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EM BUSCA DE REGULARIDADES SOBRE O SER PROFESSOR

2 SER PROFESSOR – UMA HISTÓRIA NO TEMPO E NO

2.3 EM BUSCA DE REGULARIDADES SOBRE O SER PROFESSOR

numa ocupação de tempo integral, cujos profissionais dedicam a ela parte de suas vidas, e dar visibilidade e contornos mais nítidos á profissão.

Sabemos que as representações sociais são historicamente construídas, dependem da memória, estão estreitamente vinculadas aos diferentes grupos socioeconômicos, culturais, étnicos e às diversas práticas sociais. Então investigar as representações sociais de alunos de Pedagogia – “professores em formação” -, sobre o fazer docente da UFRN, significa procurar compreender como vão sendo construídas as representações, compreender o processo de sua constituição, o que envolve análise sobre como os conhecimentos de vida; saberes vão sendo construídos em determinados contextos sociais e no próprio processo formativo. As representações, como fenômenos complexos, cujos conteúdos devem ser cuidadosamente destrinchados e referidos aos aspectos do objeto representado (JODELET, 2001), permitem que se desprendam delas os múltiplos processos que concorrem para sua elaboração e para sua consolidação como sistemas de pensamentos que sustentam as práticas sociais.

2.3 EM BUSCA DE REGULARIDADES SOBRE O SER PROFESSOR

Ao longo desse percurso, foram-se forjando legitimidades, maneiras de ser e de fazer docentes que continuam a orientar, ainda hoje, as práticas e os sentidos atribuídos à profissão. Apoiados nessas lições da história e em pesquisas recentes que se debruçam sobre essa complexa relação entre o professor e o seu fazer da profissão, procuraremos inferir sobre a força dessas proposições na configuração do ser professor. Não pretendemos, nesse primeiro momento, por em evidência a maneira como os alunos em formação docente de nossa pesquisa incorporam e ressignificam essas estruturações. Isso será feito ao longo do trabalho quando for pertinente. Nossa intenção, por hora, é sistematizar essas regularidades historicamente.

Duas constituições que emergem ao longo da história, parecem continuar presentes nas representações do ser professor. A primeira, associada ao processo de feminização da docência iniciada nos fins do século dezenove, diz respeito às questões de gênero. Aqui o docente é marcado por uma naturalização do feminino, pela transposição de disposições consideradas socialmente como femininas para o trabalho docente. O ser professor aparece, então, como um profissional do cuidado e o seu trabalho muito próximo à maternagem e ao trabalho doméstico.

O trabalho realizado por Cerisara (2002) com professores da educação infantil (creche e pré-escolas) corrobora com o que estamos afirmando. Nessa pesquisa, a autora debruçou-se sobre a dinâmica da relação casa-creche-escola como espaços onde se desenvolvem ações de cuidado e educação, procurando entender como as práticas femininas domésticas contaminam as práticas profissionais das mulheres que trabalham em instituições de educação infantil. Entre outros achados, a pesquisa aponta para o fato de que as instituições de educação infantil potencializam o choque entre o público e o privado no que se refere à educação de crianças e que a relação entre as atribuições da família, da creche e da escola ainda são obscuras. Mostra ainda que as professoras vivem conflitos quanto aos papéis que desempenham nestes espaços, contaminando o seu trabalho com práticas femininas domésticas. O depoimento das professoras da pesquisa corrobora com a existência deste vinculo estreito entre a casa (espaço privado) e a escola (espaço público). Segundo a autora, os depoimentos “[...] confirmam que o cuidado com a criança pequena é considerado uma função feminina dentro da família, e trabalhar com crianças pequenas, mesmo que em instituições educativas públicas, acaba sendo ainda hoje visto como uma extensão dessa função” (CERISARA, 2002, p.44).

Em uma pesquisa realizada com quatro professores de uma escola primária da rede pública de São Paulo, Carvalho (1999) procurou estudar as práticas do cuidado desenvolvidas nessa escola e como elas eram definidas e legitimadas. Procurou compreender também como essas práticas se encaixam no interior do trabalho docente, como elas se articulavam com os conceitos de feminilidade e masculinidade no processo de construção de identidade desses professores. Carvalho conclui que as práticas do cuidado não são uma mera transposição de comportamentos maternais, domésticos ou sentimentais para o trabalho docente. “[...] não se tratava de uma contaminação, uma confusão de papeis, nem tão pouco uma combinação” (CARVALHO, 1999, p.231-232), porque mesmo as professoras que mais se mostram envolvidas com essa prática sabiam separara bem esses papéis. Segundo a autora,

[...] foi à existência de uma prática pedagógica própria do primário, construída sobre os pressupostos que subsidiam também as práticas da maternidade, uma matriz cultural comum tanto aos ideais de boa professora, quando de boa mãe e que remete a uma concepção de infância, um conceito de “cuidado” infantil e a normas sobre a adequação das mulheres a essa tarefa, todas elas ideais sociais e historicamente construídas (CARVALHO, 1999, p.232).

