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2 SER PROFESSOR – UMA HISTÓRIA NO TEMPO E NO

2.2 PROCESSO DE FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO

Tratamos o processo de feminização para compreendermos a notória presença do gênero feminino em detrimento do gênero masculino, nos cursos de pedagogia e consequentemente no ensino das etapas da educação infantil e nas series iniciais do ensino fundamental. Por isso, entendemos que essa discussão traz grande contribuição na compreensão da constituição identitaria do ser professor para esses alunos em formação.

O processo de feminização do magistério no Brasil é evidenciado em diversas pesquisas (ALMEIDA, C. 1991; ALMEIDA, J. 1998; BUENO, CATANI e SOUSA (Orgs.), 2000; CATANI et al (Orgs.), 2000; HYPÓLITO, 1997; LOURO, 2000 ) como fator essencial à compreensão do trabalho docente no ensino fundamental. A feminização é, então, considerada não só como uma característica da forma de povoação desse nível de escolaridade, como é também compreendida como elemento definidor da própria docência desenvolvida desde então.

O fenômeno do processo de feminização do magistério acompanhou o desenvolvimento da industrialização e urbanização próprias da formação social e econômica capitalista. “Há que se considerar, por dentro desse processo, características culturais próprias da constituição histórica da mulher como ser social que permitiram a consolidação desse perfil do professorado” (HIPÓLITO, 1997, p.55). A mulher tornou-

se participante do mundo do trabalho, especialmente na função docente, não só porque foi submetida, mas também porque construiu essa possibilidade. As ações que incentivaram o processo de feminização do magistério desenvolveram-se num tecido favorável, com características culturais adequadas e, sob certos aspectos, interessantes para as mulheres.

Entre os finais do século XIX e início do século XX, a docência pode ter representado, para algumas mulheres das classes mais pobres da sociedade, uma oportunidade de trabalho intelectual no mercado urbano, o que as distinguia de outras mulheres que exerciam uma gama variada de ofícios manuais, sobre os quais pesava o estigma e o preconceito, devido às relações estabelecidas, naquele contexto social, entre o trabalho manual e a escravidão (LOURO, 2000).

Apple (1995) afirma que o magistério passou a significar, para muitas mulheres, a possibilidade de ascensão social. Para esse autor, a expansão do ensino elementar elevou o número de mulheres à profissão e o magistério tornou-se feminino em parte porque os homens abandonaram. A formalização do ensino e dos currículos e as novas exigências impostas à profissão, como a certificação e o maior controle teriam, segundo o autor, levado os homens a procurar emprego em outro lugar. Esse movimento teve profundas implicações para a profissão docente. Ele possibilitou que a profissão, agora assumida pelas mulheres, passasse a ser exercida por elas como atividade principal, ao contrário dos homens que tinham como uma atividade secundária, exercida nos interstícios de outros postos de trabalho mais rentáveis. Frente a essas condições de mercado “[...] a administração escolar se voltou cada vez mais para as mulheres. Em parte, isso foi resultado de luta das próprias mulheres. [...] Mas, em parte, isso foi resultado do capitalismo também” (APPLE, 1995, p.60).

Ao analisar o fenômeno da feminização no magistério, Almeida (1991) explicita aspectos considerados importantes para compreensão do fenômeno:

- Os homens não abandonaram a educação, mas as salas de aula, o que caracterizaria uma noção e distribuição de poder. Os homens saíram da sala de aula porque lhes são oferecidas oportunidades mais vantajosas, o que tornava a docente desinteressante;

- outro aspecto é a possibilidade ou crença na mobilidade social, que atraiu os homens razoavelmente instruídos para novas funções, e para as mulheres o magistério era uma das poucas vias possíveis;

- Outra argumentação é o fato do magistério ser uma das poucas ocupações aceitas pelas mulheres, uma vez que era possível conciliar com as atividades domésticas, o que não era possível em outras profissões;

- E, por fim, autora destaca as virtudes necessárias para um funcionário público

que se enquadra com maestria no estereótipo que o século XIX criou para as mulheres5. Hipólito (1997) ao discorrer sobre a temática elucida alguns aspectos que na sua

compreensão possibilitaram o ingresso maciço das mulheres na profissão docente, como podemos destacar:

a proximidade das atividades do magistério com as exigidas para as funções de mãe; as „habilidades‟ femininas que permitem um desempenho mais eficaz de uma profissão que tem como função cuidar de crianças; a possibilidade de compatibilização de horários entre o magistério e o trabalho doméstico, já que aquele pode ser realizado em um turno; a aceitação social para que as mulheres pudessem exercer essa profissão (Hipólito, 1997, p.55).

