimento diversas normatividades a fim de estabelecer seus parâmetros: ela usa do machismo, do racismo, do classismo, da branquitude e da cisgeneridade para definir os corpos que “haverão de queimar mais”. Quanto mais afastados destes parâmetros, maior a ação do expurgo social, mais marginalizados dentro da sociedade, maior a violência de que se tornam alvos. Dessa forma, os corpos trans são os mais atacados. Mais ainda os corpos trans e negros. As “camadas do inferno” que apresentam maior sofrimento são reservadas a essas pessoas: aquelas que mais tensionam a tradição, que o fazem por diversos lados, por diversos ângulos em função das posições de sujeito assumidas. Um homem gay tem a sua posição de sujeito organizada em razão do quão afeminado ele é. Quanto mais se afasta dos parâmetros da masculinidade, mais ele sofre discriminação.

A língua em seu funcionamento desvela saberes, que pertencem a determinados discursos, pelos quais os sujeitos se identificam e são interpelados. No que concerne a este ponto, Moreira e Gaelzer (2018, p. 99) esclarecem que, consoante Pêcheux em Semântica e

Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio,

[...] as palavras traduzem as relações do sujeito com aquilo que o representa, seja da ordem do político, do simbólico e/ou do ideológico. Isso significa que é na e a partir da materialidade da língua, que efeitos de sentido e sujeitos se constituem em uma fronteira tênue entre o linguístico, o histórico e o ideológico. Neste viés, a língua inscrita em uma ordem sócio-política significa e é concebida como prática social e em que a exterioridade lhe constitui e, ao mesmo tempo, escoam discursos e saberes que interpelam [os sujeitos] e com os quais eles se identificam, se reconhecem e discursivizam.

Observei, no conjunto de análises feitas, que os discursos produzidos nos depoimentos dos sujeitos LGBT+s interlocutores desta pesquisa apontam para efeitos de sentido que flutuam entre constrangimento diante do “inferno social” e desconforto em função dele. As expressões presentes em seus dizeres significam na exterioridade, nas e a partir das práticas sociais, apontando, sob certo aspecto, para discursos naturalizados sobre os sujeitos LGBT+ e, em igual medida, para um espaço em que ainda permanece a ausência de reconhecimento do corpo e da voz LGBT+ como legítimos.

No Efeito de Sentido de Expurgo, é o “fogo” que deixa pistas no dizer – são as formas de ataque empreendidas pela normatividade que se manifestam no intradiscurso. Dito de outra forma, os participantes enunciam as ferramentas da normatividade para sustentar a tradição, ferramentas essas que exercem um papel de duplo-aviso. Ao fazer “queimar os demônios”, os “pecadores”, punem os condenados e assustam os potenciais desviantes – é um recado indelével da necessidade de manter-se no caminho reto. Podemos observar o Efeito de Sentido de

Expurgo, da vivência desse inferno social, ressoando nos dizeres dos entrevistados

Lua Nova

“[...] eu ainda não me sinto totalmente livre pra abrir totalmente... porque teve momentos que eu brinquei, supostamente eu estaria brincando e as pessoas tiveram uma reação complicada e... eu tive que dizer “brincadeira”. Eu não penso em mim, porque eu sei me defender. Eu penso no que isso pode acarretar pra minha filha de onze anos... Porque esse mundo não tá pronto...” [grifos meus] “[...] quando a minha mãe ainda era viva, eu... brincava, eu falava “olha só que moça linda, não sei o quê”... E... eu fui casada, eu tive um casamento hetero, e o meu ex-marido sempre tinha uma reação de asco. De rejeição total a... a essa minha postura [...]” [grifos meus]

(ao falar da namorada)

“[...] A gente anda na rua, ela quer pegar na mão e eu dou meu braço pra ela pegar, por que é menos “suspeito”, andar de braços dado que são duas amigas, entende?” [grifos meus]

