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4. QUARTO SEGREDO: ELES SÃO FEITOS DE SOMBRAS

4.3 PERTURBAÇÕES NA REDE DE SENTIDOS

4.3.1. Efeito de Sentido de Luta

Neste efeito de sentido de luta, o sujeito manifesta a tomada de uma ação que gera uma ruptura no funcionamento da heteronormatividade. O objetivo da norma é condicionar aqueles que buscam afastar-se dela, demarcando muito claramente os limites que não devem ser atravessados. Para tanto, utilizam-se diversas ferramentas socioculturais que constantemente chamam a atenção dos sujeitos para que se mantenham na normatividade. As piadas são uma manifestação muito clara deste efeito. Quando um homem cisgênero45, supostamente heterossexual, manifesta comportamentos que fogem ao normativo, aqueles ao seu redor não partem para a agressão física de imediato – eles usam da ironia, do deboche para “chamar a atenção” do sujeito. Será no caso da “transgressão recorrente” que entram em vigor mecanismos de repressão mais intensos, que superam a intervenção verbal, adentrando o campo da agressão física – e, em alguns casos, resultando em assassinato.

Os sujeitos enunciam seus movimentos de resistência à heteronormatividade, destacando o peso que o ato de “assumir-se” tem no tecido social e o consequente papel de “esclarecer” os que estão ao seu redor sobre a vida das pessoas LGBT+. Observa-se, através das formulações destes sujeitos, a quebra do efeito da censura: empoderam-se de sua identidade, construindo valores e significados outros a partir do reconhecimento da não- heterossexualidade. Essa assunção de uma forma de ser e estar na sociedade, de uma possibilidade outra de viver as experiências afetivas/sexuais, bota em cheque o efeito de silenciamento da heteronormatividade que tenta, a todo custo, coibir o acesso a uma tal forma de ser/estar no discurso e na sociedade. Phelan, ao descrever sua história como marcada pela “resistência”, pela “superação” e pela “afirmação”, pareceu condensar, em um só enunciado, as diversas formas de luta e resistência apresentadas pelos outros participantes. Como podemos observar em respostas dadas à questão 9, nas seguintes SDs:

Garwin Eu tento combater a homofobia sendo eu mesmo e mostrando que ser gay é apenas

um rótulo e não define minha totalidade como pessoa.

Vougan

Não tendo vergonha de mostrar quem eu sou, e mostrando para essas pessoas que

as armas que elas usavam contra os homossexuais já não funcionam mais, que

estamos muito mais seguros em sair as ruas e mostrar quem somos com todos os

traços de nossa personalidade sem medo de viver quem somos.

Nolan Eu faço questão de me inserir como gay em todos os ambientes que preciso estar, e faço questão que todos entendam que sou gay, e isto não faz a mínima diferença.

45 Cisgêneros são os indivíduos que se identificam com a identidade de gênero atribuída ao sexo biológico com que nasceram, enquanto transgêneros são aqueles que não se identificam com a identidade atribuída ao seu sexo biológico.

Jarvis Eu vivo! Eu existo, eu trabalho, eu estudo, eu produzo, eu “arrazo”, eu sou linda, eu

me manifesto, eu tenho fãs!

Amadeus Esclareço as pessoas que conheço.

Tristan Tento levar informação para quem demonstra alguma forma de preconceito.

Os sujeitos enunciam acerca da “capacidade de suportar” os efeitos da heteronormatividade, da “luta sustentada contra os seus ataques”, através da “afirmação”, da “imposição” da sua identidade. Eles “dominam, vencem, livram-se, afastam, removem” a mortalha, não do preconceito, mas da norma, que os silencia. Percebo, aqui, uma retomada do importante acontecimento discursivo de Stonewall Inn. Quando, naquele 28 de junho de 1969, a comunidade (ainda não chamada de) LGBT+ se revolta contra a opressão policial, quando as vozes gritaram por liberdade e o lema “gay power” foi escrito nas paredes do bairro, uma profunda ruptura no tecido social acontece. A possibilidade de dizer-se gay rasga o domínio da heteronormatividade absoluta e uma nova forma de existir é possível: a luta, a resistência, a transgressão. Mesmo que não tenham ciência disso, os entrevistados resgatam o “espírito” de Stonewall Inn no momento em que assumem suas personalidades socialmente. Cada um e cada uma que se coloca como não-heterossexual, “assumindo seu desvio”, faz uso discursivo do “gay power”, provocando mudanças no interdiscurso acerca das homossexualidades. Invocam também a história do movimento homossexual brasileiro que funda, em nossas terras, um outro lugar de enunciação com a possibilidade de dizer-se não-heterossexual