Esse ideal de professor, continua a autora, era produzido e reproduzido no interior da própria escola e fazia parte de sua cultura. Além do mais, essa matriz cultural comum articula cuidado infantil e feminilidade e enfatiza as dimensões afetivas e relacionais. No primeiro caso, causando embaraço para os homens desenvolverem essas atividades, no segundo, associando as dimensões intelectuais à masculinidade.

Barbosa (2002), em uma investigação com alunas-professoras de um instituto de ensino superior de Natal, focaliza as formas como as questões de gênero estariam implicadas nos aspectos discursivos e cognitivos constitutivos da ressignificação das representações de professoras em formação sobre a prática docente. Desse modo, a autora buscou compreender a repercussão da feminização do magistério no discurso sobre o cotidiano das salas de aula das professoras das séries iniciais e, por outro, no papel que o processo formativo exerce na ressignificação dessas representações. Em seu trabalho, foram identificados estereótipos da magistra-mater e magistra-crudelis que, para Barbosa, foi fundamental “para compreender, por um lado, as razões do fazer pedagógico daquelas professoras e, por outro, possibilitar a releitura da história da educação do Brasil, com ênfase no universo feminino docente a partir da perspectiva dos próprios sujeitos” (2002, p.135).

Para a pesquisadora, tais estereótipos demonstraram que a prática docente além de ser influenciada pelas teorias, tradições pedagógicas e objetivos político- educacionais mais amplos, é também determinada pelo gênero, permitindo que as relações de poder e as diferenças de saberes sobre o universo feminino e masculino incidam sobre as escolas e fazeres que as professoras alunas realizam no dia a dia das suas salas de aulas.

Mazzotti (2008), partindo de uma pesquisa anterior com professores das primeiras séries do ensino fundamental, identificou o núcleo central da representação social desses educadores composto por um único elemento a dedicação. Assim, buscando aprofundar essa investigação, desenvolve um estudo com 30 professoras das séries iniciais do ensino fundamental de escolas públicas do Rio de Janeiro.

Essa investigação busca compreender quais os sentidos atribuídos a dedicação. Em suas conclusões identifica que os sentidos atribuídos a dedicação parecem estar ancorados no feminino, no cuidar, no proteger. Na rede de significados que envolvem o objeto, destacam-se os sentidos associados à maternidade. São inúmeras as associações

feitas pelas professoras investigadas como a própria experiência como mães e com a necessidade de suprir, nos alunos, a falta da família. O fato de que eles são crianças que, segundo elas, não tem atenção suficiente dos pais, ajuda a despertar sentimentos maternais. Ao se ancorar na maternidade, a dedicação passa a partilhar sentidos tradicionalmente associados àquela, como dar tudo de si, o afeto incondicional e todos demais valores que tornam a maternidade “sublime”.

Diante dos resultados explicitados, podemos perceber claramente que embora autora não tenha tocado diretamente na relação gênero e trabalho docente, essa relação é claramente identificada nos seus achados. Uma vez em que é confirmada nos discursos das professoras a docência como uma extensão do lar, uma associação clara entre docência e maternidade.

Fontana (2000) prefere os termos redimensinamento e ressignificação de papéis para explicitar essa relação. Procurando compreender como nos tornamos professoras, Fontana se debruçou sobre os discursos, as interlocuções e as construções realizadas por seis professoras e mostrou, entre outras coisas, que a constituição da mulher professora não se dá por uma mera continuidade, por uma transposição dos papéis da mulher dona de casa para a profissão. Ao contrário, “[...] redimensionamentos foram sendo produzidas nos seus modos de viver cotidianamente a própria condição feminina e profissional” (FONTANA, 2000, p.88). A mulher dona de casa e a professora, embora saibam distinguir seus papéis, fundem-se numa só pessoa: “A mulher-esposa, a mulher- filha e a mulher-professora constituíram-se simultaneamente e reciprocamente” (FONTANA, 2000, p.88).

Como podemos observar, as pesquisas recentes demonstram que a naturalização do feminino, da associação entre trabalho docente e maternagem ainda são uma força estruturante do ser docente. Continuam a orientar escolhas e definir práticas e significados.

