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Caminhos teóricos e metodológicos

3. Emparelhando disciplinas: conclusões

Na exposição dos pontos pertinentes para compreensão da teoria gerativa, observamos que Chomsky, ao voltar a atenção para a gramática interiorizada, mental, cerca estreitamente seu objeto de estudo, evitando qualquer compromisso com as questões sociais inerentes à língua. De outra parte, tanto Labov quanto Bourdieu,

evitando comungar na cartilha gerativista, ocupam-se essencialmente da relação entre língua e sociedade.

O distanciamento teórico entre gerativismo, de um lado, e sociolinguística e sociologia da linguagem, de outro, fica bem marcado no princípio de construção dos modelos. Mas essa diversidade não impede o diálogo entre os campos e nem mesmo limita a aproximação ou emparelhamento dessas teorias.

É bem verdade que os primeiros estudos de Bourdieu se abrem ao diálogo estreito com a gramática gerativa. O conceito de habitus surge como princípio – estruturado mentalmente – gerador e unificador das práticas sociais. Essa proposta mentalista cedeu lugar ao conceito de habitualidade corporificada. Nessa nova composição, o habitus passa a ocupar a mente e o corpo, de tal modo que os “estados conceituais de desejo e de intenção transformam-se na inclinação da postura corporal” (cf. Hanks, 2008, p. 41). A economia das trocas linguísticas, desse modo, se mostra puramente externa, do ponto de vista linguístico.

Alguns trabalhos recentes, todavia, procuram evidenciar que o habitus está representado, ainda que indiretamente, na gramática internalizada. Nessa direção, Pereira (2011), pelo entendimento de que a língua é composta por duas faces: uma face inata e biologicamente herdada, que concede ao indivíduo sua competência linguística, e outra constituída pelo habitus internalizado, que designa uma competência prática, um capital linguístico, propõe um “gerativismo trans-sistêmico”. As duas faces da língua, nesse modelo, constituiriam um módulo gerativo estendido da linguagem, configurado para gerar infinitamente discursos gramaticais e socialmente aceitáveis (p. 119-120).

linguagem (nos termos gerativistas) sofre um processo de amadurecimento até atingir seu estágio final, o habitus linguístico, portador das regras e comportamentos sociais a que o indivíduo está exposto, seria internalizado em concomitância com o processo de aquisição da linguagem. Todavia, se considerarmos, conforme enfatiza Wacquant (2007, p. 66-67), que o habitus corporificado constitui um sistema de disposições duráveis, mas não eternas ou estáticas, que resume não uma aptidão natural, mas social, variável através do tempo, do lugar e, principalmente, das distribuições de poder, teremos dificuldade para aceitar alguma aproximação entre teoria do habitus e teoria gerativa que não seja por analogia ou pela abertura forçada no gerativismo e, ainda, na teoria da prática de Bourdieu.

Ora, ao que parece, essa é a direção em que caminha a proposta de Pierre Encrevé, segundo o qual o gerativismo precisa (e pode apropriar-se) da sociologia dos bens simbólicos. Sua proposta, em desenvolvimento desde a década de 1980, é a de que o habitus linguístico estaria representado na gramática mental, no nível mais abstrato, sob a forma de loci variationnis (Encrevé, 2005). Nessa direção, o autor prevê e requer uma certa mudança de perspectiva, em ambos os domínios, notadamente para rever a dissimetria entre audição e locução e para considerar a distinção entre competência do falante e competência do ouvinte. Para o autor, os fatos da língua não podem ser observados somente junto à produção, uma vez que ouvimos muito mais variedades da língua do que as realizamos. Em um mercado linguístico unificado, os locutores de variedades socialmente estigmatizadas criam mentalmente, por meio de sua competência de ouvinte, a língua aceita como legítima, compreensível, para esses locutores, no nível fonológico (op. cit., p. 267). Um exemplo torna esse conceito mais visível: a televisão, numa sociedade como a francesa ou a brasileira, é sempre

reprodutora dessa língua comum de ouvinte, a despeito das variações sociais dos usos linguísticos.