Assim, de acordo com Almeida (1998), a feminização do magistério acontece:

Num momento em que o campo educacional expandiu-se em termos qualitativos. A mão de obra feminina na educação principiou a revelar-se necessária, principalmente tendo em vista os impedimentos morais dos professores educarem meninas e recusa da sociedade à coeducação dos sexos, considerada perigosa do ponto de vista moral. Assim, aberta possibilidade das mulheres poderem ensinar, produziu- se uma grande demanda pela profissão de professora (ALMEIDA, 1998, p.109).

Considerando os aspectos apontados, o processo de feminização do magistério não pode ser pensado como uma decisão individual, mas como um reflexo do mercado de trabalho disponível, síntese de valores sociais que encaminhavam a mulher para determinadas carreiras, que não significassem barreiras para o casamento. Estes valores sociais estariam extremamente vinculados à imagem de mãe.

A feminização do magistério foi acompanhada de perto por um conjunto de discursos que procuram justificar a docência como atividade feminina. Esses discursos procuravam associar o desempenho profissional a condições femininas como à domesticidade e à maternidade. Construiu-se, assim uma representação da docência como espaço do feminino, como um lugar próprio da mulher, uma vez que cuidar de

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Para Almeida (1991), o estereótipo da mulher no século XIX apresentava as seguintes características: disciplina, submissão, trabalho sem tréguas, lealdade e pureza.

crianças e educar era tarefa feminina. Assim, certas características atribuídas à feminilidade foram incorporadas à docência, abrindo espaço para que as mulheres ocupassem a profissão, ao mesmo tempo em que se justificava e reforçava sua presença no magistério.

A incorporação desses atributos à docência serviu ao Estado, mas serviu também às mulheres. Numa sociedade que limitava a vida da mulher ao ambiente doméstico e ao trabalho de cuidar e educar os filhos, discurso amplamente difundido pela Igreja Católica, o magistério aparecia como uma possibilidade de se transpor as barreiras do lar e ganhar o espaço público, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, desenvolvem um trabalho que se assemelha ao já desenvolvido em casa, o cuidar da educação das crianças e de sua proteção física num ambiente seguro e restrito aos muros da escola. Além disso, o magistério representava, para elas, uma alternativa ao casamento e a ocupações de menor prestígio (costureira, modistas, parteiras, etc.).

O ideário da vocação, o ideário do ato de ensinar, entendido como sacerdócio, como missão, o que considera o professor como aquele que professa, é ago anterior á feminização do magistério6. Mas o magistério como profissão feminina coaduna essas relações, “pois se constitui numa combinação entre vocação/ ensino/ maternidade/ funções domésticas” (HIPÓLITO, 1997, p.57).

Nesse sentido, Mello (1982 apud Barbosa, 2002) considera que esse processo de feminização acarretou transformações no plano simbólico da profissão docente, além de repercutir também na própria prática assumida pelas professoras. Férnandez (1994) observa que a predominância das mulheres na carreira docente dá a ideia da escola para as primeiras séries como espaço para no qual se deve guardar crianças. Essas transformações colocaram, então, a docência como profissão de mulher, como a sua função “natural” fora do universo doméstico.

Com a feminização da profissão docente, vários estereótipos sobre a prática pedagógica das mulheres-professoras foram criados, a fim de tornar o magistério uma atividade permitida e indicada para as mulheres (LOURO, 1989). Esses estereótipos, muitas vezes, desqualificam o caráter profissional e regulam a prática docente das mulheres-professoras.

6 Este ideário parece ter sido fundamental para a aceitação da mulher no desempenho da atividade

docente e ainda continua sendo: “... recentemente, diante de uma constatação do baixo número de profissionais para atender ao crescente número de salas escolares – pasmem! -, o governo francês permitiu que, apenas com o mínimo exigido, mulheres-mães de três crianças ou mais, poderiam ser professoras das primeiras classes” (LOPES apud HIPÓLITO, 1997, p.57).

