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Povo dividido, língua partilhada

1. Língua e relações sociais

Em meados de 1823, por ocasião dos trabalhos da Assembléia Constituinte, o deputado Francisco Muniz Tavares, veterano da Revolução Pernambucana, marcou em seu discurso o anticolonialismo que caracterizou o projeto de constituição que até então se formulava:

Ninguém hoje ousará affirmar que nós não fazemos uma nação soberana, livre e independente; e nesta qualidade, Portugal se puder conservar tambem sua independencia (o que duvido, pelo estado miserrimo a que se acha reduzido,) fica sem duvida ao nivel de outra qualquer nação; outra qualquer nação é para nós estrangeira, como deixará Portugal de o ser? Sera acaso pelos antigos laços que nos união? Ah! Estes já forão heroicamente quebrados, e a linguagem que ainda hoje tristemente nos confunde só marca a dolorosa lembrança de que os nossos antepassados forão colonos e colonos sempre acabrunhados pela vara de ferro e odioso systema de oppressão.

Não julgueis, senhores, que em meu coração reside este odio exaltado, que compellio o patriota americano do norte a propôr no congresso a mudança mesmo da linguagem ingleza; não, eu sei perdoar injurias, não sabendo perdoar a usurpação dos meus direitos. (Anais da Assembleia Constituinte, sessão em 19 de junho de 1823, p. 102, grifo nosso).

A discussão encaminhada por Tavares diz respeito à naturalização dos portugueses residentes no Brasil; seu projeto se volta à restrição de direitos aos lusitanos, que passariam a ser considerados estrangeiros naturalizados na terra brasileira. Ora, além da indubitável preocupação com a consolidação da independência, o discurso do deputado dá indícios do sentimento de desconfiança, temor e ódio pelos

lusitanos (Mendes, 2008); daí sua rejeição aos laços que unem Portugal e Brasil, sem a exclusão da língua, observada enquanto marca evidente da relação com o ex-colonizador2.

Conforme observa Mendes (2008), a atitude de Tavares não é inédita e nem inopinada; em todo o continente americano, as jovens nações independentes discutiram a adoção ou rejeição dos idiomas das metrópoles europeias, como parte das questões relacionadas à formação da nação e da nacionalidade.

No caso brasileiro, as discussões iniciais a respeito da língua não caminharam muito além dessa expressão nacionalista mais comum, manifestada “sob a forma de um antiportuguesismo generalizado” (Viotti da Costa, p. 33), centrado, sobretudo, na preservação territorial. Com efeito, no contexto da independência, o Brasil, identificado com um território determinado, valida um governo central – disposto em favor da economia agrária (Mattos, 1987; entre outros)3, e procura manter sua unidade, “menos em virtude de um forte ideal nacionalista e mais pela necessidade de manter o território íntegro” (Viotti da Costa, 1999, p. 33). Boa parte dos historiadores sublinha que as preocupações sociais e econômicas dos senhores agrários e escravocratas, mais do que os sentimentos de brasilidade, forneceram o amálgama à construção da unidade brasileira (Mattos, 1987; Grahan, 2001). Nesse modo de interesse próprio local, o estado centralizado, apresentado enquanto aparato coercivo e também como instrumento de direção intelectual e moral, operou decisivamente para selagem do ideal de nação independente (op. cit.).

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Note-se que nesse primeiro momento não estão em jogo, ao menos não explicitamente, os aspectos propriamente linguísticos, isto é, as diferenças entre o português brasileiro e o português de Portugal, mas os vínculos estabelecidos pela língua.

É nesse quadro que podemos interpretar o discurso do deputado Tavares que, apesar das manifestações de hostilidade contra Portugal, afirma não encontrar motivos suficientemente fortes para reivindicar completa emancipação linguística para o Brasil. O sentimento de brasilidade, nesse caso, se refreia na defesa da autonomia política e, consequentemente, na defesa dos interesses dos brasileiros. A questão linguística, embora evocada pelo deputado, não integra o conjunto de suas aspirações políticas; de fato, na Assembléia Constituinte de 1823, não houve quem defendesse claramente uma língua brasileira. Nessa direção, Lima Sobrinho (1958) observa:

[...] numa época em que os nomes próprios se modificavam para acentuar a veemência do sentimento autonomista do povo, quando surgiam os jês, os tupinambás, os montezumas como reação aos onomásticos portugueses, nenhum dos nossos deputados, nem mesmo os que adotavam nomes indígenas, se rebelou contra o uso da língua portuguesa, ou pretendeu lhe mudar o título (Lima Sobrinho, 2000 [1958] p. 64).

