A Legislação diz que o toxicodependente é doente, o próprio sistema de intervenção, ou seja, os CAT estão sob a alçada do Ministério da Saúde. Antes de verificarmos o que dizem os especialistas da toxicodependência, interessa então reflectir um pouco sobre o conceito de doença ou doente.
Sournia (1992, p. 18), numa análise histórica da medicina, refere que “(…) a noção de
doença é diferente de um povo para outro e de geração para geração: aqui normalidade, ali inquietação, dor considerada tolerável por um grupo, necessidade de hospitalização noutro, esterilidade ou enfermidade aceite entre uns e rejeitada por outros”.
Neste sentido, Kleinman (1978, 1980, 1992) e Good (1977, 1988), Zempléni (1985) in Ramos (2004, p. 103) “a doença é culturalmente construída no sentido de que a forma
como a percebemos e como lidamos com ela é baseada nas nossas explicações de doença, nos sistemas de valores e nas posições sociais que ocupamos, havendo no mundo e nos diferentes sistemas de valores e nas posições sociais que ocupamos, e nos diferentes sistemas culturais uma grande variedade de representações de saúde e doença, uma pluralidade de recursos aos cuidados e diferentes modelos explicativos de saúde e doença”.
Ser doente implica incorporar essa mesma doença, como se a sua identidade fosse construída nesse pressuposto. É o que se passa com o toxicodependente: ser doente implica que todo o seu funcionar, todo o seu ser será em função disso e do que simbolicamente isso acarreta. Ser toxicodependente, portanto implica a construção de uma identidade baseada na ideia do que isso representa: criminoso, vítima, mentiroso, inocente, doente, etc. Mesmo que por vezes existam vários papéis que entrem em conflito, ou sejam contraditórios.
Sendo a identidade (co)construída analogicamente, na relação com o outro, ser doente implica também ser co-construído nessa relação. O outro também o vê e o descreve de determinada forma que vai influenciando em como o doente se vê, ou o
toxicodependente se vê. Será então a construção do significado de ser toxicodependente,
socialmente construído? E porque será que, com algumas doenças, o diagnóstico se incorpora na própria identidade da pessoa? Nunca se ouviu ninguém dizer: eu sou
cancro no pulmão, ou sou um AVC… Por outro lado, há outras doenças que definem a
própria pessoa: sou seropositivo, sou alcoólico, sou toxicodependente. Se reflectirmos um pouco, é como se a pessoa que está por detrás do rótulo, fosse menos relevante do que o próprio diagnóstico que lhe dá o nome, o diagnóstico torna-se a própria pessoa. Quartilho (2001, p. 79), acerca da definição de “illness”, afirma que é algo que a pessoa tem, e não que um órgão da pessoa possa ter, e acrescenta que “(…) é constituída pela
resposta subjectiva do indivíduo, de seus familiares e conhecidos à sua situação de saúde, em particular os modos como estes afectam as relações com as outras pessoas e os vários passos que tem de percorrer para resolver a situação”. O mesmo autor, inclui
ainda todos os significados do sintoma, para além do mau estar, pois afirma que existem significados da ordem da cultura e do contexto social. Há sintomas específicos que adquirem, um carácter de marca ou carimbo, em determinadas épocas histórico- culturais. Como é o caso da tuberculose, da lepra, etc. Ainda segundo Quartilho (2001, p. 80), existem doenças “(…) que implicam associações simbólicas, com consequências
no modo como os doentes se vêem a si próprios e também na forma particular como são olhados, discriminados ou rejeitados, pelas outras pessoas e instituições”.
