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Este ponto pretende abranger, fundamentalmente, aspectos do fenómeno da

toxicodependência em Portugal nos finais do século XIX e, em particular, no século

XX, remetendo para aspectos políticos, sociais e legislativos que atravessam estes períodos.

Salvado Ribeiro (1999) reúne num artigo várias referências sobre a história dos consumos em Portugal no último quartel do século XIX e durante o século XX. Em relação ao ópio, o consumo deste restringe-se, nestes períodos, a uma elite de escritores e artistas, protagonistas de movimentos literários e artísticos, à semelhança do que acontecia em França. O autor faz referência a obras de Almeida Garrett – “Frei Luís de

Sousa” -, Eça de Queirós – “O Mistério da Estrada de Sintra” -, Ramalho Ortigão e,

por fim, Fernando Pessoa, no seu heterónimo Álvaro de Campos – “O Opiário”. Em todas estas obras está bastante patente que os autores conheciam bem as características psicoactivas do ópio.

A cocaína, que veio substituir a dependência do ópio, é associada, tal como na Inglaterra, a um estilo de prostitutas de luxo. A moda da cocaína atinge o seu auge nos anos 20, após a 1ª Guerra Mundial. A cocaína desaparece por altura da recessão dos EUA, em 1929, que se reflectiu obviamente em Portugal.

Em relação à heroína, as referências remetem à década de Trinta, com Reinaldo Ferreira, no papel de Repórter X. É também nesta altura, segundo Salvado Ribeiro (1999), que a polícia começa a observar os fenómenos de tráfico e consumo de drogas, nomeadamente junto de prostitutas.

Considerando o caso dos cannabinóides, o consumo destes emerge desde o início da guerra colonial (1961). O primeiro festival de música em Vilar de Mouros em 1972, onde compareceram milhares de jovens, à semelhança do que aconteceu em Woodstock (1968), é a primeira demonstração colectiva de consumo de liamba e, em menor escala,

de LSD. De notar, que na Europa, as mudanças socio-políticas vêm a acontecer na sequência dos EUA e, em Portugal, o consumo de substâncias nestes períodos também se reveste de um carácter ideológico, de contestação ao regime político, à guerra colonial e ao sistema de valores instituídos.

Para os portugueses, a droga parecia não existir, exceptuando-se as seguintes situações: se existisse era nas colónias ultramarinas, entre os marginais ou em pequenas quantidades, por uma questão de curiosidade. Por outras palavras, ou se negava simplesmente o fenómeno ou se circunscrevia a uma dimensão aceitável, porque socialmente pequena e porque sinónimo de uma condição sub-humana, também ela minoritária (Urbano, 1994).

Em Portugal, o avanço do consumo de drogas foi rápido, surgiu a explosão e com ela a

politoxicodependência. De um fenómeno praticamente desconhecido, o consumo de drogas ilegais adquiriu, nas últimas três décadas, uma preocupação crescente. Até aos

anos 60, o consumo de produtos estupefacientes, esteve manifestamente circunscrito a elites, sendo o registo dessa informação medianamente consistente. Até ao início da década de 70, a droga não constituiu, nem uma referência colectiva, nem um problema social. Portugal, país vinícola por excelência, a tradição de usos e abusos de substâncias psicotrópicas ficou até este período praticamente confinada às bebidas alcoólicas. Mas, esta é uma droga que usa nome próprio e não entra no domínio da ilegalidade (Fernandes, 1997-1999).

Em termos gerais, o panorama português quanto ao fenómeno da toxicodependência é actualmente muito semelhante ao da maioria dos países ocidentais, nomeadamente no que diz respeito ao número crescente de toxicodependentes, visível através de indicadores como tráfico, consumo, tratamento, repressão e justiça penal. De igual forma, existe a tendência múltipla para: a) a utilização das chamadas drogas duras (particularmente a heroína); b) a descida da faixa etária dos consumidores; c) a generalização do consumo a todos os estratos socio-económicos.

À semelhança dos restantes países ocidentais, em Portugal, a droga, é na actualidade um tema social complexo, alvo privilegiado de curiosidade e de preocupação dos cidadãos.