Além disso, Mello (1982 apud Barbosa, 2002) e Férnandez (1994) chamam a atenção para o uso do processo de feminização como justificativa para a depreciação salarial da profissão. Férnandez (1994) observou que outras profissões como a Pediatria e a Psicologia Infantil, por trabalharem com crianças (embora a feminização dessas profissões não tenha sido tão intensa como no magistério), são igualmente desvalorizadas em relação às demais especialidades na área da saúde. Nesse sentido, Mello (1982) lembra:

A divisão sexual do trabalho tem por trás uma divisão social que serve a interesses econômicos, a qual produz e ajuda a manter uma representação profissional que favorece a distribuição desigual de salário e prestigio para profissões masculinas e femininas (MELLO, 1982 apud Barbosa, 2002, p.87).

Essa desigualdade também ocorreu dentro da própria área docente, na qual apesar de a mulher ter assumido a função da instrução, o domínio do saber ainda continuou sendo masculino, conferindo ao ensino das séries iniciais o sentido particular de ser apenas uma etapa da socialização, com funções meramente introdutórias aos conhecimentos, ainda de domínio masculino, nos níveis superiores de ensino (ALMEIDA, 1991, p.64).

Isso ocorreu porque a feminização do magistério acompanhou a reprodução da simbologia familiar. Ou seja, a falta de qualificação das mulheres para o exercício do magistério levou a estabelecer correspondência entre a professora e a mãe, a escola e o lar. Nesse sentido, podemos afirmar que, hoje, na prática escolar em nosso País, predomina uma visão maternal e feminina da docência nas séries iniciais de escolarização, colocando em relevo aspectos formadores, relacionais, psicológicos, intuitivos e emocionais da profissão, frente àqueles aspectos socialmente identificados com a masculinidade, tais como a racionalidade, a impessoalidade, o profissionalismo, a técnica e o conhecimento cientifico.

Não se trata aqui de estabelecer uma hierarquia de valor entre esses aspectos, uma vez que todos eles são constitutivos do trabalho docente, embora, socialmente, sejam valorizados diferenciadamente, com notória vantagem para aqueles associados à masculinidade (CARVALHO, 1994; 1995), mas, antes, destacar a intensa associação entre as características tidas como femininas e o ensino dos anos iniciais.

O processo de profissionalização da docência no Brasil foi acompanhado de perto por igual processo de feminização de seus quadros. A presença crescente das

mulheres nessa profissão contribuiu de sobremaneira para transformar o magistério numa ocupação de tempo integral, cujos profissionais dedicam a ela parte de suas vidas, e dar visibilidade e contornos mais nítidos á profissão.

Sabemos que as representações sociais são historicamente construídas, dependem da memória, estão estreitamente vinculadas aos diferentes grupos socioeconômicos, culturais, étnicos e às diversas práticas sociais. Então investigar as representações sociais de alunos de Pedagogia – “professores em formação” -, sobre o fazer docente da UFRN, significa procurar compreender como vão sendo construídas as representações, compreender o processo de sua constituição, o que envolve análise sobre como os conhecimentos de vida; saberes vão sendo construídos em determinados contextos sociais e no próprio processo formativo. As representações, como fenômenos complexos, cujos conteúdos devem ser cuidadosamente destrinchados e referidos aos aspectos do objeto representado (JODELET, 2001), permitem que se desprendam delas os múltiplos processos que concorrem para sua elaboração e para sua consolidação como sistemas de pensamentos que sustentam as práticas sociais.

2.3 EM BUSCA DE REGULARIDADES SOBRE O SER PROFESSOR

Ao longo desse percurso, foram-se forjando legitimidades, maneiras de ser e de fazer docentes que continuam a orientar, ainda hoje, as práticas e os sentidos atribuídos à profissão. Apoiados nessas lições da história e em pesquisas recentes que se debruçam sobre essa complexa relação entre o professor e o seu fazer da profissão, procuraremos inferir sobre a força dessas proposições na configuração do ser professor. Não pretendemos, nesse primeiro momento, por em evidência a maneira como os alunos em formação docente de nossa pesquisa incorporam e ressignificam essas estruturações. Isso será feito ao longo do trabalho quando for pertinente. Nossa intenção, por hora, é sistematizar essas regularidades historicamente.

Duas constituições que emergem ao longo da história, parecem continuar presentes nas representações do ser professor. A primeira, associada ao processo de feminização da docência iniciada nos fins do século dezenove, diz respeito às questões de gênero. Aqui o docente é marcado por uma naturalização do feminino, pela transposição de disposições consideradas socialmente como femininas para o trabalho docente. O ser professor aparece, então, como um profissional do cuidado e o seu trabalho muito próximo à maternagem e ao trabalho doméstico.