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Coisas de São Paulo

3. O lugar da língua

As ações políticas dos intelectuais paulistas, levadas adiante, essencialmente, pelo discurso, desencadeiam alguns importantes questionamentos relativos à língua e às condições sociais de produção linguística. Como as ideologias e os ideais políticos influem nos usos linguísticos desses falantes? No processo de construção da identidade do povo de São Paulo, que se faz, conforme evidenciamos, pela tentativa de definição e valorização do “ser paulista”, há lugar reservado às variedades linguísticas que o identificam, considerando que a língua é comumente tomada como critério objetivo de

identidade regional22? Que relações se estabelecem, nesse ambiente, entre a língua e o regionalismo político e econômico?

Nesse contexto, em que o encaminhamento do separatismo e da “paulistanidade” se faz pela exclusão de negros e índios, a primeira ideia que se constrói é a de que a (s) variedade(s) usada(s) por esses falantes não apresenta(m) os traços linguísticos estigmatizados na sociedade paulista. Ademais, considerando o fato de que a formação da norma linguística brasileira se fez com vistas no modelo europeu – não por imitação, mas pela adaptação do modelo à realidade brasileira, no conjunto das práticas políticas e ideológicas das classes dominantes (cf. capítulo 2), entenderemos, ainda, que a produção linguística desses falantes é sempre controlada por fatores exógenos ao campo estritamente linguístico, de tal modo que a gramática subjacente aos seus textos tende a se manifestar como expressão última de suas ideologias e ações.

O eixo argumentativo se construiria, nesse caso, pela ideia de que os defendentes das teorias que sublinharam a superioridade da raça branca não usariam variedades linguísticas identificadas como pertencentes às raças consideradas inferiores23, não somente pela cultivação da ideologia racista, mas para evitar os efeitos negativos desse uso no projeto de civilização do Brasil (e de São Paulo): o maior afastamento da norma padrão europeia resultaria, em última análise, prejuízo ao modelo civilizador.

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Segundo Bourdieu (1989, p. 112), na prática social esses critérios são objetos de representações mentais, ou seja, são atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento.

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Vale lembrar que, por essa época, as variantes que caracterizam o português brasileiro eram observadas por boa parte dos gramáticos como sendo próprias de negros, mestiços e das gentes incultas. Já notamos que Candido de Figueiredo, ao formular o “problema” da colocação dos pronomes no português do Brasil, propõe que: “Os milhares ou milhões de Negros, que a colonização do Brasil chamou da África para a América, foram aceitando naturalmente o vocabulário português, construindo a frase a seu modo; e os lavradores e colonizadores, certamente em menor número que o dos trabalhadores dos campos e das roças, e curando mais de borracha e café, do que de invasões gramaticais, deixaram-se indolentemente

Todavia, a adoção dessa hipótese exige cautela, pois além do perigo de se licenciar, por meio de malabarismos analíticos, a relação imediata entre texto e contexto, essa conjectura apresenta o problema fundamental de não ponderar o lugar da competência linguística (nos termos gerativistas). Assim, um dos pontos a se considerar, em uma análise mais coerente, é o fato de que o uso da norma nem sempre é intencional e/ou consciente. Da mesma forma, nem sempre o processo de alinhamento de um texto à norma padrão é suficiente para filtrar todas as formas linguísticas socialmente desprestigiadas. Portanto, não é difícil que em algumas ocasiões as variantes constitutivas da língua oral dos falantes aflorem, apesar de algum esforço de ajustamento do texto à norma padrão ou a alguma ideologia24.

Nesse cenário singular, em que prevaleceram, inclusive, as variantes identificadas como dialeto caipira, a melhor compreensão dos usos linguísticos exige não somente o reconhecimento do processo de legitimação da norma e dos efeitos da normatização sobre o imaginário linguístico das elites intelectuais paulistas, mas também a contemplação dos fatores linguísticos propriamente ditos.

A análise que desenvolvemos aqui evidencia que a variedade culta do português em São Paulo se distancia não somente da gramática do português brasileiro, mas também, por traços sutis, da norma linguística desenhada entre os portugueses25. Logo, podemos dizer que as variáveis sociais que condicionam as produções linguísticas desses sujeitos não operam para o alinhamento dessa escrita ao modelo lusitano.

