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Todo caminho leva a algum lugar. Ao longo do trajeto, o caminhante irá se deparar com bifurcações, novas veredas, novos andares. Para que lado seguir? Para onde levar seus passos? Seguir ou parar? Estas escolhas definem não apenas o percurso, mas as reverberações que a viagem terá sobre o próprio peregrino. Em alguns casos, um beco sem saída se mostra à frente. Nova escolha é demandada. Se o desejo insistir, é preciso decidir: retomar os passos? Abrir um caminho onde não há passagem? Ou fazer do aparente limite o próprio lugar da exploração? Seja qual for a escolha, o viajor perceberá outros elementos e outros matizes não vistos anteriormente. Mesmo que retome seus passos, a fim de tomar caminho outro, seu olhar já foi transformado pela experiência. O caminhar sempre transforma o andarilho.

Aquele que caminha, constrói, na movência, um estado de permanente mutação – e, por isso, seu olhar é sempre mais inquiridor, mais perscrutador, mais inquieto. Constitui-se um tal estado de espírito investigativo que as ferramentas de apreensão do mundo e de si mesmo são afinadas. Neste afinar dos instrumentos é que se dá a transcendência do viajante, que, pelo caminhar, se faz mais do que ele próprio é como sujeito empírico. Expande as fronteiras de si mesmo e consegue apreender além delas. Na transcendência do caminho, o peregrino se deixa afetar. No caso de um analista de discurso, transcender exige, por exemplo, compreender que os sentidos sempre podem ser outros – e aqui não se trata de uma mera compreensão do conceito pecheuxtiano: é preciso encharcar-se deste/neste entendimento para que, no exercício da metodologia de pesquisa, se sinta, na materialidade do corpo e da alma, que o sentido sempre pode ser outro. A transcendência do caminhar – ou, dito de outra forma, a constituição do sujeito científico através da metodologia – implica fazer do corpo lugar de reverberação da compreensão: os conceitos ressoam dentro do viajante e são eles que matizam sua forma de interpretar o que analisa.

O “transcender do caminhar”, que aqui proponho, não significa superação da própria realidade de tal forma que o sujeito-investigador/viajor esteja apartado da sua história e, por isso, se torne onipotentemente capaz de tudo analisar sem implicações. Muito pelo contrário. A transcendência é exatamente o reconhecimento e a tomada de consciência das afetações que a história de cada um borrifa sobre a pesquisa que o sujeito se propõe a fazer. Transcender é assumir a si mesmo como sujeito da e na história, assumir-se como sujeito ideológico, reconhecendo que todo fazer deste tal sujeito, tão afetado pelo seu “tempo e lugar” no mundo, não poderia ser neutro. Este reconhecer resulta no entendimento de quatro características gerais apresentadas por Minayo (2007) ao tratar das Ciências Sociais: 1) o objeto das Ciências Sociais

é histórico; 2) este objeto possuí consciência histórica; 3) existe uma identidade entre sujeitos e objeto de pesquisa; 4) as Ciências Sociais são intrínseca e extrinsecamente ideológicas. Dessa forma, a pesquisa que proponho fazer é profundamente afetada pela minha constituição como sujeito histórico-social. Ela é matizada por todos os marcadores que me constituem como sujeito (homem, branco, gay, pedagogo, gaúcho, mestrando em educação, analista de discurso pecheuxtiano etc.), da mesma forma que será afetada ao entrar em contato com as especificidades dos colaboradores desta pesquisa. Como colocam Lüdke e André (1986, p. 3), “[...] é importante lembrar que, como atividade humana e social, a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador”.

Sendo a metodologia “[...] o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade” (MINAYO, 2007, p. 14), as escolhas do viajor devem costurar-se aos objetivos do empreendimento. Por vincular-se ao trabalho de Michel Pêcheux, a proposta que aqui se apresenta só poderia se configurar como um estudo qualitativo, tendo em vista que é nesta modalidade de estudo que se trabalha “[...] com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” de um nível da realidade que “[...] não pode ou não deveria ser quantificado” (MINAYO, 2007, p. 21). A AD não intenta quantificar eventos ou fatos, seu desejo é compreender os processos discursivos, portanto, como os sentidos são produzidos, como os gestos de interpretação dos sujeitos ressoam sobre a realidade, possivelmente transformando-a, como colocou Kosík (2010). Corroboram, ainda, Gerhardt e Silveira (2009, p. 32) quando apontam que:

A pesquisa qualitativa não se preocupa com a representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização etc. Os pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa opõem-se ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências, já que as ciências sociais têm sua especificidade, o que pressupõe uma metodologia própria.

