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4. QUARTO SEGREDO: ELES SÃO FEITOS DE SOMBRAS

4.3 PERTURBAÇÕES NA REDE DE SENTIDOS

4.3.2. Efeito de Sentido de Violência

A resistência e a luta manifestas nos dizeres de LGBTs+ veem-se sempre margeadas pela tentativa da heteronormatividade de se apoderar mais uma vez do dizer, realizando novos cortes de censura. Ao que parece, o sujeito LGBT+ ainda não consegue enunciar desvinculando-se da possibilidade da opressão – que a cada dia reforça sua realidade. O medo de ser alvo do “preconceito” e da “dor”, que Phelan demarcou em sua história, transparece nos discursos dos colaboradores de forma mais ou menos direta. A violência é um sentido pulsante em seus dizeres. Podemos observar esses funcionamentos nas respostas dadas às questões 7 e 10:

Questão 7

Alden Sim. Existe e podemos observar em diversos veículos midiáticos. Eu não sofro com isso diretamente, porém influencia nas minhas atitudes sociais

Arela Sofro com a LGBT+fobia mais no sentido de me assumir na relação com os familiares,

já que sei que eles jamais aceitariam quem eu realmente sou.

Morgan Sei que existe, pois já sofri na infância. Agora não mais. Mas temo sofrer. [...] Kendall Sim. Sofro no quesito cotidiano, mas nenhuma violência física me atingiu. Ainda.

Questão 10

Alden

Eu acho que sofri bastante com a influência das pessoas que têm preconceito contra

homossexuais [...] só fui “acordar” para a vida com 21 anos, pois me dei conta que a vida de todos andava normalmente e eu estava deixando a minha de lado por conta de opiniões de pessoas que não importavam.

Vougan

[...] Durante a escola o ensino fundamental foi de fato difícil não porque os outros

estudantes não me aceitavam mas porque eu não me aceitava, a partir do

momento em que passei a entender quem eu era e como faria para o ser, as coisas pareceram ficar mais fáceis e mais leves não me importando mais tanto com comentários e risadas [...]

Albion Não gosto de compartilhar. Owyn

Cresci no meio LGBT+, então ser gay sempre foi normal pra mim. [...] A única vez

em que quis ser outra pessoa fui quando fui agredido quando estava chegando em

casa. Pode parecer absurdo, mas chegar em casa sangrando por ser quem você é faz com que alguns conceitos e posturas sejam questionados.

Morgan

A história mais relevante que tenho para contar não é sobre o sofrimento da

rejeição por ser gay na infância e na adolescência; ela tem ligação com o

sofrimento da cobrança interna que isso me provocou. Eu não consegui nem sequer

tocar em outro menino antes de ter condições emocionais fortes o suficiente para contar para alguém da família que sou gay. [...] Consegui me relacionar com um

menino pela primeira vez aos 25 anos (2016)

Juntam-se a estas sequencias discursivas as diversas respostas não dadas para a questão 10, única em que alguns participantes se abstiveram de responder. Parece pulsar, nesse não enunciar, um efeito de sentido de violência, que prefere não se dizer, não se materializar. O dizer LGBT+ está marcado pela violência de todas as formas – seja no passado, em experiências

vividas; seja no presente, sofrendo as ações das imposições culturais; seja no devir, com o medo de ser alvo dela no futuro. Observando as marcas da violência nos discursos LGBT+, chega-se aos efeitos que a heteronormatividade e seus mecanismos de controle condensam nos sujeitos. A violência não é uma realidade distante ou impossível, muito pelo contrário – ela é uma certeza, um fato concreto, que há de acontecer em algum momento da história dos LGBT+. Seja na infância, no trabalho, na família, em outros locais, junto a outros grupos. Se não o foi no passado, acontecerá seja no presente ou no futuro. Ser LGBT+ é reconhecer a eminencia da discriminação e do preconceito que, a qualquer momento, pode se manifestar.

A verdade é que a civilização sempre precisou de reservatórios negativos que possam funcionar como bodes expiatórios nos momentos de crise e mal-estar, quando então, por um mecanismo de projeção, ela ataca esses bolsões tacitamente tolerados. Em outras palavras, sempre que a minha situação não tem saída, a saída é atacar o mal fora de mim. As periódicas perseguições aos judeus tem sido, secularmente, claro exemplo dessa projeção ideológica. [...] A homossexualidade inscreve-se como mais um desses reservatórios negativos. Como a permissividade social é basicamente oportunista, a tolerância varia de época para época, dependendo de fatores externos, que acrescentam à pratica homossexual maior ou menor grau de periculosidade, conforme as necessidades circunstanciais. Por isso, apesar de tolerada no Brasil, a prática homossexual acabou se tornando frequentemente um caso de polícia, ainda que não seja proibida por lei. (TREVISAN, 2000, p. 22)

A aceitação social está sempre em tênue situação, colocando a comunidade LGBT+ em um constante sinal de alerta – não há certezas sobre o respeito no amanhã. Soma-se a isso os efeitos emocionais que afetam os sujeitos. Como Morgan, Alden e Vougan enunciaram, não foi o sofrimento causado por colegas de escola o maior peso que carregaram – foi a tortura íntima da dúvida, da vergonha, da incerteza, do medo paralisante de “ser aquilo” que de fato eram acusados de ser. A violência subjetiva que coíbe o sujeito ao não-ser é uma constante nos discursos LGBT+.

