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Estatuto, parentesco, origens

No documento Governar a Cidade na Europa Medieval (páginas 172-176)

as elites urbanas

III. Estatuto, parentesco, origens

o atribulado processo de concessão de um couto à abadia de Alcobaça no termo de Beja, a que o concelho se opõe com considerável desplante e sucesso, até que o rei se vê na contingência de ceder uma terra dele (o reguengo de Beringel). Poder-se-á anotar à margem, aliás, que as regiões meridionais, do antigo território de Beja, parecem bem mais difíceis de controlar que as setentrionais, do antigo território de Évora, mesmo tendo em conta que é naquelas que se tinha feito sentir de forma mais evidente a actividade repovoadora de Afonso III, com a refundação da urbe pacense. Tal poderá ficar a dever-se à muito recente recolonização, sendo irresistível a comparação com a fronteira americana estudada por Turner e que Bishko tão eficazmente evocou a propósito da sociedade de fronteira castelhana, assim como ao carácter periférico do território no interior da diocese de Évora, cujo estabelecimento pré-data em três quartos de século o controlo cristão da zona a sul da serra de Portel.

Num caso e noutro, porém, a presença nos actos demarcatórios da nobreza de corte, por um lado, e das oligarquias concelhias, pelo outro, torna claro que para ninguém, em meados de Duzentos, rei, nobres ou cavalaria urbana, eles se poderiam de alguma forma assimilar ou apresentar mesmo pontos de contacto, ao contrário do que, muitos séculos mais tarde, pensaria Félix Caetano da Silva, ao estudar as origens da governança pacense. E é precisamente essa camada superior da sociedade urbana testemunha desses actos que aqui me interessaria muito esquematicamente abordar sob três pontos de observação: estatuto e ofícios; parentescos; escalas de percepção espacial e difusão/origens geográficas.

na oligarquia concelhia como as cartas de foral estatuem? As variações de escala e centralidade entre os concelhos têm impacto aparente na sua representatividade, podendo por exemplo pensar-se que a polaridade social de Évora se mede pela maior frequência relativa de milites. Será que a aparente uniformidade que resulta da reconstrução do sistema social urbano em função de famílias de forais – mesmo que temperada a abstração jurídica pela substituição do conceito de “família de forais”, pelo dos esquemas de transmissão, ainda assim responsáveis pela atribuição do mesmo ordenamento jurídico a municípios de escala muito diferenciada e por isso com realidades sociais muito diferentes – recobre diferenças substantivas na quantidade de indivíduos a incluir dentro da cavalaria urbana? Ou, pelo contrário, a designação não abrange todos os que gozam do foro de cavaleiro, sendo, no entanto, a aceitar como boa esta hipótese, difícil explicar o porquê de o qualificativo de miles ficar reservado apenas a alguns dos oligarcas. Numa das mais precoces de entre estas doações, a do concelho de Beja a S. Vicente de Fora de S. Cucufate8, a coluna dos que “foram sesmeiros” (fuerunt e não sunt, o que remete para o próprio processo de divisão da terra aquando da reorganização dos anos anteriores, seguramente posterior a 1249) apresenta dois cavaleiros (milites) e um escudeiro (armiger), de entre nove personagens, o que parece ir de encontro à primeira das possibilidades que apresentei: a da não indexação automática, no Alentejo dos meados de Duzentos, do estatuto social no interior dos municípios às velhas distinções sociais contidas no ordenamento jurídico foraleiro.

As observações que acabo de fazer cruzam com outra variável conexa em observação, a dos ofícios. Neste caso notaria em primeiro lugar uma muito previsível variedade no que respeita à composição do quadro de oficiais, em função da dimensão e importância do município, ou para ser mais preciso, das funções centrais que ele consegue chamar a si. É isso que explica que o quadro de oficiais de Évora, logo seguido pelo de Beja, se destaquem entre todos os outros, pela diferenciação e número, no que contrastam, por exemplo, com o pequeno núcleo de Marachique, que ainda assim apresenta, além do alcaide e juízes, dois sesmeiros e um tabelião9. A importância dos sesmeiros no oficialato concelhio da região é aliás um dos traços individualizadores do sistema social do Alentejo central neste período. Parecendo evidente, pela premência do processo de divisão da terra após a conquista, o facto não o é, já porque noutros lugares, como em Castela ou Aragão, a própria coroa assegurava contemporaneamente a maior parte das despesas da distribuição das terras conquistadas, já porque pela mesma época, no próprio reino português, persistem formas arcaicas, como a presúria, de apropriação da terra. Isso mesmo se infere do diploma de Afonso III, dirigido à governação de Évora, em que se determina

