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Elites, repovoamento, demarcações

No documento Governar a Cidade na Europa Medieval (páginas 168-172)

as elites urbanas

II. Elites, repovoamento, demarcações

Da absorção pelo ethos nobiliárquico no decurso de Trezentos, contrariando aliás

4 FRANKLIN, Francisco Nunes – Memoria para servir de indice dos foraes das terras do Reino de Portugal e seus domínios. 2ª ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1825, Relação I, pp. 57 e ss.

as melhores tradições de resistência das oligarquias urbanas à pressão senhorial promovida pelo rei em meados de Duzentos, de que já veremos um exemplo relevante, resulta um leitmotiv historiográfico que tem raízes no século XVIII: o estudo das oligarquias urbanas como parte da história da nobreza, o que remete quer para uma osmose cultural quer para as consequências do próprio processo de oligarquização. O manuscrito de Félix Caetano da Costa, datado de 1799 e publicado por Gabriel Pereira (“Vereadores da Câmara de Beja”) em O Bejense, 1892, 1893 e republicado depois no Arquivo de Beja5 pode servir de exemplo à forma como se constrói no século XVIII a história do grupo de famílias da governança local: “De alguns livros da historia do Reino, e de outras memorias particulares e manuscritas consta que a governança de Beja no senado da Camara da mesma andou sempre de tempos muito antigos na principal fidalguia e nobreza [...]” (p.337). E se o elenco de famílias que aduz, especialmente a partir de final do século XV, consta efectivamente dos Nobiliários, já o mesmo não se poderá dizer de uma parte significativa dos nomes documentados pelo de resto criterioso levantamento feito para a primeira centúria de vida da cidade após a refundação de Afonso III. Assim, se exceptuarmos os Mafaldo, descendentes de Estevão Vasques (+1272), miles, instituidor do morgado de S. Estevão de Beja, que irão ocupar a alcaidaria da cidade no século XIV e de quem F.C. da Silva diz descenderem os condes dos Arcos, ou os Costa, que J. A. Pizarro6 dá como uma das linhagens medievais não representadas nos Livros de Linhagens (o que quer aliás dizer alguma coisa sobre a sua relevância relativa, sobretudo tendo em vista a proximidade cronológica à redacção dos três nobiliários medievais), nenhuma das outras personagens que constam da recolha feita pelo autor em actos fundadores e de demarcação da segunda metade do século XIII parece estar ligada a alguma família nobre. Que eles o fossem dedu-lo Félix Caetano da Silva de uma passagem do foral de 1254, comum aos forais da mesma matriz: “[...] era tal a nobreza que havia em Beja , apezar do deplorável estado em que se achava então esta cidade, que dando-lhe aquelle monarca o seu celebre e honroso foral [...] concede aos fidalgos cavalleiros de Beja, o privilegio e regalia de poderem produzir os seus testemunhos igualmente com os infanções de Portugal, que eram os maiores fidalgos do reino abaixo dos Ricos Homens, então a primeira nobreza do mesmo reino” (p. 338). O próprio facto de o autor deduzir da equiparação ao estatuto de infanções garantida pelo foro, que os cavaleiros aí referidos eram fidalgos, e não o contrário, como deveria, parece um indício do sucesso da integração, dissolução e de alguma forma obliteração da cavalaria urbana no interior da nobreza que está em curso desde o

5 PEREIRA, Gabriel – “Vereadores da Câmara de Beja”. O Bejense (1892), (1893); Arquivo de Beja 1 (1944), pp. 337 e ss.

6 PIZARRO, José Augusto Sottomayor – Linhagens Medievais Portuguesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325). Vol. 2. Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família, 1999, p. 627.

século XIV, sucesso tão seguro que, no século XVIII, era já difícil imaginar para essas oligarquias um outro estatuto social que não o da nobreza.

Dispomos, para estudar essa oligarquia nas principais cidades do que fora o sul islâmico, muitos dados e alguns estudos, sobretudo iluminando Trezentos, desde o dealbar do século, no momento preciso em que ela começa a ser outra coisa.