Percebo aqui um novo reviramento histórico, que retoma as formas de entender a sexualidade e a pressão social pelo controle dela, que remete ao Brasil colônia e aos tempos de inquisição. A história da sexualidade em terras brasileiras é pulsante e transgressora. Ela se transformou em motivo de preocupação e desgosto do clero europeu, que reconhecia, no Brasil, uma terra onde as regras se dissolviam. A inquisição esteve em vigor na Terra do Cruzeiro até 1821 e possuía uma mecânica específica de funcionamento. Começando com o Autos-de-fé, cerimônias de abertura do processo, sendo sucedidas pelo Tempo de Graça. Esse período de algumas semanas dava espaço para que os pecadores confessassem suas faltas, recebendo punições atenuadas. Ademais, era obrigação e direito de qualquer cidadão denunciar os pecados de outrem, estabelecendo um clima de controle e vigilância constantes – qualquer um poderia

denunciar um pecador que seria chamado diante da inquisição e responderia a processo público. As punições inquisitoriais eram das mais diversas: multas, prisões, confisco de bens, banimento da cidade ou do país, trabalho forçado (nas galés ou não), passando por marca com ferro em brasa, execração e açoite público até a castração, amputação das orelhas, morte por forca, morte por fogueira, empalamento e afogamento. A sodomia, por implicar o máximo de desordem possível na procriação,

[...] era considerada como um pecado gravíssimo, que não prescrevia jamais, continuando digno de punição por muito tempo. Como se tratava de um desvio ditado diretamente pelo demônio, a Igreja e a Inquisição associavam a prática da sodomia com a bruxaria e as heresias dos cátaros e templários. (TREVISAN, 2000, p. 110).

A relação que se estabelece no dizeres dos participantes desta pesquisa é justamente acerca do medo instaurado pelos processos inquisitoriais. A violência – ou dito de outra forma, a “corrigenda da norma” – sobre os sujeitos LGBT+ advém de diversos pontos, retomando os medos do século XVIII-XIX da danação espiritual, da expulsão física e da morte. A heteronormatividade, repaginando-se ao longo dos tempos, faz uso de diversas forças de inquisição, sustentando o medo premente da violência. O controle religioso mais conservador ainda atormenta as sexualidades com discursos acerca do inferno e das possessões demoníacas; o risco de morte e violência física é constantemente retratado nas mídias, mesmo que deliberadamente ignorado pelas autoridades. Preciso, ainda, adicionar, outra marca da história da sexualidade no Brasil, remontando à década de 1920. A medicina transforma em questão psiquiátrico-policial a prática homossexual, demandando tratamento constante e intervenção em prol da saúde social (TREVISAN, 2000).

É desse conjunto de memórias discursivas que o sujeito LGBT+ é alvo. Digladiando-se na busca de sentidos outros, que remetam à libertação e à valorização de uma forma outra de ser e de amar, esses sujeitos enfrentam a política do silêncio da norma, enfrentando séculos de discriminação e retomando as vozes daqueles que, antes de nós, lutaram por direitos de existir. Neste trabalho, ainda encontro duas formações discursivas que disputam a dominância dos sentidos. A FD de Transgressão46, em que o efeito de sentido de luta se inscreve, onde ressoam as vozes de Stonewall Inn, do grupo brasileiro Dzi Croquettes, do jornal o Lampião, primeiro periódico gay do país. A outra, a FD da Normatividade, busca a todo custo fazer valer o controle 46 Nesta segunda aproximação do trabalho, senti a necessidade de repensar o nome dado às formações

discursivas apresentadas no trabalho de conclusão. Apesar de pertencerem ao mesmo campo do saber, circunscrevendo as mesmas possibilidades do dizer, tratá-las como ‘FD de Gênero Transgressora/Normativa” poderia acarretar em confusões conceituais. Dessa forma, os termos FD de Transgressão e de Normatividade, parecem expressar com maior clareza o arcabouço de possibilidades de tais formações discursivas.

da sexualidade e das formas de viver em sociedade. Remontando à inquisição, à medicina patologizante e policialesca, busca mecanismos diversos no tecido social para coibir os sujeitos de acessarem plenamente as possibilidades do dizer e do enunciar, enclausurando-os em sentidos únicos.

Apesar da história de militância, de luta, de resistência da nossa comunidade, ainda somos afetados profundamente pela heteronormatividade. Ambas as formações discursivas veem-se vinculadas à Formação Ideológica da Heteronormatividade. Ainda é a partir da norma que os sujeitos LGBT+ enunciam sobre a forma com que sentem desejos e amores, pois a marca do “desvio”, da “ruptura” ainda é dominante. O efeito de controle da normatividade ainda assoma poderoso, afetando LGBT+s e heterossexuais que se veem limitados nas suas possibilidades de experenciar, de vivenciar e de sentir. Tudo indica que a resistência, a superação e a afirmação de Phelan ainda produzirão sentidos nos dizeres LGBT+, que ainda precisarão retomar o coral das vozes que lutaram antes de nós para construir um mundo mais justo e seguro para todos nós.

Este (re)trabalho reforçou a ideia de que é na movência e no embate que o sujeito LGBT+ se constitui. Vendo-se constantemente ameaçado pela normatividade, este sujeito precisa romper com a força da censura para poder dizer aquilo que, pelo fio do discurso, poderia ser dito, mas que está enclausurado. Em ambos os trabalhos, os sujeitos mostraram toda sua descontinuidade, sua movência, seu caráter intervalar. Confrontados por sentidos de controle, em alguns momentos não conseguem escapar dele, mas em outros rompem com as amarras discursivas e retomam sentidos de embate e empoderamento que ecoam do passado.