A produção de dados envolveu entrevistas individuais realizadas com os/as colaboradores da pesquisa, sendo registradas com gravador de voz e posteriormente transcritas. No intento de abordar as experiências de vida de pessoas LGBT+, parece inevitável que, em algum momento, pontos sensíveis das histórias dos/das participantes apareçam. Tal situação se deu no questionário virtual realizado no trabalho de conclusão do curso de graduação. A décima questão, que convidava o respondente a compartilhar um pouco de sua experiência de vida, relacionando-a ao fato de ser LGBT+, foi acompanhada por um silêncio por parte dos respondentes. O que me convocou a empenhar especial atenção ao momento de pensar sobre o

espaço de escuta discursiva a ser constituído na etapa da interação com os interlocutores e, depois, na análise de seus dizeres.

Acredito que a entrevista qualitativa pode ser um espaço potente que permite ao participante explanar com tranquilidade e tempo os pontos que enuncia da própria trajetória. Este momento de entrevista é uma entrega genuína do sujeito entrevistado – ele se revela através dos ditos e dos não-ditos. Sua história (uma parte e um lado dela) é pouco a pouco encenada pelo tecer das palavras e dos silêncios, sejam eles escolhidos ou escapes para enunciar a si mesmo. Com o foco que escolher, enunciará seu próprio interpretar do mundo. Compreendo que, diante de tal entrega, compete-me uma escuta sensível e integral, que se dedique com afeto e respeito. Acredito imprescindível uma abordagem profundamente cuidadosa com os sujeitos colaboradores a serem entrevistados por mim. Como coloca Gaskell (2002, p. 75),

Fundamentalmente, em uma entrevista em profundidade bem-feita, a cosmovisão pessoal do entrevistado é explorada em detalhe. Embora tais pontos de vista pessoais reflitam os resíduos ou memórias de conversações passadas, o entrevistado possui o papel central no palco. É a sua construção pessoal do passado. No decurso de tal entrevista, é fascinante ouvir a narrativa em construção: alguns dos elementos são muito bem lembrados, mas detalhes e interpretações falados podem até mesmo surpreender o próprio entrevistado. Talvez seja apenas falando que nós podemos saber o que pensamos.

Trabalhando com AD, reconheço que “[...] resíduos ou memórias de conversações passadas” não se tratam de um “embora” – são condições da possibilidade do dizer. O sujeito, para poder dizer, recorre à memória, ao interdiscurso, o que torna ainda mais fascinante a escuta dos entrevistados. Sigo a classificação de Minayo (2007, p. 64), apontando que foi realizada uma entrevista semiestruturada, “[...] que combina perguntas fechadas e abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão [...]”. A entrevista individual foi organizada em três momentos, como disposto abaixo:

MOMENTO 1 – ORIENTAÇÕES INICIAIS

1) Apresentação do pesquisador e da temática da pesquisa.

2) Entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B) em duas vias, uma das quais fica com o participante, contendo a assinatura do participante, a do pesquisador e a da orientadora do trabalho.

3) Garantia do anonimato e sigilo das informações, esclarecendo que o participante não terá sua identidade revelada durante a pesquisa ou depois de ela ser concluída.

MOMENTO 2 – PRODUÇÃO DE DADOS SOCIODEMOGRÁFICOS

1) Levantamento das informações: idade, gênero e sexualidade com o qual o/a participante se identifica, pronome com o qual deseja ser referenciado, cidade de nascimento e residência, formação acadêmica, situação profissional.