Lua Minguante

“[...] aconteceu situações assim que eu ia em alguns espaços que as pessoas ficavam falando o tempo todo “olha lá, ela chegou, a travesti chegou, a não-binária chegou!”. E isso é muito cansativo pra gente, é muito desgastante, é muito

violento, sabe. Então eu tava sempre nos espaços sendo lida como, só por esses atravessamentos de gênero e sexualidade e expressão de gênero, entendeu. Era

só isso que importava. As outras áreas da minha vida não importavam mais.” [grifos meus]

“[...] Eu aqui mesmo nessa universidade, várias vezes já fiz fala aqui, já falei sobre a minha vivência, quando eu acabei de falar a pessoa foi lá e... e... acabou praticando um misgender comigo, que é trocar meu gênero... sabe? É assim ó, eu

meu discurso, assim, então... Hoje eu só falo quando... sabe? Então o peso que a nossa palavra tem é muito menor.” [grifos meus]

Lua Cheia

“(...) eu acho que ser LGBT no Brasil é viver cercado de fantasmas [...] sempre que tu vai (sic) numa entrevista de emprego, tu te coloca numa situação de tipo... até eu que sou pessoa que é muito difícil alguém duvidar que eu sou gay (risos), me coloco “Mas será que falo da minha sexualidade ou não? O que isso vai acarretar? Será que eu perco o emprego por ser gay?” [...] Teu dia a dia é cercado de fantasmas e dessas dúvidas [...] vou me sentar no ônibus, sabe, senta uma pessoa do meu lado e... isso já gera um desconforto do tipo: eu posso apanhar se

eu encostar na perna dessa pessoa, no ônibus lotado sabe... tudo isso... são

problemáticas né... de viver.” [grifos meus]

Lua Crescente

“Eu não tenho uma boa relação com meu pai... até hoje. É... apesar dele me aceitar e tudo mais, a gente nunca teve uma boa relação, porque meu pai não é uma pessoa muito carinhosa e tal. Aquela coisa da masculinidade tóxica e etc. Então... quando eu me assumi o meu pai ficou muito quieto. Por muito tempo. Porque meu pai não demonstra sentimentos, então meu pai chorava sozinho, quando eu não estava.

E a minha mãe me abraçou e tal e meu pai nunca fez nenhum movimento.”

[grifos meus]

(ao ser perguntado sobre que conselho daria para o seu eu-criança)

“[...] acabei me dando conta de que... dependendo da idade minha que eu selecionar, é... a criança que eu foi, que eu fui (sic)... provavelmente não ia

gostar do adulto que eu me tornei. Porque desde criança eu entendia que eu não

deveria manifestar... ah... identidade sexual, orientação sexual, como quiser chamar...” [grifos meus]

Entrevistador: tu acha que... seria um encontro... de conflito pessoal muito grande?

“Sim.” [grifos meus]

As participantes e os participantes da pesquisa enunciam diversas dimensões desse expurgo, desse inferno social. Seja na família, seja no convívio coletivo fora de casa. Uma série de “batalhas familiares”, como enunciou Lua Crescente em certo momento da entrevista, se inicia em razão da percepção ou da assunção do “desvio”. Estas batalhas envolvem movimentos familiares, diretos ou indiretos, de negação da posição-sujeito assumida pelo/pela LGBT+: como dito antes, quem ocupava a posição de pai, rapidamente bate o martelo do juiz e veste a carapuça do carrasco e – nesta posição de executor – leva adiante a pena de forma mais ou menos violenta. Ainda, se o inferno é o “lugar dos mortos e dos demônios” que, por isso mesmo, habitam plano diferente do dos vivos, quem são os seus “fantasmas”? Numa inversão da lógica, se os vivos têm, nos mortos, na culpa, os seus fantasmas, os “mortos” teriam nos vivos a sua tormenta. Essa tormenta advém de uma lembrança constante do não convívio, da não-vida. Os

sujeitos LGBT+, mortos ou demônios sociais, sofrem as tormentas da não habitação no plano da vida.

