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2.3 – ENCLAVE VERSUS DESENVOLVIMENTO SITUADO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

No documento Coari : petróleo e sustentabilidade (páginas 74-80)

SUSTENTABILIDADE, DESENVOLVIMENTO SITUADO E PARTICIPAÇÕES GOVERNAMENTAIS

2.3 – ENCLAVE VERSUS DESENVOLVIMENTO SITUADO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

2.3.1 – A questão do enclave

A Globalização trouxe em seu bojo uma mudança radical no papel do Estado. Segundo Piquet (2003), o Estado, nas décadas de 1950 a 1970, era o agente capaz de compensar as tendências do mercado, agregando a componente do bem-estar social. O mercado, por não operar como mecanismo regulador, não competia com o Estado na execução do planejamento regional, tratado em âmbito do planejamento nacional, onde se definiam os destinos das regiões; assim, por exemplo, foi com as três primeiras fases do modelo de ocupação incentivada para a Amazônia, abordado no capítulo um.

Nesse contexto de proteção estatal visando o bem comum, a acumulação de capital era muito mais localizada em seu circuito de reinversão do que é hoje. As empresas cresciam em cada planta produtiva e se esperava que durassem décadas. A figura do “enclave” - entendido como o empreendimento dirigido do exterior e separado do seu entorno – era uma forma de investimento malvista.

Piquet (2003) também declara que, q partir dos anos 1980, a acumulação de capital passa a ter outro sentido com a Globalização. O capital passa a ter uma enorme ubiqüidade,

pode estar em qualquer região produzindo para qualquer outra, e cada região ou cidade torna- se uma opção a mais entre muitas. Torna-se cada vez mais rara a figura de um grande capital localizado em seu circuito de reinversão. Ao contrário, cada parte desse capital se articula diretamente com as outras, em escala global e, cada vez menos, passa pelas estruturas de produção regional ou nacional, cabendo ao Estado apenas não interpor obstáculos “artificiais” ao livre jogo das forças de mercado, movendo-se a uma velocidade que guarda pouca relação com os tempos sociais e políticos.

Nesse cenário globalizado, os investidores investem onde estão competitivo investir, sem escrúpulos ligados a desenvolvimento situado, em prol do social. Quebra-se a estrutura de sítio, descrita em Zaoual (2003), restando aos lugares – regiões e municípios – competir por esses investimentos.

O papel do poder público local passa a ser o de induzir, o de mobilizar e o de promover o crescimento econômico de seus próprios espaços. Assim, esse capital, móvel, dinâmico e divorciado do social, determina ao poder público local assegurar a oferta de equipamentos, a baixar os custos tributários e a conceder subsídios, a fim de oferecer um “ambiente adequado” para as empresas que para aí se dirijam. Piquet (2003) salienta que tal disputa ferrenha por investimentos leva à perda de históricas conquistas trabalhistas, salariais e de seguridade social.

Surge o filho bastardo desse capital “sem alma”, a figura do enclave, aceita com tranqüilidade, a despeito da mesma não mobilizar e nem induzir mudanças de qualidade no aparelho produtivo local. O enclave se caracteriza pela opulência em relação à pobreza periférica onde se situa. A Globalização não é a sua mãe, pois foi parido desde a existência do capital em si, todavia, o adotou como filho primogênito, pois ele encarna seu espírito volátil, descompromissado socialmente com essa periferia que, de alguma forma, o apóia.

A figura do enclave está presente nos hotéis luxuosos localizados em paraísos ecológicos, cercado por aldeias e comunidades paupérrimas, que cedem sua força de trabalho sustentada normalmente por baixos salários, e que são proibidas de usufruir as benesses desses mesmos paraísos em que nasceram e se criaram. O enclave também está presente na butique luxuosa que se instala na favela periférica.

O enclave não considera a perspectiva de desenvolvimento nacional, local ou situado, e cabe ao poder público local a responsabilidade de produzir o milagre de resolver os problemas: de emprego e de renda, os ambientais, os de falta de moradia, os das invasões clandestinas de espaços, os da miséria, entre outros tantos, pois necessita do poder público a

governabilidade do sistema.

Enfim, o enclave pode até se aproveitar da mão de obra local para serviços braçais, mas não a qualifica nos serviços que são a razão de ser de sua existência na região em que se instala. Por questões puramente econômicas, prefere importar a mão-de-obra seletiva que necessita do que investir tempo e dinheiro na formação humana de sua periferia.

A indústria do petróleo, em um contexto atual de globalização, segundo Piquet (2003), contém fortes efeitos de encadeamento que podem deflagrar virtuosos processos de mudanças estruturais, ou, ao contrário, pode permanecer como mero enclave na região que se localiza. A exploração de petróleo pode ser tão pouco benéfica para uma economia local quanto qualquer outra produção extrativista.

A indústria do petróleo pode transformar um município em sua base de apoio e alavancar seu desenvolvimento enquanto existirem jazidas a serem exploradas, não considerando valores antrópicos locais e saberes dos sítios onde está localizada. Ou, por uma estratégia de premência de exploração de jazidas, importarem sua base de apoio, ignorando a oferta local.