Isso não sinaliza, entretanto, ausência de disputa e de busca por uma identidade linguística4. O sentimento autonomista do povo, conforme mostrou Lima Sobrinho, passa pela língua, revelando-se na experiência de modificação dos nomes próprios, em reação a Portugal; pelo que, nesse primeiro momento, o antiportuguesismo manifestado enquadra as questões relativas à língua entre os demais problemas geopolíticos.

Por outro lado, Honório Rodrigues (1983) argumenta que a Assembléia de 1823 marca a vitória da língua portuguesa sobre as demais línguas em uso no território brasileiro, porquanto “era a primeira vez que brasileiros de toda parte falavam sua própria língua uns aos outros em assembléia pública” (op. cit., p. 41, grifo nosso). De fato, apesar das diferenças, considerando que a língua se formara “numa competição

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Divergimos, nesse ponto, das conclusões de Mariani e Souza (1994), segundo as quais o silenciamento produzido em torno da questão linguística, desde a Assembléia Constituinte de 1823, instaura o apagamento da língua do Brasil, em favor de uma língua imaginária, moldada em Portugal.

desigual com línguas indígenas e negras e variações prosódicas oriundas dos diferentes grupos do português falado em regiões diversas” (Rodrigues, 1983, p. 41), não se registram conflitos linguísticos5, isto é, não há reivindicação de uma língua brasileira (ou indígena, ou africana); não há manifestações em favor do bilínguismo; assiste-se ao reconhecimento da língua portuguesa enquanto língua formal, oficial e dominante. Longe de ser natural ou espontâneo, esse reconhecimento é uma construção social, possível numa sociedade em que, pela ação de fatores históricos, sociais e políticos, os lucros materiais e simbólicos são conferidos a uma única língua.

Assinalado esse ponto inicial, os debates acerca do português do (e no) Brasil caminham em crescente ao longo do século XIX, na medida em que o nacionalismo brasileiro, prioritariamente geopolítico e econômico, molda-se num nacionalismo cultural6. Marca-se, nesse segundo momento, maior distanciamento da cultura portuguesa7, como condição necessária para definição do que poderia ser considerado próprio do Brasil. Nessa direção, observa-se um especial esforço para indicação do sentido de “língua brasileira” 8, já que esta, peculiar em seu vocabulário, mais suave e amena (Pedra Branca, 1826), não se confundia com a língua dos índios, conforme frisou Luis Maria da Silva Pinto, ainda em 18329.

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Nos termos de Bourdieu (2008; entre outros).

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É importante notar que, nesse cenário, em que as elites políticas brasileiras, compostas especialmente por fazendeiros e comerciantes vinculados à economia de exportação, sustentam-se na escravidão e nas grandes propriedades (Viotti da Costa, 1999), a integração nacional vai sendo moldada aos poucos, praticamente sem interferências do povo (Lessa, 2008; Viotti da Costa, 1999, entre muitos outros).

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Esse ponto é importante porque, conforme evidenciam os estudos historiográficos, o Brasil, no decorrer do XIX, procurava viver à francesa.

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Em meados do século, observam-se manifestações mais claras em favor de nossa autonomia cultural e linguística. Os contornos dessa reivindicação de independência se apresentam no prólogo ao Florilégio da Poesia Brasileira, de Varnhagen (1847), pela exposição de um conjunto de argumentos, certamente não isolados, à caracterização do português brasileiro como um português diferenciado10:

Aqui desejaria alguem que entrassemos na questão da divisibilidade das litteraturas portugueza e brasileira, o que varios julgam impossivel, em consequência da uniformidade da língua. Repugnará sempre o nosso ânimo entrar em tal questão, por nos parecer que os argumentos de parte a parte poderão correr o risco de sair pedantes, ou demasiado escholasticos, sem falar dos mal entendidos preconceitos de amor proprio nacional n’uma questão litteraria.

Seja-nos, porém permittido deixar aqui consignadas algumas duvidas, cuja solução offerecemos aos que neguem a possibilidade - a naturalidade da divisão das duas litteraturas.

1ª. Deverão deixar de figurar, nas histórias litterarias da Prussia e de Portugal, as obras dos eminentes escriptores Humboldt e Pinheiro Ferreira, só porque estes, para terem mais leitores, as escreveram em francez?

2ª. Desalistaram-se da litteratura portugueza o bispo Osorio e Paiva de Andrada, porque escreveram em latim?

