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Do enquadramento polarizado dos Novos Movimentos Sociais para os movimentos de crise

CAPÍTULO I: ENQUADRAMENTO

1.4. Do enquadramento polarizado dos Novos Movimentos Sociais para os movimentos de crise

"Em sistemas de alta densidade de informação, os indivíduos devem possuir um certo grau de autonomia e de capacidades de aprendizagem e de ação que lhes permitam funcionar como unidades autoreguladas seguras" (Melucci, 1994: 101).

O descontentamento com as medidas austeritárias gerou uma vaga de mobilizações capaz de romper (pelo menos momentaneamente) com a atomização, gerando dinâmicas coletivas que estabeleciam pontes entre realidades sociais diversas. Os partidos e mesmo os sindicatos já haviam deixado de funcionar como principais pólos agregadores e as redes sociais da Internet passaram a surgir como um espaço privilegiado – mais fluido, heterogéneo e dentro das redes estabelecidas em práticas comunicacionais do quotidiano – para o espoletar de protestos políticos.

Tal surgiu como um desenvolvimento de novas formas de ação coletiva que surgiram nas sociedades industriais avançadas, trazendo mudanças estruturais (num processo cuja relevância foi evidenciada pela deslegitimação dos grandes partidos políticos na Europa, desde finais dos anos 80) e que haviam obrigado a uma reconceptualização em novas teorias dos movimentos sociais (Johnston, 1994: 3).

A imagem clássica dos movimentos sociais e da mobilização vem do século XIX, no âmbito dos movimentos de trabalhadores e do surgimento dos novos partidos políticos, no quadro do capitalismo industrial e da sua relação entre as forças de trabalho e do capital (Johnston, 1994: 4), dentro do qual surgiu na Europa uma nova consciência de condição social, de experiência partilhada, da importância da coletividade e da inclusão. Algo central nas teorias de Marx, que apresentam a classe como um todo (McDonald, 2006: 10) conceptual, clivado pela relação com os meios de produção e a construir a partir da desalineação, de uma tomada de consciência de classe e da organização do partido como vanguarda da classe operária.

Teóricos marxistas, entre outros, enfatizaram as origens de classe, ideologia, empenhamento e companheirismo – elementos que levaram à emergência dos movimentos sociais e da ação coletiva (Johnston, 1994: 4).

O consenso das democracias sociais na maioria da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial favoreceu a construção do Estado Social e a emergência de fortes movimentos 'corporatizados' de trabalhadores que desempenharam um importante papel na elaboração de políticas económicas e sociais (Foweraker, 1995: 14).

Grupos antinuclear, pacifistas, ecologistas, estudantis, LGBT, dos direitos das mulheres, de nacionalismos minoritários e de fundamentalismos religiosos surgidos na Europa e na América, a partir do final dos anos 60 e nas duas décadas seguintes, foram designados como Novos Movimentos Sociais, por resultarem de movimentações identitárias que se distinguiam dos partidos políticos e sindicatos, e por já não advirem de uma estrutura de classe homogénea ou dentro do quadro marxista da luta dos trabalhadores – lançando a perplexidade face a teorias direcionadas para compreender coletividades relativamente organizadas (Gusfield, 1994: 59). Ao mesmo tempo , a nova esquerda norte-americana e europeia também procurava ocupar esse terreno fora da perspetiva marxista da luta de classes (Turner, 1994: 87), lançando as Políticas da Identidade.

A abordagem de mobilização de recursos foi gerada nos Estados Unidos durante a década de 60 no âmbito da teoria de escolha racional, opondo-se à teoria do comportamento coletivo, que abordava as mobilizações coletivas como ações irracionais, espoletadas por crises e disfunções no sistema social. Segundo a abordagem de mobilização de recursos, a competição por recursos escassos é o principal elemento gerador dos movimentos sociais, com os seus atores a calcularem racionalmente as suas ações em função de potenciais ganhos e perdas. Numa perspetiva macro e funcionalista, autores como John McCarthy e Mayer Zald comparam os movimentos sociais a organizações económicas, numa perspetiva que coloca a competição por recursos como o elemento central para o seu surgimento e organização (Fuchs, 2006: 106).