2.3.2 – A questão do desenvolvimento situado

Tunes da Silva (2005) afirma, ao apresentar os conceitos de Hassan Zaoual (2003) relativos ao desenvolvimento situado, que o processo de enraizamento da economia nas práticas cotidianas vividas pelas pessoas é fundamental para a proposição de estratégias de desenvolvimento. Isso é diametralmente oposto da proposição do enclave, que não considera os fracassos históricos de modelos de desenvolvimento baseados na lógica da economia de mercado.

Tunes da Silva (2005) também afirma que o desenvolvimento situado parte do princípio de que o homem é um animal territorial que necessita vitalmente de crer e se inserir em lugares de pertencimento. Tais lugares de pertencimento, aos quais denomina “sítios simbólicos de pertencimento”, são multidimensionais, pois abarcam uma variedade de aspectos relacionados à vida dos homens, tais como mitos, crenças, experiências, memórias, saberes sociais, teorias, modelos, ofícios, ações, história, entre tantos outros. É por meio do sentimento de pertencer a um sítio que o homem encontra o sentido, a ancoragem e o vínculo social de que necessita para viver, e isso a economia do capital configurada em um enclave é incapaz de lhe fornecer.

O ser humano desenraizado é expropriado de sua própria vida, perde a capacidade de conduzi-la e de encontrar nela sentido. Entra em estado de servidão, pois necessita de critérios

e recursos exogenamente originados que dão sentido à sua vida. O êxodo rural em uma migração para área urbana de um município em busca de possíveis empregos e melhor qualidade de vida, como o supostamente oferecido por uma indústria petrolífera, acarreta esse desenraizamento. Tunes da Silva (2005) declara que ele ao aniquilar o passado, desfere um golpe mortal na capacidade das pessoas de construírem seus futuros, tornando-as vulnerável às potências tutelares, perdendo sua autonomia, com novas formas de subordinação e dominação.

O desenvolvimento situado é possível onde existem comunidades, onde a ética requer que a vida, individual ou coletiva, seja fundada na realidade do encontro dialogal. O desenvolvimento situado aponta para a diversidade, onde cada problema que se apresenta a uma comunidade terá um desenrolar imprevisto e imprevisível, imprevisibilidade essa que é fruto da ação criativa das pessoas que a constituem. Ele cria hierarquias ou classificações entre povos e culturas e não permite a opressão dos sistemas totalitários e totalizantes. Tunes da Silva (2005) afirma que o discurso do desenvolvimento situado não nega o discurso do desenvolvimento sustentável. Ele o assimila, altera, incorporando para si aquilo que julga pertinente.

O enclave, incontestavelmente, traz inúmeros atritos entre o seu modelo de exploração econômica e os sítios da população que o recebe. Zaoual (2003) afirma que suas práticas de transplante estão superadas. A visão dos especialistas que concebem o enclave não é a mesma da população, ator principal do sítio que o recebe. Assim, os enclaves não dispõem de visões de dentro, de valores, revelações, revoluções, sofrimentos e experiências do grupo humano em questão. Sua conseqüência é o desenraizamento dos indivíduos de seus territórios imaginários e espaciais de seus sítios; que se fossem considerados, poderiam amenizar os efeitos e o modo de funcionamento do mercado.

Nesse sentido, Zaoual (2003) ao apresentar a teoria econômica dos sítios, visa combinar cultura, economia e ecologia, com ênfase na escala local e na diversidade das práticas econômicas, como resposta a opção globalizante da implantação de um enclave. O enclave promove o declínio do sítio, pois a sua riqueza prometida na realidade promove a perda do controle sobre seu meio ambiente natural e social. A economia do enclave, contrária ao do desenvolvimento situado, passa então a propagar valores perversos, como os do oportunismo, do migrante que se instala na periferia de um município condenado a uma situação de miséria.

A renda do petróleo presente em um enclave traz destruições sociais em relação aos sítios envolvidos. No limite, parafraseando a analogia de Zaoual (2003), declarar que esses sítios se tornam uma simples bolha que explode ao menor movimento errático do mercado externo de comercialização petrolífera, o que torna a região em um simples reservatório de regulação para o capitalismo mundial, durante o tempo em que seu meio ambiente não estiver ainda totalmente destruído.

A elite estéril do município onde ocorre a exploração petrolífera vive e governa em detrimento da diversidade das culturas e da natureza dos sítios onde o enclave se estabeleceu. Com o esgotamento das jazidas exploradas, esse sistema é levado a uma implosão social.

A saída para esse impasse pode ser encontrada na teoria dos sítios, que defende a idéia de uma “economia flexível”, capaz de se adaptar à variedade dos terrenos humanos e de seus imaginários locais. Essa teoria supõe que seja questionado o conhecimento dos especialistas da indústria petrolífera e reabilitado o papel ativo das populações quanto ao seu próprio futuro.