MOMENTO 3 – ENTREVISTA

Nesta etapa, de realização da entrevista propriamente dita, fez-se uso de algumas perguntas para nortear a conversa, no intento de atingir os objetivos estabelecidos para este trabalho. Tais perguntas, entretanto, são tópicos de conversação a fim de permitir a possibilidade de outras indagações. Algumas delas foram esboçadas previamente e foram chamadas de pergunta-reação, que ocorreram, ou não, na medida do desenvolver da conversação. A própria formulação das questões sofreu alterações a fim de adequá-las a um tom mais coloquial e mais propicio a uma conversação. A seguir apresento as perguntas norteadoras e algumas possibilidades de pergunta-reação.

Pergunta Norteadora 1 Pergunta-reação 1

Tomando como referência a sua experiência de vida, o que significa ser

um/uma homem/mulher/pessoa gay/lésbica/bissexual/pan...?

Tomando como referência a sua experiência de vida, o que significa ser

LGBT+?

Pergunta Norteadora 2 Perguntas-reação 2

Quais momentos da sua experiência de vida, você considera marcantes?

Por que você considera este momento marcante? O que neste momento fez com que ele viesse à sua mente agora? Que sentimentos estão presentes nestes

momentos marcantes?

Pergunta Norteadora 3 Perguntas-reação 3

Imagine que você está diante do seu “eu- criança”. O que você diria, ou que conselhos daria, para esta criança? 57

Quantos anos o seu “eu-criança”, a quem você deseja se reportar, tem?

Como era a vida dele naquele momento? Por que você escolheu este

momento?

Pergunta Norteadora 4 Pergunta-reação 4

Agora imagine que o seu “eu do futuro” veio falar com você. O que você gostaria

que ele lhe dissesse?

Como você gostaria que a sua vida estivesse no momento do seu “eu do futuro”? Com quantos anos ele está?

A pergunta norteadora 1 adequa-se à identidade de gênero e orientação sexual do/da 57 Esta questão foi inspirada no reality show norte-americano Rupaul’s Drag Race. Nele a drag queen

apresentadora do programa, RuPaul, pergunta às participantes finalistas o que diriam caso se encontrassem com suas “versões criança”.

participante. Seu intento foi dar destaque às experiências de vida do colaborador da pesquisa, como ele/ela as interpreta. Em um primeiro momento de planejamento da entrevista, a pergunta inicial seria “O que significa ser LGBT+?”. Esta questão, entretanto, passou a ser considerada uma pergunta-reação por compreender que o uso do termo LGBT+ remete a comunidade, a grupo, o que poderia deixar em segundo plano as experiências do sujeito respondente. De igual forma, é preciso considerar que algumas pessoas não se sentem representadas pela sigla/comunidade, o que poderia gerar apagamentos das experiências destes sujeitos. A pergunta-reação teve como desejo aproximar sentidos de experiência pessoal de uma sexualidade não normativa, com os possíveis sentidos atribuídos pelo respondente ao conceito de comunidade. Ser LGBT+ é a mesma coisa que ser um homem gay ou uma mulher lésbica?

A pergunta norteadora 2 intentou focar a narração em experiências de vida do participante. Que momentos são escolhidos para serem narrados? Por que este e não outro? Que sentimentos envolvem esta lembrança, este momento? Que relações estes momentos têm com o fato de que o respondente é um sujeito não-heterossexual? As perguntas-reação tiveram por objetivo aprofundar as ideias do participante sobre aquilo que achou relevante compartilhar. As perguntas norteadoras 3 e 4 propuseram uma projeção imaginativa convidando o sujeito a “deslocar-se no tempo”. A escolha do momento a que irá se reportar e pelo qual foi interpelado, vindo do futuro, foram questões provocativas. Por que este momento foi visitado no passado ou por que aquele momento se tornou o visitado no futuro? Que expectativas para o amanhã escapam de seu dizer tendo em vista o passado e presente deste sujeito?