Entre eles avultam, para Évora, o fundamental artigo de Hermínia Vilar e a tese de doutoramento de Joaquim Serra. Para Lisboa a tese de doutoramento de Mário Farelo.

Para Santarém os trabalhos de Mário Viana7, que apresentam a particularidade de estudar o grupo numa cronologia mais longa permitindo perceber a consolidação do grupo e o seu ocaso numa cidade que é paradigmática por ter sido o verdadeiro núcleo organizador da fronteira durante o século XII, tendo comunicado o seu foral a muitos dos municípios resultantes da reorganização territorial de Afonso III, em particular no Alentejo central, e pelas ligações que apresenta com muitos povoadores (deixo aqui propositadamente de lado os estudos pioneiros de Leontina Ventura e Maria Helena da Cruz Coelho para as famílias de Coimbra nos séculos XI e XII, por dizerem respeito a diferente cronologia e mostrarem por isso indícios precoces de integração entre linhagens nobres e a cavalaria urbana; assim como os de Luís Filipe Oliveira, que contêm decisivos contributos para a relação com as ordens militares).

No caso do Alentejo central, onde a ausência de um centro urbano de primeira importância, exceptuada Évora que só o é, neste momento, pela anterioridade da conquista face a todos os municípios que a bordejam a sul, tem impacto directo sobre a quantidade e qualidade das fontes disponíveis, o conhecimento das oligarquias urbanas assenta, para o reinado de Afonso III, essencialmente na colecção de doações e sobretudo de instrumentos de demarcação que fazem parte do processo geral de reorganização territorial. É sugestivo que a maior parte dos testemunhos sobreviventes não resultem da demarcação dos grandes concelhos propriamente ditos, isto é dos territórios de Évora e Beja, acerca dos quais podemos pensar se respeitaram as divisões territoriais herdadas do período islâmico (e mesmo do

7 VILAR, Hermínia – “A construção da identidade urbana no século XIII. O caso do sul de Portugal”, Anales de la Universidad de Alicante. Historia Medieval 16 (2009-2010), pp. 133-156 e sobretudo, “Da vilania à nobreza: trajetórias de ascensão e de consolidação no Sul de Portugal (séculos XIV-XV)”. In VILAR, Hermínia e BARROS, Maria Filomena – Categorias Sociais e mobilidade urbana na Baixa Idade Média. Entre o Islão e a Cristandade. Lisboa: Colibri-CIDEHUS, 2012, pp. 145-162; SERRA, Joaquim Bastos – Governar a cidade e servir o rei. A oligarquia concelhia em Évora em tempos medievais (1367-1433). Évora: CIDEHUS, 2018;

FARELO, Mário – A oligarquia camarária de Lisboa (1325-1433). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2008. Tese de Doutoramento em História Medieval; Mário Viana, sobretudo os três estudos reunidos em Estudos de História Económica e Social da Idade Média. Ponta Delgada: Centro de Estudos Humanísticos, 2017, pp. 19-76. Ver também, o colectivo, BARATA, Filipe Themudo; BARROS, Maria Filomena;

CORREIA, Fernando Branco; FERNANDES, Hermenegildo e VILAR, Hermínia Vasconcelos – “Elites sociais e apropriação do espaço no Além-Tejo na Idade Média”. Ler História 40 (2001), pp. 7-41. Finalmente, alguns destes tópicos já se encontram esboçados em FERNANDES, Hermenegildo – Organização do Espaço e Sistema Social no Alentejo Medievo: o caso de Beja. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1991. Dissertação de Mestrado em História Medieval.

romano) que passavam pelas cumeadas da serra de Fazquia (Portel/falha da Vidigueira), mas de definições pontuais derivadas quer da necessidade de precisar os seus limites com os territórios das ordens militares, quer, sobretudo, do aparecimento de novas unidades durantes as décadas de 50 e 60. Refiro-me à criação de grandes senhorios em benefício da clientela próxima do rei, primeiro o de Alvito e Mugia de Arem, na pessoa do chanceler Estevão Eanes, depois o de Portel, na do em breve mordomo-mor D. João Peres de Aboim, nos interstícios dos territórios de Évora e Beja, erodindo fortemente os termos da primeira e, politicamente, ameaçando a segunda. E ainda, às concessões às ordens religiosas, em particular ao mosteiro de S.