Pela proposta de Encrevé, podemos supor que qualquer falante que tenha o português brasileiro popular como gramática internalizada poderia produzir frases como “Me dá um dinheiro”, “Os menino chegou da escola cedo”, “O fulano que eu falei dele pra você”, e, ainda, compreender perfeitamente “Dê-me um dinheiro”, “Os meninos chegaram cedo”, “O fulano de quem eu falei”. Nesse aspecto, não haveria diferença essencial entre a perfomance de ouvinte dos diversos interlocutores; todavia o habitus, conforme definido por Bourdieu, é que realizaria a divisão entre formas compreendidas e formas emitidas.

Na interação social, entretanto, a língua comum de ouvinte38 não traz vantagem simbólica, uma vez que, conforme fizemos notar anteriormente, uma competência linguística só funciona como capital linguístico que assegura um lucro de distinção na sua relação com as demais competências, “na medida em que os grupos que a detêm são capazes de impô-la como sendo a única legítima nos mercados linguísticos” (Bourdieu, 1983). Assim, o capital linguístico só pode ser acumulado por quem é capaz de produzir a língua considerada legítima em um mercado linguístico unificado. Nessa direção, Encrevé (2005, p. 269) conclui que “na organização das relações entre as duas competências, para cada sujeito social, na divisão entre o que ele apenas compreende e o que ele diz, sua gramática interiorizada inscreve a história social que ele incorpora”. Mas, para fazer valer sua proposta, Encrevé abre uma fenda na teoria gerativa, para colocar nela a competência social, além de duas competências linguísticas, o que deixa espaço para muitos questionamentos acerca do conhecimento linguístico internalizado

pelos indivíduos, considerando que a competência de ouvinte pode compreender muito mais do que a língua legitimada na sociedade, isto é, pode abranger uma infinidade de outros dados linguísticos prestigiados ou não, mas presentes na produção linguística dos diversos agentes sociais39. Além disso, fica pendente de discussão o estatuto dessa competência de ouvinte, conforme postulada por Encrevé, numa teoria sobre a aquisição da linguagem. De outra parte, o conceito de habitus anexado ao gerativismo é, de certa forma, reduzido, porque a inscrição do habitus no corpo depende sempre das experiências sociais, sobretudo escolar, de cada indivíduo. Essa definição, conforme observa Boltansky (2005, p. 161), evita quaisquer especulações sobre as estruturas mentais e sobre as evoluções do cognitivismo na trilha de um biologismo.

Diferentemente do que ocorre entre sociologia e gerativismo, os limites entre sociolinguística e sociologia da linguagem são mais estreitos. Já observamos que as linhas demarcatórias entre essas disciplinas dão margem a leituras reconhecíveis em ambos os terrenos. Veja-se, por exemplo, que Soares (2000, p. 58-59) coloca as duas disciplinas lado a lado, ao afirmar que as interpretações de Labov sobre os usos linguísticos espelham, de certa forma, a análise de Bourdieu sobre as relações de força material e simbólica que condicionam a utilização da língua no universo social. Pelo exercício da violência simbólica, os locutores que não dominam a língua considerada legítima, muitas vezes são condenados ao silêncio ou a uma linguagem controlada, enquanto os grupos dominantes se sentem autorizados a uma linguagem livre e descontraída (Bourdieu, 1977). Segundo Soares, essas indicações de censura prévia foram detectadas e evidenciadas por Labov quando, em sua crítica à teoria da

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Numa situação de diglossia, torna-se necessário refletir, mais atentamente, sobre qual é o alcance da competência de ouvinte.

deficiência linguística, propôs que a linguagem dita “deficiente” é somente linguagem censurada em um determinado contexto social.

A possibilidade de comparar os resultados dessas análises se deve ao fato de que sociolinguística e sociologia da linguagem repousam principalmente sobre as questões que envolvem os vínculos entre língua e sociedade. Todavia, ressaltamos que as problemáticas teóricas, as metodologias e os objetos de estudo são distintos em cada campo, assim, qualquer aproximação definitiva entre eles não é espontânea ou natural, mas controlada e vigiada pelos cientistas que se propõem a fazê-la.

Conforme afirmamos anteriormente, nossa proposta metodológica se fundamenta na aproximação e emparelhamento de disciplinas. Tudo se ampara na ideia de que sistemas de referências distintos, não redutíveis, podem ser mobilizados (somados) para uma leitura mais compreensiva (ou menos redutiva) do objeto de estudo40.

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Parte 2