Essa perspetiva de custo-benefício será criticada pela abordagem europeia dos Novos Movimentos Sociais por considerar que aquela não leva em conta fatores afetivos e as consequências da fricção entre a vida mundana e o sistema nas sociedades pós-industriais racionalizadas, onde, segundo Habermas, ocorre o aumento da racionalização e a sociedade civil é progressivamente colonizada pelas estruturas do Estado e da economia de mercado (Foweraker, 1995: 10). Argumentando que, embebida na lógica capitalista e dominada por fatores economicistas e de classe social, não consegue explicar a emergência dos Novos Movimentos Sociais, que reportam a questões como género, geração, etnicidade ou ambientalismo (Fuchs, 2006: 103).

A abordagem europeia dos Novos Movimentos Sociais surge de uma tradição estruturalista marxista europeia, de pensadores como Jürgen Habermas e Claus Offe, que foram influenciados pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno) e de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, vindos de uma tradição intelectual do estruturalismo marxista francês (Althusser, Balibar) (Fuchs, 2006: 103).

As teorias dos movimentos sociais surgem assim desenvolvidas na Esquerda em torno de um conflito. De um lado, surge o pensamento totalizante anglo-alemão (materializado na aliança Marx- Engels), estratificado, instrumental, global e centrado na questão do poder, da exploração e da alienação. Do outro, o pensamento emergente, norte-americano (mais 'humanista', categorial, menos intelectual e mais interacional e meso e microgrupal, e por isso multipolar, permeado pelas ideias de engenharia social, de crítica social e de aperfeiçoamento faseado e gradual – este com umas pitadas do pensamento anarquista francês dos fluxos e nomadologias de Deleuze-Guattari influenciando Appadurai), dando espaço à intervenção de atores, que na perspetiva anterior seriam subalternos (as mulheres) ou marginalizados (os étnicos). A recusa da subalternização e da marginalização não são ‘economicistas’ nem ‘revolucionárias’ e portanto não são utópicas, visando objetivos alcançáveis em poucas décadas.

Em meados dos anos 80 acentuou-se a distinção entre a abordagem americana e a europeia, tornando-se cada vez mais entendida como uma oposição entre o 'paradigma estratégico' e o 'paradigma identitário' (McDonald, 2006: 26). Com os primeiros a realçar a influência e a cultura dos lóbis, e os segundos as dinâmicas de grupos identitários e de classes sociais.

No âmbito da teoria europeia, Touraine, por sua vez, considera que a dessocialização da cultura de massa emerge da globalização, mas que nos leva também a defender a nossa identidade, colocando um dilema: "Ou vivemos juntos comunicando apenas de modo impessoal, por sinais técnicos, ou só comunicamos no interior das comunidades, que se fecham tanto mais sobre si próprias quanto mais se sentem ameaçadas por uma cultura de massa que lhes parece estranha" (Touraine, 1998: 16-17). As novas sociedades são caracterizadas por mudanças constantes e rápidas. O sujeito, anteriormente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, tornou-se cada vez mais fragmentado, composto de várias identidades, por vezes contraditórias e mal resolvidas (Hall, 1997: 12, 13). Os novos movimentos tendem a ser segmentados, difusos e diferenciados, com autonomia organizativa e elementos autoreferenciais (Johnston, 2006: 8,9).

O papel da reformulação de identidades, da cultura e da luta pela afirmação de códigos simbólicos surge como central nesses novos movimentos. Melucci enquadra-os como uma resposta a sistemas altamente diferenciados que exercem grande pressão para a integração. Sistemas onde o processamento, difusão e acumulação de informação passam a desempenhar o papel de um controle social difuso, com a criação de códigos a tornarem-se estruturantes no estabelecimento de relações, ligações e hierarquias (Melluci, 1994: 101, 102).