As leis publicadas em Portugal sobre o consumo e comércio de drogas surgiram sob o impulso e no decorrer de compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado. As primeiras leis da droga em Portugal remetem, segundo Poiares (1999), ao paradigma fiscal, durante o período de 1914 a 1970. Verifica-se a elaboração de várias leis, que tentam ir implementando os acordos internacionalmente assumidos por Portugal, nomeadamente nas Conferências de Xangai (1909) e de Haia (1911-1912), nas quais o comércio de substâncias é fiscalizado pelo Estado e não há referência a um perfil do consumidor. Até ao termo dos anos Sessenta, o consumo de drogas ainda não representava um problema grave, nem ao nível da saúde pública, nem em termos sociais. Os consumos estavam delimitados a uma elite que não entrava em conflito com a ordem instituída, não necessitava de recorrer a crimes para assegurarem o consumo e, talvez, por isso, a lei não incriminava directamente o acto de consumir drogas.

Os primeiros sinais de alerta dão-se na década de 70, por via do poder político, é publicada uma nova lei substantiva das drogas (Decreto Lei n.º 420/70, de 5 de Setembro) que assenta numa perspectiva criminalizadora do utilizador de drogas (o consumo passa a ser punido com prisão até 2 anos), claramente apoiada na necessidade de Portugal aderir às convenções internacionais.

Entre 1970 e 1975, Portugal passa por numerosos acontecimentos de ordem social, económica e política. A droga começa a estar associada a acontecimentos que colocam em causa a ordem social estabelecida (greves, movimentos estudantis, insatisfação nas forças armadas relativamente à guerra colonial) e ao mesmo tempo que é referenciada como loucura e morte. É neste período, antes do 25 de Abril de 1974 que, em Portugal, surge a primeira campanha publicitária contra a droga que associa as palavras: “Droga

– Loucura – Morte”, consubstanciada no cartaz de fundo preto, salpicada com iniciais

LSD, tendo como imagem central uma caveira. Tal como refere Fernandes (1993), esta campanha poderá ser responsabilizada pelo aliciamento ao uso de drogas, despertando a

atenção para algo que, verdadeiramente, era ainda inexistente entre nós. Devido à contestação política e social da época, ao regime conservador vigente antes de 1974, o consumo de drogas era associado à subversão e, por isso, crime, pelo que este período é considerado por Poiares (1999) como estando orientado pelo paradigma criminal – utilizar drogas passava a ser, de modo explícito, um factor criminalmente tipificado, que exigia punição.

Após o 25 de Abril de 1974, verifica-se uma propagação dos consumos. Com a descolonização e consequente regresso a Portugal de muitos “retornados” das ex- colónias (várias pessoas que regressaram a Portugal consumiam drogas como a liamba), dá-se a instalação de um mercado de drogas ainda que embrionário. O mercado público de venda de drogas, geralmente cannabinoides (a erva, a liamba, o haxixe) encontra nalguns jovens os clientes privilegiados, num período pós revolucionário cheio de acontecimentos políticos e de incentivos para a emancipação de estilos de vida que contradizem os modelos clássicos da sociedade portuguesa. A droga transforma-se num fenómeno de rua, estabelecendo-se em locais (cafés, ruas e praças) onde se encontravam os consumidores e onde se realizavam as transacções de droga.

Em 1976, é lançada uma segunda campanha: “O flagelo da liamba”. A relação do consumo de liamba a um flagelo não se baseia em estudos que comprovem a sua veracidade, trata-se antes de “uma vontade política de ordem, de estabilidade, de

regeneração do corpo social” (Agra, 1993, p.37) que escolhe a droga como sinónimo de um caos revolucionário que é necessário fazer parar. A consciencialização da existência de uma nova desordem exige, por outro lado, a introdução de respostas especializadas. Com base no suposto aumento de consumos, criam-se, nesta época, os organismos de combate às drogas, donde saem os primeiros especialistas portugueses, repartidos pela vertente policial e médico-psicológica.

Gerado o alarme e criadas as respostas burocrático-repressivas face a um problema praticamente inexistente e com escassas implicações a nível social, a droga adquire as condições para se estabelecer como “problema social”. Por outro lado, à medida que os jovens vão contactando com as drogas, “o fenómeno torna-se visível e as expectativas

sociais sobre a eminência de um flagelo têm os seus primeiros sinais confirmatórios”

(Fernandes, 1990, p. 214).

A partir da década de 80 do século passado, os padrões de consumo alteram-se, com a introdução de um mercado de venda de heroína. Fernandes (1993), com base nos seus estudos etnográficos, constata que esta nova fase é, então, caracterizada por um novo produto (heroína), novos actores sociais (os “junkies” e, concomitantemente, os vendedores de retalho – “dealers”), um mercado e um novo tipo de território (bairros sociais e zonas desfavorecidas).

