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Povo dividido, língua partilhada

5. O debate estendido: há uma língua brasileira?

Não é nossa intenção apresentar um panorama das discussões linguísticas promovidas no Brasil após as primeiras décadas do século XX, sobretudo porque esse

para este estudo. Todavia, fechando esse quadro, devemos destacar que nos primeiros anos do novecentos, as condições de dominação linguística no Brasil já estavam de tal modo estabelecidas, que o discurso simbólico sobre a língua portuguesa recebia seu valor segundo um mercado linguístico bastante definido. Podemos dizer que a estrutura das relações sociais entre interlocutores brasileiros e portugueses foi redefinida com o esmaecimento das discussões acerca de uma língua brasileira e com o estabelecimento desse mercado linguístico, em parte orientado pela norma gramatical portuguesa.

Rodrigues (1998) já sublinhou que esse quadro, marcado pela prevalência do purismo, foi, de fato, favorecido pelo contexto geral (do pós década de 1920), em que o racismo científico se enfraquecera, e as questões linguísticas deixaram de ocupar o centro dos debates sobre a identidade nacional. Certamente não podemos supor o apagamento, nesse contexto, dos discursos raciais linguísticos, em que negros e índios, bem como suas línguas e culturas, aparecem como inferiores em relação à língua e cultura brancas. Todavia, esse novo contexto se nos apresenta como uma sequência complexa de discursos sobre a formação linguística do Brasil, voltados à discussão acerca do papel desempenhado pelas línguas indígenas e africanas na formação das variedades orais (ou populares) do português brasileiro.

Por vezes negando e por vezes reconhecendo a importância dessas interferências linguísticas (cf. Lucchesi, 2001) e, de modo geral, sustentando a tese conservadora do português do Brasil como herança do português quinhentista, os discursos produzidos nesse período (ver Jacques Raimundo, 1933; Gladstone Chaves de Melo, 1946; Serafim da Silva Neto, 1950, 1963; entre outros) vão repetindo as muitas contradições políticas e ideológicas presentes na sociedade brasileira desde os primeiros movimentos para consolidação do Estado-nação, sobretudo a dificuldade de lidar, nessa estrutura

hierarquizada, com as heranças da colonização e do escravismo. Desse modo, qualquer que seja a análise, resta assegurado o valor de uma única língua - a portuguesa -, como “entidade” livre de quaisquer deformações produzidas pelo contato. Nesse sentido, Paixão de Sousa (2010) observou:

Fundamentalmente, na discussão tradicional - aqui representada por Chaves de Melo (1946) e Silva Neto (1950) - há um certo português do Brasil que é fruto genético direto da língua clássica do século XVI, e um outro português do Brasil que é fruto do contato dessa língua com as populações “aloglotas”. O primeiro é o português “culto” (fundamentalmente, um português “branco”), no qual as análises enxergam a base para defender o elemento conservador da língua brasileira. Na descrição desta variante, encontramos termos como “riqueza”, “complexidade”, “sutileza”. Chamemos a esse eixo o eixo da herança: dos brancos colonizadores, herdamos a língua. O segundo, o “outro” português do Brasil, é o “popular” (fundamentalmente, um português “negro”), no qual as análises enxergam os efeitos de uma interferência negativa - que [...] aparece como um impacto redutor, não agregador. Na descrição desta variante, encontramos termos como “empobrecimento”, “simplificação”, “redução”. Chamemos a esse eixo o eixo da perda: dos índios e negros, não herdamos nada - restam-nos apenas “cicratrizes” e ausências[...] (Paixão de Sousa, 2010, p. 118).

O que existe, retomando as palavras de Rodrigues (op. cit.), é o racismo reciclado, que permite dissociar o problema racial linguístico, mas nos moldes já expostos.

Quanto às decisões propriamente políticas voltadas à proteção e imposição da língua portuguesa, os estudos historiográficos destacam desde os discursos conservadores da Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916, pela associação de velhos debatedores das questões linguísticas brasileiras, tais como Olavo Bilac e Rui Barbosa, até as propostas do Estado Novo, especialmente no que toca ao projeto nacionalizador,

cujo traçado incluiu a educação cívica e a repressão das línguas faladas pelos imigrantes e seus descendentes (cf. Campos, 1998, 2006; Bueno, 2006)53.