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Convém reiterar que propomos, com base nos pressupostos da teoria gerativa, que a produção escrita desses falantes pode não ser fruto de sua gramatica internalizada, construída na infância, no processo natural de aquisição da linguagem, mas resulta da gramática da escrita, adquirida por meio do processo de escolarização. Para discussão sobre “gramática da escrita”, ver Kato (2005).

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De qualquer modo, não podemos negar o fato de que a escrita desses falantes sofre os efeitos do trabalho de normatização, que encerra o processo de correção e de desvalorização de algumas variedades linguísticas. Nesse plano, as diferenças linguísticas fazem parte de um sistema de oposições que reproduz um sistema de diferenças sociais26.

O que estamos dizendo é que o valor concedido ao português culto deixa pouco espaço para o uso formal das variedades socialmente desvalorizadas, daí os intelectuais republicanos rejeitarem as formas linguísticas estigmatizadas; consequentemente, o discurso da “paulistanidade” faz esquecer a língua, enquanto critério objetivo de identidade regional. Sendo a hierarquia linguística conhecida e reconhecida pelos paulistas, o uso formal do dialeto caipira seria inviável, pela restrição dessa variedade a um espaço inferior àquele dedicado à variedade culta do português brasileiro.

Ainda que a representação do caipira pelas elites letradas tenha sido dúbia27 - ora representado como um tipo cultural (e não propriamente racial), portador dos traços das raízes e da peculiaridade dos paulistas (cf. Ferreira, 2002), ora representado como sujeito rústico, matuto ou mesmo preguiçoso e vadio28 –, não é no dialeto caipira, já

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Nos termos de Bourdieu (2008, p. 39-41).

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Sobre a representação dos caipiras pelas elites letradas ver: Ferreira (2002); Oliveira e Kewitz (2002); Pereira (2011).

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O texto “Quem é um caipira”, de Silvio Romero (1908), soma evidências do pensamento das elites brasileiras em relação a esse grupo social, tal como esboçado no início do século XX: “[...] não é a zona, nem a raça, nem a profissão que outorgam o direito de ser caipira [...]. Caipira, mulato, tabaréo, mandioca, capichaba, e outros congêneres, – são expressões de menospreço, de debique, atiradas pelas gentes das povoações, cidades villas, aldeias, e até arraiaes, contra os habitantes do campo, do matto, da roça. São expressões dum antagonismo secular. São chulas dos desfructadores de empregos, profissões, officios e outros variados meios de vida, que a habilidade de certas populações faz nascer nas grandes agglomerações de gente, especialmente contra os que mourejam nas rudes tarefas do amanho das terras, do cultivo dos campos, os homens do povo, que são os operários ruraes.

estigmatizado em relação à variedade culta da língua portuguesa, que os separatistas vão buscar as marcas de sua suposta diferença cultural.

Isto porque, uma vez que o sistema de diferenças linguísticas se une ao sistema de diferenças econômicas e sociais (cf. Bourdieu, 1977), a valoração do dialeto caipira, em grau suficiente para elevá-lo à categoria de língua legitimada na sociedade brasileira, só seria possível mediante sua imposição no campo escolar, político, etc. Assim, se por uma manobra política (de unificação, por exemplo) os intelectuais republicanos paulistas, sujeitos socialmente reconhecidos como portadores da “melhor variedade linguística”, passassem a empregar em seu discurso formal o português caipira, eles teriam de lidar com essas diferenças que separam os grupos sociais, as quais encontram seu princípio justamente nos modos de aquisição socialmente distintos e distintivos29.

Mas os separatistas e republicanos paulistas em geral não tocam essas questões, sobretudo porque o uso da língua normatizada reforça as hierarquias sociais que as elites desejam manter. Nesse quadro em que está em jogo o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão (nos termos de Bourdieu, 1977), a paulistanidade vai sendo construída pela elevação de símbolos outros, forjados por essas mesmas elites que procuram fixá-los.

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C A P Í T U L O I V

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