A marca dessa resistência, dessa luta, se manifestou em respostas à questão 10:

Alden

Eu acho que sofri bastante com a influência das pessoas que tem preconceito contra homossexuais, durante minha adolescência me fechei com qualquer pessoa só pelo medo de ser rejeitado [...] Comecei me assumindo aos poucos, primeiro para meu irmão e depois para minha mãe, que não aceitou tão facilmente (me proibiu de contar ao meu pai) e durante esse período comecei a me abrir mais comigo mesmo, me

aceitar e deixar de impor tantas barreiras sobre como eu devo me vestir, falar, agir,

como eu devo me portar perante a sociedade.

Vougan

[...] fui me tornando mais seguro de meus atos e minha personalidade no exato momento em que contei para minha família (que não ficou nada surpresa) e que me deram e dão todo o apoio possível para ser quem sou.

Arela

Acredito que a história de quando me assumi lésbica (explicar a assexualidade e a polirromanticidade pode ser complicado para quem não é do meio) à minha mãe foi, até hoje, a mais marcante.

As SDs parecem indicar exatamente a ruptura e o afastamento da norma, como um feito que libera os sentidos para os sujeitos, permitindo novamente seu fluir pelos sentidos disponíveis. As formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito em seu fluxo histórico, entretanto, Orlandi aponta que:

A censura estabelece um jogo de relações de força pelo qual ela configura, de forma localizada, o que, do dizível, não deve (não pode) ser dito quando o sujeito fala. A relação com o “dizível” é, pois, modificada quando a censura intervém: não se trata mais do dizível sócio-historicamente definido pelas formações discursivas (o dizer possível): não se pode dizer o que foi proibido (o dizer devido). Ou seja: não se pode dizer o que se pode dizer. (1993, p. 79).

Está disponível no interdiscurso a possibilidade de dizer-se homossexual – a história do movimento LGBT+ mostra todas as rupturas e provocações que demarcaram esse novo lugar. A heteronormatividade, entretanto, persiste, interditando a memória do discurso, buscando impedir seu acesso. Nessa correlação de forças, a arma de controle da norma é a não assunção do desvio. Ela mantém o controle no momento em que os sujeitos não forçam as barreiras do silenciamento a fim de acessar o dizer possível que está censurado. Não se manifestando fora das possibilidades por ela estabelecidas, o sujeito não é alvo de reprimendas. Podemos observar esse funcionamento nos ditos populares segundo os quais “pode ser gay, mas não precisa ser viado/bixa”. O “viado” é aquele que escancara o trabalho da política do silêncio. Na medida em que ele se torna “gritante”, “chamativo”, “incômodo” por ser afeminado, por ser “escandaloso”, ele descortina a norma: ele só é incômodo porque existe uma norma, que ele descumpre. Da mesma forma as travestis e transexuais, ou as lésbicas masculinizadas. Esses sujeitos revelam claramente os padrões e são visíveis justamente porque os quebram. Trevisan fala sobre um tal efeito da normatividade, ao tratar da mídia que abre concessões a sexualidades desviantes da norma, dando-lhes um ar glamoroso e exótico: “[...] um ato de condescendência que tolera apenas sob rigorosas circunstancias, aceitando uma homossexualidade clean, da qual esteja depurado todo e qualquer resquício de “rebeldia” (TREVISAN, 2000, p. 20).

O ato de assumir tem efeito semelhante: ele distende e tenciona as margens da censura ao mesmo tempo que as faz visíveis. E de tal forma o faz, que é “natural” identificar os gestos, as palavras, as roupas, a maneira de andar, que escapam da norma. Os sujeitos dominam inconscientemente as regras da heteronormatividade. O participante Jarvis enuncia o peso da assunção da sexualidade para a política do silêncio: “Eu vivo! Eu existo, eu trabalho, eu estudo, eu produzo, eu “arrazo”, eu sou linda, eu me manifesto, eu tenho fãs!” O mero fato de “manter- se vivo, durar, existir, passar a posteridade, aproveitar a vida”, como indica o dicionário para o verbete viver, desde a posição de sujeito LGBT+, é uma afronta aos domínios da norma, um embate contínuo com/contra eles.