Vicente de Fora, que veria atribuído, logo no início da década de 50, em paralelo pois com a refundação de Beja, um pequeno, mas muito relevante território, no limite norte do concelho pacense, numa área de centuriação romana e onde o sistema de villae parece ainda parcialmente funcional (S. Cucufate).

Em todos estes actos demarcatórios o rei pede a presença das oligarquias concelhias, eborenses, pacenses, de Monsaraz ou de Montemor o Novo, conforme os territórios envolvidos e nalguns casos, como o de Portel, de todas elas, com o que procura não só legalizar os actos como também obter o apoio para um movimento senhorializador que, mesmo tendo em conta o carácter muito marginal dos territórios atribuídos, saberia ter um importante potencial de conflito entre as oligarquias urbanas, algumas delas elas próprias recém chegadas e por isso mesmo escassamente consolidadas e a novidade absoluta da expansão da nobreza de corte em além-Tejo. Aliás qualquer coisa de similar estava a acontecer no vale do Tejo, particularmente em Santarém, onde D. João de Aboim acumula por então também um rico património, com a diferença de não ter lugar nenhuma tentativa de formalizar a existência de senhorios, o que se poderá atribuir a um maior respeito por parte do rei pela capacidade negocial das oligarquias de Lisboa e Santarém. No caso do Alentejo central, a oportunidade de envolver a nobreza de corte no repovoamento, operação de sinal contrário àquela que se empreende concomitantemente no norte senhorial, o que revela a plasticidade do realismo político de Afonso III, permite simultaneamente recompensar os clientes e vassalos do círculo íntimo do monarca, aquele que o ajudara a tomar o poder na década anterior, como limitar os poderes das oligarquias urbanas num território que transportava ainda todas as marcas da fronteira, à imagem do que havia acontecido com Lisboa no século anterior. Aliás pode pensar-se se não é justamente a memória da turbulência social recente nas cidades do Baixo Tejo, e, em particular, em Lisboa, que vem explicar a política senhorializadora no Alentejo central nos meados de Duzentos. Todo o processo de demarcação mostra, porém, que o rei tem consciência da impossibilidade de a concretizar sem os concelhos, isto é, sem a sua oligarquia. E isso verifica-se mesmo quando está em causa a introdução de um senhorio eclesiástico, como acontece com

o atribulado processo de concessão de um couto à abadia de Alcobaça no termo de Beja, a que o concelho se opõe com considerável desplante e sucesso, até que o rei se vê na contingência de ceder uma terra dele (o reguengo de Beringel). Poder-se-á anotar à margem, aliás, que as regiões meridionais, do antigo território de Beja, parecem bem mais difíceis de controlar que as setentrionais, do antigo território de Évora, mesmo tendo em conta que é naquelas que se tinha feito sentir de forma mais evidente a actividade repovoadora de Afonso III, com a refundação da urbe pacense. Tal poderá ficar a dever-se à muito recente recolonização, sendo irresistível a comparação com a fronteira americana estudada por Turner e que Bishko tão eficazmente evocou a propósito da sociedade de fronteira castelhana, assim como ao carácter periférico do território no interior da diocese de Évora, cujo estabelecimento pré-data em três quartos de século o controlo cristão da zona a sul da serra de Portel.

Num caso e noutro, porém, a presença nos actos demarcatórios da nobreza de corte, por um lado, e das oligarquias concelhias, pelo outro, torna claro que para ninguém, em meados de Duzentos, rei, nobres ou cavalaria urbana, eles se poderiam de alguma forma assimilar ou apresentar mesmo pontos de contacto, ao contrário do que, muitos séculos mais tarde, pensaria Félix Caetano da Silva, ao estudar as origens da governança pacense. E é precisamente essa camada superior da sociedade urbana testemunha desses actos que aqui me interessaria muito esquematicamente abordar sob três pontos de observação: estatuto e ofícios; parentescos; escalas de percepção espacial e difusão/origens geográficas.

No documento Governar a Cidade na Europa Medieval (páginas 168-172)