As drogas passam a levantar os seus dois problemas essenciais: o consumo e o acesso ilegal aos produtos condicionado pelos preços super-inflaccionados. A droga aparece, cada vez mais, como uma entidade mágica, de propriedades demoníacas, que infecta o corpo social, responsabilizando-a pela origem de outras questões sociais, nomeadamente a insegurança urbana e a criminalidade.

Face a este cenário o poder político foi respondendo com medidas legislativas, nomeadamente com leis substantivas (Decreto Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro e Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) que veio permitir que se privilegiasse mais o

Tratamento do que a punição, separando-se claramente as figuras de traficante e

consumidor, desaparecendo igualmente o Tratamento compulsivo dos

toxicodependentes. Destaque-se que o presente diploma prevê que a prisão preventiva

não é imposta ao arguido que tenha em curso um programa de Tratamento de

toxicodependência, salvo se existirem, em concreto, necessidades cautelares de especial

relevância.

O sistema de controlo de droga distribui-se por três tipos de controlo (Castel e Coppel, 1991, p. 238): os hetero-controlos entregues pela sociedade ao aparelho repressivo e ao aparelho médico; os controles sociais, promovidos pelas instâncias agenciadoras da socialização (família, escolas, igreja, associações) e os auto-controles através do que Giddens (1991) designa pela monitorização reflexiva da acção.

A organização do sistema societal em que se insere o sistema da droga torna este concebível como um sistema de vasos comunicantes em que o accionamento privilegiado de um tipo de controlo corresponde ao enfraquecimento dos restantes (Erickson, 1993). Os anos 90 são marcados por um extraordinário reforço dos hetero-

controlos em Portugal, quer na vertente repressiva quer na vertente medicalizada,

consequência do “pânico moral” que se abateu na sociedade portuguesa em relação à

droga.

Os governos têm feito da droga uma prioridade mobilizando investimentos crescentes em meios organizacionais, logísticos e humanos das polícias para este fim; procedendo a constantes agravamentos das sanções penais dos crimes relacionados com a droga; e dotando um dos poucos serviços verticalizados existente no Ministério da Saúde – o

Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) – de uma rede alargada de Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT´s) em quase todas as capitais de Distrito e em

alguns concelhos em torno das grandes cidades.

O aparecimento da SIDA nos anos oitenta conduziu a uma nova visão da

toxicodependência. Face à falência explícita dos mecanismos repressivos e clínicos do

combate à droga, tem-se vindo a verificar uma crescente percepção da necessidade de se equacionarem novas respostas, que passam pela introdução de medidas, que visam assegurar condições sanitárias do uso das drogas e o controle social dos consumidores. Estas perspectivas, defendidas por diversos especialistas, motivam, quer a adopção de Campanhas de Prevenção, quer a discussão pública de questões controversas como a liberalização das drogas, pelo menos as consideradas mais leves, a sua descriminalização, o uso terapêutico e a eventual criação de locais de distribuição controlada de droga.

Nos anos 90 do século passado continua a assistir-se ao aumento do consumo e tráfico da heroína, a dita droga dura mais consumida em Portugal. Mas, surgem as novas

drogas, produzidas em laboratório como o ecstasy, que tal como a primeira tem graves

Segundo João Goulão (2008) a toxicodependência já foi a primeira preocupação dos Portugueses; era-o em 1997, pelo que foi colocada na primeira linha das prioridades políticas. Hoje fica-se pelo 13.º lugar no ranking das prioridades políticas.

Em suma, a toxicodependência com o carácter epidémico que hoje conhecemos, constitui um dos problemas mais paradigmáticos dos nossos dias. Raro é o dia em que nos média não lemos uma notícia sobre este fenómeno. É uma realidade trágica que atinge todas as cidades e já chegou às aldeias, envolve adolescentes e jovens, invade famílias desestruturadas e famílias com hábitos de tradição irrepreensível, afecta todos os estratos sociais, todas as profissões, todas as religiões, todas as pessoas.

Algumas tentativas de explicação do fenómeno escondem-se nos problemas gerados pela sociedade em que vivemos e sugerem como factores decisivos da sua proliferação o valor excessivo do aspecto económico, instabilidade, individualismo, imediatismo, degradação dos padrões familiares, falta de motivação por parte dos jovens e tempos livres desocupados.

O fenómeno das toxicodependências tem gerado uma enorme preocupação no seio da sociedade, mobilizando-a, bem como aos sucessivos Governos, para o encontrar de soluções eficazes na sua acção.