Essas novas formas de poder e opressão invadiram dimensões outrora privadas, como o corpo, a sexualidade, as relações afetivas ou mesmo subjetivas (processos cognitivos, motivos, desejos) e biológicas (Melluci, 1994: 101). Nesta óptica, para perceber os novos movimentos precisamos sair da categoria de grupo e de comunidade, realçar a importância dos rituais e do engajamento no mundo em intensas identificações afetivas (McDonald, 2006: 214-216).

O capitalismo moderno, que emergiu no século XIX, estabeleceu princípios de generalidade e equivalência nas formas então novas de organização das forças do trabalho. Os movimentos tradicionais foram gerados em reação a isso, com uma gramática onde singularidades e particularidades ameaçavam dividir (McDonald, 2006: 34). Bourdieu explicou como a representação e o simbólico estavam na génese dos grupos, com o trabalho dos líderes ou porta- vozes como elemento constitutivo, numa relação em que o coletivo se sobrepunha ao individual por imperativos morais (Bourdieu, 1985: 728- 737).

Como nota Castells, esse quadro económico, laboral e social foi profundamente alterado com a maior individualização dos padrões de trabalho e com a quebra da distinção entre o público e o privado, característica da sociedade em rede (Castells, 2000: 9-12, 20-22).

Os novos movimentos surgiram tentando ocupar o terreno intermédio da vida individual onde as pressões são exercidas. Tomando a forma de espaços onde a identidade coletiva é negociada, recomposta e unificada, em ligação à vida quotidiana. Enclaves de experimentações, de pequenos grupos, onde se elaboram novos códigos antagónicos aos dominantes, requerendo envolvimento dos seus atores, e que só se abrem ao exterior em torno de problemas específicos. Estas redes escondidas permitem múltiplas pertenças e não podem ser encaradas como fenómenos unitários, integrando elementos sincrónicos e diacrónicos e apresentando vários níveis de ação. Melluci defende que a análise, em lugar de os abordar como instrumentos para representar

interesses, devia procurar identificar os seus 'mecanismos' e 'dinâmicas' (Melucci, 1994: 101-127).

Gusfield considera, no entanto, que se a Teoria da Mobilização de Recursos enquadrava os movimentos sociais como 'ações sem atores', as teorias de Melluci apresentam-nos como 'atores sem ação'. Defende que é preciso distinguir movimentos lineares (sindicatos, movimentos de trabalhadores) e movimentos fluidos (miríade de ações da vida quotidiana, atos micro, menos públicos, mais difícéis de entender na ótica do sucesso ou do fracasso e implicando mudanças de valores e do modo como as realidades são concebidas). Os primeiros manifestam-se em arenas públicas e os segundos em arenas do quotidiano (Gusfield, 1994: 61-66). Mas se é questionável uma segmentação tão estanque dos diferentes movimentos nas correspondentes arenas, o Facebook inova no sentido em que esbate ainda mais as fronteiras entre o público e o privado, aumentando a sobreposição das duas arenas. Deste modo, as movimentações informes e imediatistas, manipuláveis pelo poder, corroem a ação finalista dos aparelhos organizativos da ação dialética.

O enquadramento dos Novos Movimentos Sociais no contexto global parece, contudo, marcado pela polarização atrás referida entre o pensamento anglo-germânico (velhos movimentos sociais, marxistas ou trabalhistas) e o pensamento norte-americano (Novos Movimentos Sociais, políticas da identidade), deixando de fora a cultura mediterrânica, subalternizada e conceptualizada como meramente 'atrasada' e não como diversa, o que leva a questionar a simples dicotomia anterior e a sua 'aplicação cega' ao que se tem passado na Ibéria e no norte de África e, nomeadamente em Portugal, divorciada da análise local.