8 Torre do Tombo, Cónegos Regrantes, Mosteiro de São Vicente de Fora, 1ª Incorporação, maço 3, nº 16.

9 Torre do Tombo, Gavetas, Gaveta XII, m. 5, nº 25.

“Que não valham as presúrias das terras desde que se filhou Serpa aos mouros acá”10, texto que reputo chave para compreender a natureza da transformação política em curso na região, por na prática colocar o controle do processo de repartição nas mãos dos sesmeiros, isto é, da oligarquia urbana, retirando-a das mãos do rei, que renuncia a ela como havia já renunciado pelos forais que estava nesse momento a conceder, à almotaçaria, isto é, ao controle dos mercados. Daí o seu peso nas listas de testemunhas espelhando a centralidade da função nos núcleos urbanos em que são protagonistas, assim como a centralidade dos próprios concelhos no processo de distribuição da terra. Por isso, afinal, é que o rei precisa de transformar a criação de senhorios em proveito dos seus clientes e vassalos, nessas décadas de 50 e 60, em processos negociais envolvendo todo o topo da sociedade concelhia, precedidos por pedidos, nem sempre bem-sucedidos e mais ou menos instantes às oligarquias que as governam. Nesse sentido não é o rei o instituidor desses senhorios, mas em última análise os próprios concelhos, sob o olhar atento dos sesmeiros. O próprio cargo poderá assim servir para abordar uma outra questão, a de perceber os usos que as famílias fazem destes ofícios: será que existe um cursus honorum? Que indícios sobrevivem de fenómenos de oligarquização?

O caso mais evidente para introduzir o tópico da carreira será talvez o de Pedro Soares da Costa. Aparecendo à cabeça dos nove sesmeiros de Beja em 125411, no mesmo ano da concessão do foral, pelo que se pode inferir ter tido uma função determinante na divisão da terra associada ao processo de refundação de Afonso III, do ponto de vista do termo, surge seis anos depois, em Janeiro de 1260, a testemunhar em Marachique no lugar do alcaide (o primeiro), embora não sendo referenciado como tal, e em Março do mesmo ano, a demarcar os termos de Évora, Beja e Moura com o de Portel, já como alcaide de Beja12. No primeiro caso o acto era a benefício do chanceler Estevão Eanes, no segundo de D. João Peres de Aboim que ainda não era mordomo-mor. O percurso ascensional leva-o assim não só à liderança da coqueluche do programa urbano de Afono III, tal como a crónica de 1419 evidencia, como a participar numa esfera política muito próxima da corte.

Embora não possamos seguir com tanta precisão outros percursos, também porque as homonímias e a falta de apelidos identificadores tornam difíceis as reconstruções genealógicas, talvez não se trate de um caso isolado.

Creio aliás que a pista dos parentescos poderá reforçar esta ideia. Assim Pedro Soares da Costa é apenas uma de quatro personagens diferentes com o mesmo

10 PEREIRA, Gabriel – Documentos Históricos da cidade de Évora. Évora: Typographia da Casa Pia, 1885 [aliás INCM, 1998], doc. XVII, p. 24.

11 Torre do Tombo, Cónegos Regrantes, Mosteiro de São Vicente de Fora, 1ª Incorporação, maço 3, nº 16.

12 Respectivamente, Torre do Tombo, Gavetas, XII, m. 5, nº 25 e Livro dos Bens de D. João de Aboim, ed.

Anselmo Braamcamp FREIRE e Pedro de AZEVEDO [reimpressão fac-similada]. Lisboa: Câmara Municipal de Portel, Edições Colibri, 2003, doc. V.