3ª. É por ventura, tão verdadeira, tão estricta essa identidade da língua? Não há no Brazil nomes do paiz ali conhecidos, e cujo objecto é mais ou menos poetico, dos quaes em Portugal a sua pronunciação dizem que excita o riso? Lembremo-nos dos receios que neste sentido tinha o A. do Caramurú ao publicar o seu poema, e lembremo-nos mais dos que certo censor tinha de que provocassem o riso tantos nomes do Brazil, como v. gr. Jacarandá, palavra ésta em que há nada menos de quatro aa. (Varnhagen. Prólogo ao Florilégios da Poesia Brasileira, 5/06/1847).

Nesse momento, está posta a ideia – defendida por alguns intelectuais portugueses – de que a língua, e não a terra, emprestaria o nome à literatura. Daí a propriedade dos argumentos de Varnhagen em defesa da independência cultural brasileira, ainda que forjada sob o culto à herança portuguesa:

Entendamo-nos: ésta opinião do vulgo, que acha também em Portugal mui ridiculo um dos nomes de mais glória pâra o Brazil - O Ipiranga - prova que a poesia brazileira tem que declarar-se independente da mãi-patria: pois desgraçado do poeta do Brazil que, ao chegar-lhe a inspiração, tivesse que mandar consultar em Portugal um de seus filhos, que nunca tivesse ido à

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América (pois a estes se acostuma o ouvido como é natural), se tal ou tal palavra lhe promove o riso, como o jacarandá ao censor.

Longe de nós o consignar a idéa de que no Brazil não se deve, e muito estudar os classicos portuguezes e a grammatica. - Pelo contrario, reputamos essa necessidade urgentissima, ao vermos que os nossos melhores escriptores - os que mais agradam no Brazil, foram os que mais os folhearam.(p. VIII)

Conforme se vê, Varnhagen requeria, por um lado, uma literatura independente, escrita em língua de prosódia e léxico distintos do português europeu moderno e, por outro, a preservação da sintaxe da língua escrita, herdada das gramáticas e dos clássicos portugueses. Assim, a língua brasileira seria a língua portuguesa com algumas variações praticadas no Brasil – certamente não toda e qualquer variação, mas aquelas aceitas e autorizadas pelos censores de cá.

Posição similar, todavia mais enfática, assumiu Joaquim Norberto (1855, p.102), ao afirmar: “claro é que temos uma língua e uma língua brasileira”; embora estabelecendo, em seguida, os limites dessa diferenciação11:

[...] os brasileiros não se houveram como o filho pródigo esperdiçando as riquezas herdadas; não só conservaram o legado de seus maiores, como enriqueceram-no abundantemente, e o seu clima, modificando-o um tanto, deu-lhe essa doçura com que tão harmonioso e elegante se ostenta nos lábios americanos (Joaquim Norberto, Revista Guanabara, 1855, p. 102).

O ponto mais fundamental, nesse momento, é a valorização da distinção linguística e a observação das diferenças como elementos estáveis, comuns à nação independente.

No interior do movimento romântico, ainda em meados do século XIX, e nas décadas seguintes, essas questões se acentuam. Parte dos representantes do romantismo brasileiro assume posição em defesa de uma literatura independente, capaz de encetar modelos mais afastados dos clássicos e também da literatura portuguesa, para afirmar o

que seria próprio do Brasil e para construir a unidade nacional (Candido, 1956; Rodrigues, 2002; Schwarcz, 2008; entre outros).

Cresce, nesse contexto, o interesse das elites intelectuais brasileiras pelas línguas indígenas, sobretudo pelo tupi. O romantismo, já sublinhou Sussekind (1994), desdobrando um “pensamento idiomático nativista”, cumpre o papel de fixar os termos indígenas12, acrescendo e diferenciando o vocabulário disponível, “como reforço na definição de uma língua literária própria” (op. cit., p. 460)13. Note-se que além de movimento artístico, o romantismo mostrou-se uma arena de debates sociopolíticos. Segundo Treece (2008), cultura e política, esferas integradas no Brasil Imperial, fizeram do indianismo “uma viga mestra do projeto de construção do Estado”, pela mitologia de integração racial, pela construção de um índio ficcional no imaginário social.