Os recursos obviamente não se mobilizam por si, determinando em que direção e para que objetivos as forças sociais se vão mover. As atitudes predominantes entre a generalidade da população levam a que prefiram alguns objetivos em detrimento de outros (Inglehart, 2005: 211). A predominância dos valores de sobrevivência na sociedade portuguesa limitará o repertório e amplitude reivindicativa, em especial em formas de ação mais continuada, ocorrendo mais facilmente um recuo para as estruturas mais hierarquizadas, como os partidos políticos e sindicatos.

A relação com o Estado e as suas instituições não molda apenas o quadro geral em que os movimentos surgem e se movem, revelando-se potencialmente problemática. Os movimentos sociais podem apresentar-se como não contaminados pela política, mas caso queiram prosperar precisam de abdicar dessa ilusão e desenvolver um projeto político (Foweraker, 1995: 61, 62, 63).

Muitos movimentos tendem a assumir posições apolíticas e de independência. A manutenção dessa posição compromete a obtenção de conquistas e de objetivos específicos. Por outro lado, a maior definição do seu posicionamento e o estabelecimento de acordos e compromissos têm um potencial desagregador da sua base de apoio.

A teoria da auto-organização dos movimentos sociais considera que, em fase crítica de protestos, novos sistemas sociais de protesto emergem dos antigos, dependentes das velhas estruturas que não determinam a sua forma, conteúdo ou efeitos. A emergência de novos temas de protesto e de novos métodos, identidades, estruturas e formas organizacionais, começa como uma inovação singular que é largamente imitada, alastrando e transformando todo o sistema. A ideia remete para a reprodução do sistema com base na sua lógica interna (Fuchs, 2006: 101). Na Internet, com o hipertexto, esta dinâmica irá mais longe, apresentando-se como um infinito sistema auto-referencial. O ciberprotesto global tem um ordenamento mais policêntrico e menos definido pelo papel dos líderes, do que os velhos movimentos (Fuchs, 2006b: 277-283), produzindo efeitos reverberativos que progressivamente se extinguem. O apelo à greve no Egito em 2008, que espoletou um processo de revoltas e contestação enquadra-se nessa dinâmica.

Os movimentos sociais de base dos anos 80 passaram a coexistir nos anos 90 com Organizações Não Governamentais e com redes de movimentos sociais globais (Rigitano, 2003: 1). Estas organizações não governamentais podem ser criadas e manipuladas a partir de Estados Imperialistas, assumindo diferentes formas, nomeadamente ‘religiosas’ e desempenhar papéis cruciais de provocação de Governos autocráticos ou coloniais, como aconteceu regularmente no Terceiro Mundo.

A teoria do processo político – hegemónica na sociologia de língua inglesa – irá encarar os novos movimentos globais essencialmente como extensões de velhas formas de movimentos sociais, envolvendo novos tipos de alianças entre velhos e novos tipos de atores, situados no quadro do Estado-Nação, mas ao mesmo tempo numa arena global (McDonald, 2006: 19). A oposição entre comunalismo (baseado na religião, nação, territorialismo, género ou ambiente) e individualismo (consumismo, novos padrões de sociabilidade baseados em redes mais individualistas e o desejo de maior autonomia individual baseada nos auto-definidos projetos de vida) (Castells, 2007: 240) é uma dicotomia presente e eventualmente não resolvida nos novos movimentos.

A televisão e em especial a Internet levaram a um complexo processo de aprofundamento da globalização dos novos movimentos, para lá das fronteiras do Estado-Nação e das comunidades imaginadas, transpondo-os para fluxos e correntes mais amplas. A globalização e a descentralização do poder minou o terreno geográfico das tradições inventadas do Estado-Nação. No entanto, os contextos dos diferentes Estados-Nação ainda continuam a moldar diferentes cenários, dentro de um mundo globalizado, e a questão que a globalização levanta é se não vivemos num mundo mas em muitos mundos sobrepostos e interligados.