Não se pode negar que, na figura dos modernistas, em especial Mario de Andrade, a luta pela autoridade linguística e literária permaneceu em causa. Mas a discussão em torno da nacionalidade não chegou a abalar as bases do mercado linguístico estabelecido no Brasil.

São bem conhecidas as teses que evidenciam a busca dos modernistas por uma linguagem poética propriamente brasileira, que expressasse essa variação do português usado no Brasil; todavia o valor conferido a esses usos linguísticos não ocupava o centro do debate. É nesse sentido que Mario de Andrade, em correspondência pessoal, diz: “Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci. Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz”. De outra parte, em alguns momentos, Mario de Andrade debateu a língua do Brasil e chegou mesmo a projetar (sem concluir) uma gramatiquinha da fala brasileira. Se o intento do escritor era, de fato, debater o discurso da norma ou, ainda mais, criar um aparato de referência (pela literatura e pela gramatiquinha) à língua brasileira, o projeto não foi concluído. Ao fim e ao cabo, naquele universo hierarquizado, as produções dos modernistas, observadas enquanto erro (ou como forma do fazer literário), não causaram abalo à norma linguística já estabelecida e sustentada pelo discurso normativo dos gramáticos e pelo discurso científico dos acadêmicos e outros especialistas nas questões linguísticas (cf. Rodrigues, 1998; Pagotto, 1998; entre outros).

Para concluir esse capítulo, devemos lembrar ainda que, no final da década de 1950, momento em que os defensores do português do Brasil já eram chamados

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Note-se a existência de outras agremiações, como a Propaganda Nativista (1919), a Ação Social Nacionalista, no Rio de Janeiro e a Liga Nacionalista de São Paulo (1917), originada da Liga de Defesa Nacional, que chegou a promover campanhas de alfabetização.

neobrasileiristas54, Houaiss, fazendo um balanço dos debates sobre a língua, pergunta aos professores Celso Cunha, Serafim da Silva Neto e Sílvio Elia se eles reconheciam a existência de uma língua brasileira55. Obviamente as respostas surgiram consoantes as teses dos depoentes. Recortando aqui os pontos que consideramos mais relevantes na argumentação de cada sujeito, temos que, para Serafim da Silva Neto, àquela época já não se podia cultivar dúvidas de que no Brasil se usa uma variedade da língua portuguesa, a qual se fragmenta numa série de variedades, de acordo com a região, com as classes sociais e mesmo de acordo com as pessoas. Essas variações, entretanto, não comprometeriam a unidade linguística. Ele acrescenta, ainda, que o problema da língua brasileira não é linguístico, mas político, formado na ideologia nacionalista. Repetindo sua tese, apresentada em 1950, propõe que Portugal e Brasil, “dois poderosos cérebros”, criam suas próprias formas linguísticas, mas, tudo se passa dentro da mesma língua. Se os brasileiros dizem “aeromoça” e os portugueses “hospedeira”, tudo é formação do patrimônio comum da língua portuguesa. Os “dois cérebros” pensantes criam formas diferentes, mas com o mesmo material. “O que sucede, muitas vezes, é que o português do Brasil manteve um padrão mais conservador do que o de Portugal. Os portugueses avançaram mais, inovaram mais na língua a partir do século XVIII, do que os brasileiros cultos.” (Silva Neto, apud Houais, 1960, p. 84).