Com efeito, a transferência de receitas advindas da exploração de hidrocarbonetos no território municipal não redunda em seu desenvolvimento, se não houver mobilização das capacidades locais de inovação e de descoberta. A não consideração dessas capacidades leva ao desperdício, à corrupção e à dívida, sem verdadeira melhoria do nível de vida da maioria da população.

O enclave, com a sua “modernidade transplantada”, gera o caos econômico e cultural, podendo chegar a situações explosivas, quando crescem a demografia e as desigualdades Ao se aproveitar das jazidas de hidrocarbonetos, implode os sítios locais e empurra sua população para migrações sem perspectivas que, por sua vez, destrói os ecossistemas e as suas biodiversidades.

O enclave petrolífero tem o poder de destruir os sítios por não oferecer a esses uma capacidade de adaptação. As populações perdem sua ética e se tornam objetos de manipulação por parte dos atores sociais que enxergam oportunidades estratégicas para seus próprios interesses de qualquer ordem, e daí surgem genocídios e migrações forçadas, com intensa exclusão social que, no caso do município de Coari, que abriga em seu território o enclave da PPU, pode ocorrer uma inevitável destruição de áreas florestais e seus ecossistemas.

Nessa perspectiva, Zaoual (2003) declara que a economia dos sítios exige respeito à liberdade das populações locais, para que elas possam formular e executar seus projetos de futuro com base em uma estreita relação entre suas crenças e suas práticas. Isto é um modo de

situar no tempo, no espaço e na cultura as leis da mudança, inclusive a econômica. É nesse contexto científico e de práticas que as noções de homo situs, da racionalidade situada, do desempenho situado e da avaliação na perspectiva dos sítios são mais operatórias que as clássicas categorias da economia como homo economicus, da racionalidade econômica e do lucro individual.

O desenvolvimento situado possui um enfoque interdisciplinar, ordena sua população em torno de um sentido e, por meio de entidades extra-econômicas, limitam os apetites destruidores dos políticos locais e empresários, fontes corriqueiras de desordem social. Ele tem a capacidade de organizar uma ordem motivadora e de produzir uma coerência de conjunto, desempenhando o papel de regulador social. Sem ele, a desordem prevalece sobre a ordem e conduz, assim, a pânicos de sentido e implosões.

Diante desses riscos de entropia e de degenerescência, sinônimos de perda de centro, Zaoual (2003) declara que o sítio desenha horizontes locais de certezas e de eqüidade e, ao mesmo tempo, assegura coesão à organização social. O sítio a estabiliza no sistema das representações dos agentes da organização e fornece o sentido e a direção aos atores sociais, ao poder público municipal e à empresa exploradora.

O paradigma da “sitiologia” constitui-se em um quadro no qual possa se inserir facilmente diferente formas de vida econômica, inclusive a exploração comercial de hidrocarbonetos, com a condição de se estabelecer um princípio de conveniência: o respeito ao pluralismo. Somente na perspectiva desse paradigma plural, as múltiplas formas de vida econômica podem fazer sentido, o de coexistência pensada, negociada e mesmo, enriquecedora, levando assim em consideração os riscos de implosão a que se expõe todo sistema que destrói a pluralidade antrópica. Com base nisso, a hegemonia da economia de mercado da exploração de hidrocarbonetos deve ser reduzida, contida e acompanhada por um pluralismo “ético e econômico”, para preservar a variedade das outras formas de vida, das quais precisa essa própria economia, sob pena de causar destruição ambiental de tal ordem quando esgotarem as jazidas de hidrocarbonetos.

Parafraseando Zaoual (2003), os hábitos e os costumes do sítio buscam um “equilíbrio situado”, articulando a redistribuição das riquezas originadas pela exploração de hidrocarbonetos em si e de outras despesas individuais e comunitárias com a atividade econômica em si, tornando-se não em um empreendedor econômico clássico, mas em um “empreendedor situado”, completamente inserido no seu sítio, em que seu comportamento tem múltiplos objetivos: sobrevivência de sua atividade, transferências comunitárias, logo,

coesão social de seu sítio e das redes de pertencimento nos arredores, aprendizagem e transmissão de seu saber ser e de seu saber fazer, entre outros.

Assim, é mister que os atores sociais envolvidos na exploração de hidrocarbonetos, a saber, empresa exploradora e poder público, não a concebam como a um enclave e considerem, sim, como a um desenvolvimento situado e sustentável, evitando toda a transposição mecânica de conceitos, definições, ou modelos, sem considerar a crescente complexidade dos sítios locais. A implantação do diálogo, a preservação dos valores situados onde se incluem as verdadeiras vocações sociais, culturais e econômicas da população municipal, bem como, a participação dessa população na gerência das transferências de receitas resultantes da exploração de hidrocarbonetos são os pré-requisitos éticos, morais e que garantirão uma justiça intergeracional para aquelas gerações vindouras que não poderão usufruir dessas riquezas já exploradas.

2.4 - GESTÃO AMBIENTAL E PARTICIPAÇÃO POPULAR NA BUSCA DA

No documento Coari : petróleo e sustentabilidade (páginas 74-80)

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