No caso português, é especialmente acentuada a descrença dos cidadãos em relação à generalidade das instituições, mas essa descrença estende-se também às instituições da sociedade civil, com níveis particularmente baixos de associativismo e de participação em iniciativas ou organizações coletivas (Schmiter, 1999: 455-465).

A passagem das antigas associações e antigas formas de participação (como a integração em partidos políticos e sindicatos) para novos movimentos foi encarada como algo desejável, "para corresponder às aspirações de uma sociedade democrática integrada na União Europeia" (Barreto, 2002: 56), mas os novos movimentos tardaram a surgir em Portugal e ocorreram com muito menor número do que na Europa (Cruz, 1995: 316).

Entre 1986 e 2000 o número de organizações sem fins lucrativos triplicou em Portugal (passando de 11950 para 36281), mas entre elas há uma preponderância de associações de âmbito mais tradicional, identificadas com os 'velhos' movimentos sociais, e a generalidade não tem sequer uma atuação de âmbito político. As associações culturais de cariz popular (cultural e recreio) e desportivas representam 27,5%, seguindo-se as associações patronais (14,8%), as associações humanitárias e de solidariedade (11,9%) e os sindicatos (10,6%). As associações políticas 2,1%, as de defesa do património ambiental 1%, as cívicas 0,9%, de consumidores/utentes 0,3%. As associações marcadas pelas novas temáticas da ação coletiva, para além do consumo e ambiente, quase não surgem percentualmente. Já nas relacionadas com identidades, figuram as de identidade juvenil (5%), regional/local (3,2%) e minorias étnicas (0,2%) (Cruz Martins, 2001: 96-98).

Um estudo sobre novos associativismos – com entrevistas aos protagonistas de um leque de grupos que vai desde minorias sexuais e étnicas, juvenis, aos direitos humanos e de solidariedade, ambiente, consumo e de investigação, à pedagogia e à participação dos pais – deu conta de que a

maior parte não trabalham como estruturas isoladas, procurando ganhar relevo através do trabalho em rede e da intervenção em espaços públicos, que surge como de importância primordial, muitos denotando a influência de movimentos europeus, em fase mais avançada de mobilização. Existe uma posição preponderante da classe média, média alta e de um nível de formação superior, com jovens, professores, e indivíduos ligados à educação. Para muitos, o 25 de Abril é uma referência em termos de repertório de ação. Alguns dirigentes tiveram fortes envolvimentos no 'velho' paradigma político, como os partidos e sindicatos (Cruz Martins, 2003: 109-119).

Se o desabrochar dos movimentos sociais tradicionais só ocorrera com amplitude significativa em Portugal no pós 25 de Abril, o imberbe quadro dos novos movimentos surge como fortemente ancorado no 'velho' paradigma político, nomeadamente nas participações partidárias (Cruz Martins, 2003: 119; Oliveira Nunes, 2010: in passim).

A tese "Expressões Alter-globais na Sociedade Portuguesa: Ecos Transnacionais de Novas Formas de Acção Colectiva?" dá conta do modo como decorreram as duas edições do Fórum Social Português, em 2003 e 2006, que surge como um caso sintomático do modo como os Novos Movimentos Sociais têm sido gerados em Portugal timidamente, dentro de uma cultura política débil, numa sociedade com pouca tradição de ativismo político, mas fortemente partidarizada (Oliveira Nunes, 2010: in passim).

O encontro surgiu como uma edição nacional do Fórum Social Mundial, que agregara os movimentos de alterglobalização gerados na sequência da manifestação de Seattle de 1999 e que tinha intrínseco um modelo organizativo à margem de estruturas partidárias. Em Portugal, contudo, esse espírito organizativo viria a ser adulterado, quando a organização permitiu que elementos do BE e do PCP participassem em nome dos seus partidos (Oliveira Nunes, 2010: in passim).