A própria pessoa internaliza e incorpora as metáforas e o simbolismo que acompanha a doença. Exemplo disso, Quartilho (2001) faz referência a um debate político de campanha eleitoral para as presidenciais americanas, em que um dos candidatos (o mais fraco, em termos de sondagens), afirmava com toda a clareza, que os seropositivos viviam o castigo de Deus, porque ou tinham sido promíscuos sexualmente, ou
drogados. Mereciam ficar doentes. O HIV e a toxicodependência são, por norma, as
doenças mais conotadas negativamente. Assumem-se como uma espécie de declaração de guerra, contra os “valores convencionais, perpetuada por estilos de vida imorais,
pela promiscuidade, e pela influência nociva de minorias estigmatizadas que incluem habitualmente os homossexuais, as prostitutas, os imigrantes e os toxicodependentes”
(Quartilho, 2001, p. 80). Por outro lado, ser doente implica que, os outros que o rodeiam, reconheçam o seu mal estar, que haja um consenso nos significados dos sintomas, para que o seu papel de doente lhe possa ser concedido. É um direito seu e com certeza de uma forma muito pessoal vai dinamizando o apoio e atenções necessários. Funciona para pequenos momentos que se está doente, mas torna-se mais complicado na situação de doenças prolongadas, ou na cristalização do papel de doente. Ficar doente por momentos é poder ser pequeno outra vez, no verdadeiro sentido do cuidar, dos mimos. Ficar doente ou assumir esse papel durante muito tempo é por vezes ficar com bloqueios no crescimento ou nos processos de autonomia.
Interessa também em termos de conceito, fazer uma abordagem à evolução do modelo biomédico ao modelo actual que é o biopsicossocial na forma como vêem a doença e o doente. No modelo biomédico da medicina, a doença é vista como um desvio ou um mau funcionamento da biologia do corpo. Para este modelo, o corpo continha a doença, nunca as pessoas, como se o corpo fosse parte separada da pessoa. Era no corpo humano que se buscava a causa de todas as doenças, como se fosse uma máquina que apresentava uma avaria. O corpo seria então visto e analisado de uma forma
“coisificada”, distante de qualquer ligação aos afectos ou emoções, etc. Pode dizer-se
que este modelo de causa linear está em crise e que nos últimos anos se tem assistido a algumas críticas, dando espaço ao aparecimento de outros modelos como é o caso do biopsicossocial e do holístico. Este último visa uma abordagem global da pessoa, dando ênfase ao aspecto relacional médico/doente. O primeiro defende a inclusão das dimensões biológica, social e psicológica da pessoa. A partir deste momento inclui-se um aspecto quase curativo que é a relação médico/doente.
Vários autores têm-se questionado sobre os conceitos normal (saúde) e patológico (doença) e até que ponto estão ou não ligados às significações pessoais e às normas sociais e culturais. “As interpretações ou as significações da pessoa sobre o seu estado
normal é influenciado por critérios subjectivos ou idiossincráticos e mesmo culturais”
(Reis, 1998, p. 47).
Por vezes, mesmo depois do médico tranquilizar o seu paciente, de lhe dizer que tudo irá correr bem, que pode voltar à sua vida… mesmo assim, ele sente-se doente e incapaz de trabalhar. É neste espaço que o modelo biomédico e tradicional se tornou insuficiente, e redutor. “Não basta identificar alterações somáticas e arranjá-las para
tratar pessoas (…) o processo de cura envolve muito mais do que simplesmente um Tratamento biológico, cirúrgico ou físico-químico” (Reis, 1998, p. 47).
A doença é então ao mesmo tempo uma realidade social e individual e está muito próxima de um momento crucial das nossas vidas, a morte, ou a possibilidade de lhe escapar. A ameaça de morte é constante nas doenças ditas mais graves, mas o sentimento de lhe escapar, de a vencer, torna-nos um pouco imortais ou até, um pouco deuses. Ao contrário do que o modelo mais clássico concebia, não é o nosso corpo que está doente, como se fosse uma entidade separada de nós, somos nós que estamos doentes. Então, estar doente não é simplesmente uma situação ou experiência biológica ou física, “com efeito, estar doente é percepcionar ou experienciar o corpo no contexto
da existência individual” (Reis, 1998, p. 47).
Antes da pessoa doente procurar um médico, ela já iniciou uma construção de significados para a sua doença, através das alterações percebidas e sentidas no corpo. Na presença do médico ou do terapeuta, o doente (que ainda não o é) já tem a sua narrativa construída sobre os sintomas e possível doença. É um discurso pontuado por momentos, emoções e sintomas que o próprio pensa serem importantes para que o médico confirme a sua doença. O seu conceito de doença ou saúde leva-o a fazer a selecção dos temas na sua narrativa na presença do médico. “O médico por seu lado, foi
treinado para reconfigurar ou traduzir a narrativa do doente a partir das suas teorias médicas” (Cruz, 2000, p. 121).
É o diagnóstico que vai confirmar a doença e ao mesmo tempo confirmar o papel de doente à pessoa que está à sua frente.