Necessário ainda retomar o enunciado de Lua Crescente: “[...] Porque meu pai não demonstra sentimentos, então meu pai chorava sozinho, quando eu não estava. [...] E a minha mãe me abraçou e tal e meu pai nunca fez nenhum movimento [...]” [grifos meus]. O pai- juiz-carrasco é também alvo da condenação da qual foi ferramenta. Ele chora sozinho, apartado de tudo e de todos, impossibilitado de deixar-se ver, deixar-se tocar pelo outro, incapaz de permitir o afago, o abraço, o cuidado, em última instância, o perdão e o amor. A figura do pai é também queimada e, de tal forma que, ao tocar “no fogo que condena o filho”, arremete-se para longe desse, pois as marcas foram doloridas demais para serem tratadas – ele se exila, como que condoído dos próprios ferimentos, porém ciente do que eles significam: a irrefutável ligação a um “transgressor”. O ferro que marca o desviante, marca também os que dele se acercam – mais ainda os que o apoiam – e o pai, que aqui deixa de ser um indivíduo, mas passa a fulgurar como uma posição-sujeito conflitada, um epicentro de produção de sentidos, precisa aplicar a pena que lhe compete – afinal ele sabe: não é “possível” ser LGBT+, não é “aceitável”, “não é certo”, mas o peso da aplicação da pena acaba por flagelá-lo também. Sujeito feito na contradição que autoriza a pensar numa talvez inabilidade para amar o diferente que condena ao desterro este sujeito que assume a posição de juiz.

Importante assinalar, apesar de todas as ponderações esboçadas, que tal sujeito-pai (como qualquer outro sujeito desde a perspectiva da Análise de Discurso pecheuxtiana) remete a um discurso que não é dele, um discurso já existente marcado pela historicidade, como afirma Pêcheux (2014). Todo discurso permeia uma incompletude, pois é sempre atravessado por outros discursos: “Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 2012, p. 39). Ademais, na AD, não existe possibilidade de discurso sem sujeito nem de sujeito sem ideologia, logo, não existe discurso neutro, ele apresenta marcas ideológicas do sujeito. Para Althusser em Aparelhos Ideológicos de Estado (obra publicada em 1970), a ideologia está relacionada com os modos de produção de uma sociedade. O sujeito está inserto nas relações de produção capitalista, sendo moldado a viver nessa sociedade, portanto, “[...] uma vez interpelado pela ideologia em sujeito, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individual(izada) concreta” (ORLANDI, 2001, p. 107). A presença de um discurso de recusa (talvez triste, talvez magoada) do LGBT+ na fala de Lua Crescente, quando se refere ao pai, revela a existência de um já-lá sobre gênero e sexualidade que irrompe no choro enunciado do pai e aponta para saberes moldados pela sociedade homofóbica, LGBT+fóbica e machista dos

tempos do hoje e do ontem, sociedade que já capturou corpos diferentes e os submeteu ao flagelo.

O duplo efeito do expurgo é também enunciado por Lua Nova ao falar do ex-marido: “[...] eu fui casada, eu tive um casamento hetero, e o meu ex-marido sempre tinha uma reação

de asco. De rejeição total a... a essa minha postura, essa minha condição, a essa minha escolha”

[grifos meus]. Esta “(1) sensação de repugnância, nojo; (2) aversão, desprezo”67 do ex-marido

indica pistas deste duplo efeito do expurgo. Não foi apenas Lua Nova que sofreu a punição – apesar de ser a dela muito mais ostensiva. Na posição de ex-companheiro, o asco materializa no corpo uma dor infligida no simbólico, como a dizer “A mãe da minha filha é isso? Não vou aceitar”. A rejeição total, “sempre” graduada por este asco, parece mostrar uma particularidade do elemento fogo: quando ele começa a queimar, não escolhe a quem vai tocar. Ele consome a tudo e a todos que estão em seu raio de ação. A normatividade, apesar do apreço pelo controle, não é capaz de conter as queimaduras e a dor do seu jugo – a dor espalha-se como um fogo infernal.

7.1.2. Efeito de Sentido de Cerceamento (ESC): “A transgeneridade não é libertadora