Foram utilizados durante a entrevista dois disparadores. O primeiro disparador, apresentado no início da conversa, é a música I Know Where I’ve Been58 apresentada no seriado

Glee59, criado e produzida por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan. A cena, que ocorre na sexta temporada, no episódio sete, é liderada pela personagem trans Unique (interpretada pelo ator Alex Eugene Newell) e conta com a presença de um coral, composto unicamente por pessoas transgênero. Este episódio, nomeado Transitioning, tematiza a transição de gênero passada pela treinadora do time de futebol americano da escola, Shannon Beiste, que se reconhece como um homem transgênero. I Know Where I’ve Been é uma das músicas principais do musical Hairspray, que se passa nos Estados Unidos da década de 60 e que tematiza a superação de preconceitos e a busca pelos sonhos. O trecho passado para os participantes mostra o momento de performance da canção, com legendas em português. A letra original e uma

58 O vídeo pode ser visto no Youtube, no link: <https://www.youtube.com/watch?v=Bw2g_LOwTJA> 59 O seriado Glee, é uma comédia musical , produzida pela Fox. Conta com 6 temporadas, foi transmitido para mais de 60 países entre 2009 e 2015.

tradução livre seguem:

I Know Where I’ve Been There's a light in the darkness Though the night is black as my skin There's a light burning bright

Showing me the way But I know where I've been There's a cry in the distance

It's a voice that comes from deep within There's a cry asking why

I pray the answer's up ahead, yeah 'Cause I know where I've been

There's a road we've been traveling Lost so many on the way

But the riches will be plenty

Worth the price, the price we had to pay There's a dream in the future

There's a struggle that we have yet to win And there's pride in my heart

'Cause I know where I'm going, yes, I do And I know where I've been, yeah There's a road we must travel There's a promise we must make But the riches will be plenty

Worth the risk and the chances that we take There's a dream in the future

There's a struggle that we have yet to win Use that pride in our hearts to lift us up to tomorrow

'Cause just to sit still would be a sin

I know it, I know it, I know where I'm going Lord knows I know where I've been

Oh, when we win, I'll give thanks to my God 'Cause I know where I've been

Eu sei onde andei

Há uma luz na escuridão,

Apesar da noite ser negra como minha pele Há uma luz acesa que brilha me mostrando o caminho

Mas eu sei por onde estive Há um grito ao longe

É uma voz que vem de dentro

Há um grito pedindo por isso, peço-te a resposta à frente, sim. Porque

"Eu sei onde eu estive

Há um caminho que tenho viajado perdido tantos a caminho

Mas as riquezas serão em abundância Vale o preço, o preço que teve que pagar Não é um sonho no futuro

Há uma luta que ainda temos de ganhar E há orgulho em meu coração. Porque 'Eu sei para onde estou indo, sim, eu faço E eu sei onde eu estive, sim

Há um caminho que deve viajar Há uma promessa que deve fazer

Ah, mas as riquezas, as riquezas serão em abundância

Vale os riscos e as chances que nós tomamos Há um sonho no futuro

Há uma luta que ainda temos de ganhar Use esse orgulho em nossos corações para nos levantarmos amanhã

Porque só para ele ainda seria um pecado Eu sei, eu sei, eu sei onde estou indo O Senhor sabe que eu sei onde eu estive

Oh, quando ganhamos, eu vou dar graças a meu Deus.

Pois eu sei onde eu estive

O segundo disparador, apresentado no meio da entrevista, antes da proposta de realizar projeções do passado e do futuro, foi uma cena do seriado Sex Education, da Netflix. O recorte faz parte do sétimo episódio da primeira temporada da série e apresenta o personagem Erick Effiong (interpretado por Ncuti Gatwa) – adolescente negro, gay, que tensiona a cisgeneridade

através de suas roupas – em diálogo com seu pai (interpretado por Deobia Oparei). Na cena, Eric, após sofrer uma reviravolta emocional em razão de ser violentado por homofóbicos, resolve ir ao baile do colégio, vestindo um terno com estampas africanas, maquiagem dourada, batom, turbante, brincos, unhas pintadas e salto alto. Seu pai o segue, perguntando se o filho tem certeza de querer ir ao baile vestindo tais roupas. Eric reafirma sua decisão, o pai, por sua vez, fala do medo que sente pelo filho que “mostra-se demais”. Eric argumenta que o medo paternal não o protege, apenas o enfraquece. Mr. Effiong exalta a coragem do filho, apontando que está aprendendo com ele. A cena pode ser vista na plataforma Netflix, como também – porém sem legendas – no Youtube60. Estes disparadores foram escolhidos em razão da sua densidade emocional, da possibilidade de identificação e exploração durante as entrevistas.