apelido envolvidas nestas doações/demarcações: na mesma demarcação do termo de Portel em 1260 em que ele aparece como alcaide de Beja13, o alcaide de Évora é Estevão Peres da Costa (filho do anterior?), o que significa que a mesma família detém uma posição chave nos dois principais e mais antigos núcleos urbanos da região; na demarcação também de Portel feita em Janeiro de 126514 ressurge Estevão Peres da Costa ao lado de mais dois membros da mesma família, Martim Mendes e João Afonso. O facto de não partilharem nem nomes próprios nem patronímicos sugere uma família suficientemente alargada, com uma representação dispersa à escala regional, num arco que vai de Évora, a norte, a Marachique, no Campo de Ourique, a sul. O problema do estatuto dos Costa parece ser, no entanto, ambíguo, uma vez que, como referi, J.A. Pizarro os dá como uma das linhagens medievais não representadas nos LL, o que os colocaria nos escalões mais obscuros da nobreza e não na cavalaria urbana. A permeabilidade dos novos centros urbanos a famílias provenientes da nobreza, disponíveis para operar como “vizinhos”, isto é, como cavalaria urbana, atinge aliás membros de famílias mais importantes do que os Costa. É o caso de Vasco [Martins] Farinha que aparece também nas demarcações do senhorio de D. João de Aboim como vizinho de Moura15 e de onde virão os Góis, acompanhado de Vasco Martins [de Moura], seu cunhado (casado com Teresa Pires Farinha) de onde vêm os Moura. Creio que aqui é a aceitação mútua do estatuto de vizinhança que explica a integração, no que se estabelece vivo contraste com a operação de natureza senhorializante em curso no mesmo período a benefício de uma nobreza de corte e em que os Costa e os Farinha participam do lado dos municípios. Talvez o maior protagonismo social destes últimos, porém, ajude a explicar porque se estabeleceram em Moura, até há poucas décadas um hisn do território da cidade de Beja, portanto um degrau abaixo na escala de centralidade e também na própria dimensão, e onde por isso mesmo a competição pela terra e pelo poder seria menor. Pode ainda pensar-se que o protagonismo imenso que o irmão de Vasco Pires Farinha, Afonso Pires Farinha, tivera (e tinha) precisamente nessa área da fronteira com o Islão enquanto freire do Hospital, o que resultará na fundação do Marmelar, numa posição dominante sobre a falha da Vidigueira e Portel, explica o assentamento deste ramo dos Góis/Farinha em Moura, ao mesmo tempo que deixava nas mãos da cavalaria urbana a cidade principal de Beja. Do que acabámos de dizer se inferem também as dificuldades em reconstruir as famílias da oligarquia urbana, a não ser quando esta se sobrepõe localmente à nobreza. Um dos indícios poderá estar nos apelidos toponímicos. É o caso, outra vez na demarcação de Portel de Janeiro

13 Livro dos Bens de D. João de Aboim…, doc. V.

14 Livro dos Bens de D. João de Aboim…, doc. XII, p. 17.

15 PIZARRO, José Augusto Sottomayor – Linhagens Medievais Portuguesas…, Vol. 2, pp. 471-473, Vol.

III, p. 4.25.

de 1265, dos irmãos Martim Martins de Coina e Lourenço Martins de Coina que nos permitem introduzir aqui brevissimamente um último patamar de observação fragmentária, o das origens geográficas e escala de percepção espacial.

Os apelidos toponímicos que servem de identificadores a algumas personagens dão pistas sobre a origem geográfica destes grupos urbanos. Embora reservando o levantamento sistemático para outro lugar, importaria aqui salientar a recorrência do apodo “de Santarém” e ainda, numa lista já citada por tão relevante, a que acompanha a doação de S. Cucufate em 1254, de quatro indivíduos com apelido toponímico (entre nove confirmantes, para além dos sesmeiros). São eles Martim Pais de Montalvão, Martim Filho de Castelo Branco, João Esteves de Leiria e Martim Peres da Arruda. Um dos sesmeiros é de Santarém. À excepção do de Leiria, todas as outras proveniências remetem para uma articulação próxima do movimento a povoadores vindos do vale do Tejo, médio e baixo, em particular das zonas que durante o século anterior, o sucessivo à conquista de Santarém, tinham estado mais expostas à guerra com o Islão almóada. Se esses indícios forem suficientemente seguros, a origem dos povoadores pode servir como indicador para a definição do modelo social em instalação no Alentejo central em meados de Duzentos: uma sociedade urbana dominada por estratos intermédios nem todos da cavalaria urbana, em que pontificam algumas famílias de estatuto difícil de definir, pela proximidade à nobreza, e muitas delas com uma notável plasticidade regional, sendo capazes de demonstrar presença em extensas áreas territoriais, desde o vale do Tejo às áreas de conquista muito recente e de frouxa organização, que se estendem a sul de Beja, até ao Campo de Ourique. A essa plasticidade não é alheia a própria natureza dos territórios conquistados, a relativa debilidade demográfica que os caracteriza e a inerente extensão dos termos concelhios que substituem os territórios das mudun islâmicas, já notada por Alexandre Herculano e por Ruy de Azevedo. Ela manifesta-se aliás, de forma evidente, nos próprios processos demarcatórios, pelo número de protagonistas envolvidos, concelhos e indivíduos que os representam, na monumentalidade dos termos resultantes e na escala de percepção espacial implícita, podendo medir-se as distâncias por jornadas de viagem, num claro contraste com os padrões setentrionais. É toda a espessura territorial da fronteira profunda com o Islão do longo século XII que aqui se renova através de uma reorganização territorial à escala da vertente ocidental do Gharb, contraponto meridional ao processo de inquirição a que o Norte é pela mesma época submetido.

No documento Governar a Cidade na Europa Medieval (páginas 172-176)