Enfatizando que o interesse pelas línguas indígenas não se restringiu ao âmbito literário, devemos apontar, no quadro geral desse período, as mais variadas publicações sobre o tema. Valle Cabral, em 1880, quando publica a “Bibliographia das obras tanto impressas como manuscriptas relativas à língua tupi ou guarani, também chamada língua geral do Brasil”, lista um total de 302 textos (entre gramáticas, dicionários, catecismos, relatos de viajantes e etc.) sobre o assunto, boa parte publicada naquele mesmo século. Ainda que nem todos os títulos listados por Cabral sejam especificamente sobre essas línguas indígenas, a obra põe em relevo a grande

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Convém sublinhar que, na leitura de Treece (2008), entre outros estudiosos, o uso que o Romantismo (notadamente José de Alencar) faz do português e do tupi é “uma notável façanha retórica” e uma celebração “do legado cultural da miscigenação”, apesar do artificialismo de estilo e sintaxe e, ainda mais, apesar de não ter relação com qualquer uso linguístico no Brasil.

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É importante observar que no romantismo o índio é idealizado, assim como são idealizados seus costumes e sua língua. O movimento romântico, nesse sentido, inscreve uma mitologia conservadora, na qual a sociedade brasileira nasce do sacrifício indígena (Treece, 2008; Bosi, 1992; Camilo, 2007). Nessa proposta, o índio - “belo, forte e livre” - é o nativo por excelência que, disposto numa relação de oposição com o europeu, se entrega, heroicamente, à imolação.

visibilidade que o tema tupi adquiriu na cultura brasileira no decorrer do século XIX14. Nas palavras de Rodrigues (2008):

Desde o Imperador Pedro II, de quem se dizia ser versado naquela língua, passando pelo espaço privilegiado dedicado aos idiomas indígenas na revista trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, principal órgão da intelligentsia nacional, e pelas reedições dos dicionários e gramáticas dos séculos XVI, XVII e XVIII, até chegar aos trabalhos linguísticos e à produção literária romântica, o indianismo, de maneira geral, e o tupi em particular, estavam na ordem do dia (Rodrigues, 2008, p. 15).

Os debates acerca da língua, de modo geral, e o interesse pelas questões indígenas (no âmbito literário ou não) devem ser compreendidos no interior do projeto de centralização nacional, ou, nas palavras de Treece (2008, p.11), “na tradição do pensamento nacionalista no Brasil, cuja mitologia integracionista invocou repetidamente sua assimilação na sociedade dominante como pedra de toque para uma história pacífica de integração política, social e econômica” predominante no Segundo Reinado. Nesse contexto, permanecem em causa, portanto, questões antigas, relativas ao papel desempenhado pela(s) língua(s) geral (is) (sobretudo o tupi) no processo de integração social das populações indígenas (cf. Rodrigues, 1998; 2008)15. Ademais,

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O estudo de Rodrigues (2002) apresenta algum detalhamento sobre a obra de Valle Cabral. O autor mostra que dos títulos reunidos por Cabral, a maioria não se detém especificamente no tupi ou guarani. Outra parte são textos religiosos (são catecismos ou autos teatrais, de valor documental), escritos em língua geral, visando à conversão de índios. Na recontagem de Rodrigues, 48 títulos – desde breves artigos a extensos dicionários – versam efetivamente sobre a língua geral.

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As questões relativas às línguas indígenas foram muito discutidas no período colonial. Devemos lembrar que os jesuítas, ainda no século XVI, trataram de difundir, sobretudo pelo ensino, a língua geral (língua geral da costa do Brasil)15, a qual, no seiscentos, assumiu o posto de língua brasílica. Somente no século XVIII, no período que sucede às leis pombalinas (notadamente o Alvará Régio de 1759), com a expulsão dos padres jesuístas e o fechamento dos colégios (1759), é que surge nova “política linguística” (cf. Monteiro, 1995) e a língua portuguesa passa a ser imposta “todo o seu poder unificador” (Honório Rodrigues, 1983). Nesse processo, um ponto interessante, bem sublinhado por Freire (2003), é que a difusão da língua geral facilitou a lusitanização, na medida em que dotou a região de uma relativa unidade

discute-se o significado e o valor dessa herança linguística e cultural para formação da história nacional brasileira. Nesse concerto, conforme notou Rodrigues, o que sobra é um tupi “morto-vivo”, “um idioma deslocado de seu povo”, ou seja, “um idioma patrimônio da igreja, do Estado e dos letrados” (op. cit., p. 333).

É importante notar que, nas múltiplas expressões da mentalidade das elites imperiais, os escritos indianistas exibiram diferentes perspectivas ideológicas (cf. Treece, 2008). No conjunto de ideias políticas esboçadas nas últimas décadas do império, os indígenas foram acomodados16 ora em uma perspectiva positiva e evolucionista; ora em um discurso religioso católico (Schwarcz, 2008, p. 111). Nesse quadro, é de muita relevância o fato de que o indianismo oitocentista deixou de fora o problema da escravidão negra e fez referência explícita somente à condição de opressão do índio, representado como escravo ou como sujeito servil e auto-sacrificatório (cf. Rodrigues, 2002; Treece, 2008; Lima, 2008).

de base indígena para o português, envolvendo, assim, duas línguas que haviam mantido contato contínuo por quase dois séculos [...]” (Freire, 2003, p. 216).