Outro elemento estruturante do ser docente, cuja construção se fez nos interstícios do processo de feminização do magistério primário, nos remete à lógica da predestinação. O ser professor, por essa lógica, aparece como uma profissional por vocação, como aquele que possui um dom ou qualidades inatas para o exercício da profissão, como chamado a desempenhar uma missão humanitária e social. A vocação, o dom e o caráter missionário atribuído ao professor serviram de apoio para justificar a entrada das mulheres no magistério, naturalizando a relação mulher-mãe-professora por

vocação e, ainda hoje, orientam as escolhas e a permanência dos professores nessa profissão.

Segundo Valle, “[...] as motivações para o ingresso no magistério, evocadas pelos professores interrogados, permaneceram no campo dos valores altruístas e da realização pessoal, estando fortemente ancoradas na imagem de si e na experiência cotidiana [...]” (VALLE, 2006, p.183). Ter características inatas é indispensável para a profissão (amor, o cuidado, o gosto pelas crianças...), é como se ser chamado para o seu exercício.

Ribeiro (2003), por sua vez, também encontrou a força da vocação nos discursos das professoras de 1º e 4º séries de escolas públicas de Viçosa (MG). Para além de uma leitura tradicional do uso da palavra, a autora preferiu interpretá-la numa perspectiva polissêmica, a partir das diferentes acepções utilizadas e dos sentidos aí subjacentes. No discurso das professoras a palavra vocação tanto apontava para uma idealização do magistério, construída a partir de representações sociais circulantes sobre a docência (uma regularidade estruturante), para um jeito de ser professor (habilidades, dons), como para ocultar a pressão cultural exercida sobre o professor e suas escolhas, já que sua opção se deveu a interiorização de papéis sociais, especialmente os associados à mulher. Para ela, a justificativa da escolha por vocação, por estar tão incorporada ao discurso das professoras, sintetiza tudo e não diz nada: “De algum modo é melhor dizer que tinha, ou tem, vocação do que refletir e buscar relações que estão imbricadas na escolha do magistério” (RIBEIRO, 2003, p.158).

Em pesquisa recente, Lira (2007) procurou analisar a configuração de identidade do professorado do ensino fundamental da região metropolitana de Natal. Para o autor, a representação social do ser professor para os sujeitos pesquisados estaria assentada sobre três conjuntos singulares de elementos ou facetas, que concorrem para dar uma imagem e um significado a essa profissão. A faceta do desvelo é a que se apresenta como campo de maior negociação de sentidos. Ao analisar essa faceta “[...] destaca possuir uma relação mais estreita com a história da profissão, com as disputas científicas e com a formação docente [...]” (LIRA, 2007, p.192-193). Entre os elementos, evidencia-se, além do amor e da doação, o componente da missão como base de compreensão da docência. Para o autor, essa missão aparece como tarefa educativa, como missão pedagógica, como ato de educar e cuidar, de promover gerações e mesmo negativamente como missão difícil.

Campos (2008), ao acessar em sua investigação a representação social da docência construída pelos professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental de Queimadas-PB, tinha como objetivo compreender que representação social alimentava o ser professor para esses profissionais, identificar as dimensões e os elementos dessa representação e sua função de identidade.

Em suas considerações o autor aponta que o ingresso no magistério, o tornar-se professor para os professores da pesquisa, não se constituía como uma decisão livre e racional, nem como uma determinação absoluta dos espaços sociais nos quais estão imersos. Ela é produto de um habitus (religioso, familiar, provinciano) que permite compreender e incorporar as regras do jogo da vida social e produzir estratégias e os investimentos necessários para se integrar nesse jogo com relativo sucesso. Vocação, acaso e necessidade são motivos plausíveis para essa escolha ajustada e coerente com o jogo da vida social.

O autor conclui ainda que a representação social do ser professor construída por esse grupo de professores investigados se constitui em dimensões interligadas que se complementam para dar sentido ao seu saber e ao seu fazer. As dimensões do amor e do cuidado, associadas às dimensões da ajuda e da doação existem como demarcatórias da identidade docente, uma vez que garante para cada um e para todos os princípios de reconhecimento e de ação para aqueles profissionais. A naturalização do feminino e a lógica da predestinação que, como vimos, alimentam, ainda, as representações do ser professor e servem de referência para a construção de suas identidades profissionais, aparecem como representações hegemônicas do ser professor, construídas ao longo do processo de constituição e de profissionalização da docência no Brasil. Aparecem mesmo como estruturas estruturantes de ser professor.

Estamos sempre chegando e partindo. È justamente na certeza da chegada que alicerçamos os critérios para partida. É porque estamos sempre chegando e partindo que podemos avançar no universo do desvelamento do saber, orientados pela virtude de permanecer no constante movimento de ir em busca do que nos realiza e, apesar disso, nos lançar na direção da chegada-ponto-de-partida (Selma Garrido Pimenta,2006)

3 CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA: TRILHANDO OS CAMINHOS DA