Na primeira edição, o encontro que reuniu 237 organizações e 2000 pessoas – entre associações sindicais, ambientalistas, de desenvolvimento local e cultural, organizações não governamentais ligadas aos direitos humanos e às questões do desenvolvimento, à defesa dos direitos LGBT, das mulheres e dos imigrantes – teve uma forte presença do BE e do PCP. Na segunda, realizada na área da autarquia comunista da Amadora, o BE não participou, passando o PCP a ter uma posição preponderante. O número de associações e indivíduos inscritos foi muito inferior à primeira edição (Oliveira Nunes, 2010: 17, 34). O Fórum Social Português não veio

entretanto a conhecer mais nenhuma edição.

É contudo de ter em conta que, embora a influência dos partidos nos fóruns sociais em Portugal tenha levado estes a desviarem-se da matriz original de funcionamento autónomo, o seu declínio não poderá apenas ser apontado a esse fator, tendo correspondido a uma tendência geral. Os fóruns sociais existiram dentro de um ciclo internacional de mobilizações contra as instituições do capitalismo neoliberal que veio depois a esmorecer. Uma herança que posteriormente influenciou os movimentos de crise, os quais ocorreram já no quadro mais localizado das contestações a instituições dos diferentes Estados-Nação.

Como vimos, a sociedade portuguesa é esmagadoramente uma sociedade onde são prevalente os valores de sobrevivência, mas existem contudo bolsas onde o pós-materialismo é dominante. Os dados do Eurobarómetro de 2008 indicam ainda que embora tenha um dos níveis mais baixos de pós-materialismo, apenas um terço da população é totalmente materialista. A maioria da população conjuga os dois quadros de valores (Magone, 2014: 161, 162).

Em sociedades com rendimentos mais altos as gerações mais jovens enfatizam mais os valores da auto-expressão do que as gerações mais velhas e os dados comparativos indicam que a diferença não estará relacionada com a mudança de atitudes em diferentes fases da vida (mostram mesmo que os valores que são predominantes quando se atinge a idade adulta tendem depois a ser sempre mantidos). A diferença dos valores predominantes estará relacionada com uma mudança intergeracional, com aqueles que cresceram com a sua sobrevivência assegurada a tenderem a valorizar mais a auto-expressão e a emancipação (Inglehart, 2005: 94). Essa mudança de valores demora a desenvolver-se e a sociedade portuguesa parecia também caminhar no sentido da transição para o aumento dos valores da autoexpressão.

No entanto, os desenvolvimentos recentes como o aumento do desemprego e as mudanças no Estado Social e consequente aumento da insegurança podem facilmente contribuir para o recrudescimento dos valores materialistas (não apenas em Portugal, mas na generalidade dos países) (Inglehart, 2005: 98).

A dicotomia da Abordagem norte-americana da Mobilização de Recursos e a Abordagem europeia dos Novos Movimentos Sociais não deixa só de fora particularidades dos países do sul da Europa como Portugal, como pode em certa medida revelar-se insuficiente e algo desadaptada para

enquadrar os movimentos de crise.

Nos anos 1960, o sociólogo Daniel Bell desenvolveu no livro The End of Ideology a ideia de que nos Estados Unidos já se deixara de aprofundar a crise económica e o conflito de classes. A classe trabalhadora industrial encolhera e a sociedade tornara-se mais dividida em termos de género, idade, etnias e linhas culturais. No seu entender, as "velhas ideologias" – que haviam emergido na Europa durante o século XIX, como "universalistas, humanistas e tornadas moda por intelectuais", e cuja força condutora era a igualdade social, o seu objetivo a liberdade e as suas ideias caraterizadas pela revolução, ação e transformação social – já haviam deixado de ter aplicabilidade (nos Estados Unidos e noutras sociedades capitalistas). A ideologia em termos limitados do marxismo já não era

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