A imposição da língua europeia não resultou, todavia, na extinção das chamadas línguas gerais. Em São Paulo, em início do século XIX, a Língua Geral ainda estava em disputa com a língua portuguesa (Honório Rodrigues, 1993). Os estudos sobre essa temática evidenciam que, no novo contexto, ao menos uma parte das línguas gerais foi estimulada como língua franca e sobreviveu – a o que ocorre com a língua que, no XIX, passa a ser chamada Nheengatú (Rodrigues, 1998; Freire, 2003; entre outros). Ademais, não se pode esquecer que grande parte da população indígena no Brasil, especialmente no norte do país, seguiu usando sua própria língua, as quais se contavam às centenas.

No final do século XVIII, pouco se falou sobre as línguas indígenas. Rodrigues (op. cit.) observa que somente em 1795, com o Dicionário português e brasiliano, reiniciaram-se as publicações. Assim, é no contexto das políticas conciliatórias do Segundo Reinado, especialmente em fins da década de 1840, que toma corpo o interesse pela língua e demais questões relacionadas aos indígenas.

Sobre essas discussões, ver: Rodrigues (1998; 2008); Honório Rodrigues (1993); Freire (2003), bem como bibliografia citada nesses estudos.

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Schwarcz (2008) se refere, especificamente, ao tratamento dispensado ao indígena nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. É preciso observar, nesse caso, a importância do IHGB na construção de ideia de Nação brasileira, com identidade própria no conjunto amplo das “Nações” (Guimarães, 1988). Fundado em 1838, sua função essencial era a de “construir uma história da nação, recriar um passado, solidificar mitos de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos até então dispersos” (Schwarcz, 2008[1993]).

Em nosso estudo, torna-se importante destacar o fato de que, no debate sobre identidade e unidade linguística no Brasil, as línguas indígenas, sobretudo o tupi, foram investidas de algum prestígio17. Além dos usos de caráter literário, dos dicionários e dos estudos científicos, as referências constantes a essas línguas lhes garantiram um papel específico na formação da norma linguística brasileira. Esse interesse pelas línguas indígenas, isto é, o aparato de descrição (nos termos de Corbeil, 2001), contribuiu para a imposição de uma definição própria de correção linguística no Brasil, distinta da europeia. Ainda que geralmente limitados ao léxico – na verdade o principal fornecedor de argumentos em favor da autonomia de nossa língua (cf. Coelho, 2008) –, os traços das línguas indígenas foram incorporados pelas ideologias linguísticas brasileiras do século XIX.

Mas é preciso observar que a aceitação desses (alguns) traços das línguas indígenas ocorreu numa relação de força, isto é, como resultado de uma luta simbólica, proposta em um espaço social no qual estava em jogo o valor conferido aos usuários da língua. Dado o contexto – em que índios e negros foram responsabilizados pela corrupção da boa língua de Camões –, a valorização das línguas indígenas se deu mediante sua admissão na literatura e nos discursos (científicos ou não) das elites intelectuais. Nesse processo, não são os usos linguísticos dos índios (em si) o objeto de valorização, mas uma variedade de língua idealizada, suficiente para construir uma “impressão de brasilidade” (cf. Treece, 2008; Rodrigues, 1998; entre outros).

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Rodrigues (2008) evidencia que as línguas indígenas brasileiras, submetidas a análises comparativistas desenvolvidas sob a égide das teorias evolucionistas, foram classificadas como inferiores às línguas europeias. A língua geral (ou o tupi) era privilegiada em relação às línguas tapuias, mas a metodologia comparativa mantinha a distinção entre línguas civilizadas e primitivas. Assim, mesmo agregando princípios das ciências da linguagem no estudo do tupi, prevalecia a apresentação das línguas indígenas como línguas de estruturas menos complexas e menos evoluídas. Nessa classificação, as línguas indígenas

Da mesma forma, podemos dizer que os grupos intelectuais decidiram validar e valorizar alguns aspectos lexicais e morfossintáticos do chamado português oral do Brasil, sem, contudo, legitimar a língua desses sujeitos outros (brancos, não-letrados, não-capitalizados). De fato, vários linguistas já evidenciaram que, nessa