Para Silvio Elia, apesar da distinção de níveis linguísticos – língua escrita, língua falada, língua literária, língua padrão, língua culta – o problema ficaria restrito a este último nível – a língua culta, padrão –, que é a mesma no Brasil e em Portugal. Assim,

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Serafim da Silva Neto, ao se dirigir aos defensores da língua brasileira, os denomina “neobrasileiristas”. Antonio Houaiss também adota o termo.

do ponto de vista propriamente gramatical não haveria distinção linguística. Nisso reafirma suas ideias expressas em O problema da língua brasileira (1940). Nessa análise, se as divergências existentes de nenhum modo comprometem o sistema, não há que se falar em língua brasileira. Cerca de vinte anos depois, em A unidade linguística do Brasil (1979), reitera:

[...] uma verdade também facilmente comprovável - é que: a) a língua comum aos povos brasileiro e português é a mesma (embora com traços coletivos nacionais); b) essa língua comum apresenta, no Brasil (aliás, igualmente em Portugal), notável unidade, de norte a sul e de leste a oeste, quer nas camadas cultas, quer nas populares (1979, p. 13).

Na mesma linha, Celso Cunha propõe que tudo o que se apresentara como característico da língua do Brasil são fatos de ordem secundária, já que se verificam do ponto de vista da variação geográfica ou social. Na unidade, segundo o autor, está implícita a noção de diversidade. Sua conclusão é a de que o Brasil é um país de cultura portuguesa, descoberto por uma nação que, embora pequena, era naquele tempo a maior nação do mundo, assim, o Brasil não fica diminuído por conservar a mesma língua do ex-colonizador.

Conforme se vê, para nenhum dos depoentes existe uma língua brasileira. Diante disso, a conclusão de Houaiss compreende um tipo de tese coletiva: a língua falada no Brasil é de fato a língua portuguesa, a qual apresenta variações regionais, sociais, individuais. Os fatos dialetais devem ser estudados e devem estar na base de qualquer evolução linguística; todavia, por sua própria situação, podem e devem se desfazer na medida em que se consolida a unificação da língua comum. A língua escrita é essencialmente a língua padrão, culta. A canônica gramatical, entretanto, é passível de crítica, por pretender uma fixidez de um lado e uma exclusão de variedades e possibilidades de outro, mas, nesse caso, o defeito não é do instrumento, mas de quem

está encarregado de ensiná-lo56. No mais, ele acrescenta que não parece haver razões ponderáveis para se abandonar a norma gramatical legitimada em favor de uma norma calcada no dialetismo “cuja generalidade está por ser apurada, mas cuja característica é sua pobreza, de vária natureza, em correlação com a limitação cultural de que é expressão.”(Houaiss, 1960, p. 129).

O debate formulado na década de 1950 ainda referia àqueles firmados cerca de um século antes. Isso porque diversos pontos das discussões ainda permaneciam em causa. Note-se que são da década de 1940 o acordo ortográfico do português do Brasil, bem como o debate acerca da denominação da língua nacional. Foi em janeiro de 1941 que Cassiano Ricardo defendeu, frente à Academia Brasileira de Letras, um projeto pleiteando a separação absoluta dos idiomas falados no Brasil e em Portugal e o reconhecimento imediato de uma língua brasileira, “destino de um povo livre e independente”. E essa tentativa de oficializar a língua brasileira repercutiu na imprensa, tornando-se motivo de intensa discussão entre os intelectuais da época. Isso mostra que, naquele momento, as questões da língua ainda eram matéria de debate político, sociocultural e, evidentemente, linguístico.

Por fim, levando em conta o quadro geral, em que se esboçam mais de um século de exposições de razões em defesa da autonomia linguística do Brasil ou, de outra parte, em defesa da unidade da língua portuguesa, podemos observar que em todo o tempo foram asseguradas as condições de produção e reprodução da língua legitimada (a portuguesa), pela sustentação das hierarquias linguísticas, que manifestam a hegemonia de grupos ou segmentos sociais. Nesse concerto, não há língua brasileira,

mas um português fragmentado – em dois (ou três)57 – o de lá, o de cá, e esse outro, chamado errado e errante, que segue partilhando, de forma desigual, os espaços sociais.

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Nessa observação, lembramo-nos do estudo de Virginia Matos Silva, “O português são dois”, que aborda o problema da disparidade entre fala e escrita no Brasil atual e recupera fatos históricos que envolvem a questão.

C A P Í T U L O I I I

A cidade

TRANSFORMADA

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul –