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SEÇÃO 3 ENTRE INTERAÇÕES SOCIOTÉCNICAS

3.1. Enraizamento etnometodológico

Como o método da TAR está fortemente fundamentado nos pressupostos da Etnometodologia de Garfinkel7 (1967), antes de iniciarmos o seu detalhamento, considerou-

se pertinente resgatar as suposições metodológicas que deram origem a TAR e contribuíram para que atingisse a sua posição atual no campo das teorias sociais. Watson e Gastaldo (2015) em sua obra Etnometodologia & Análise da Conversa afirmam que a Etnometodologia rompeu claramente com os autores da sociologia clássica, ao afirmar que a verdade científica é pouco mais do que um “senso comum teorizado” que, muitas vezes, se esconde atrás de seu eruditismo. Latour (2012a) manifesta sua indignação com a usurpação do vocabulário preciso dos atores do campo, muitas vezes convertido em metalinguagem. Para ele (op. cit.), este

7 Harold Garfinkel (1917-2011) foi professor emérito de Sociologia na Universidade de Califórnia e criador da corrente conhecida por Etnometodologia. Longe de ser um pesquisador marginal na construção da teoria sociológica norte-americana, trabalhou junto com Talcott Parsons e criticou a Teoria dos Sistemas “de dentro”. Não foi reconhecido em seu tempo, sendo considerado por muitos um “autor maldito” e recebendo inúmeras críticas pelo seu radical relativismo no que tange a Teoria Social. Sua escrita crítica descontruía muitos dos mitos estatísticos tão caros à sociologia na época, considerando-os mais uma construção social e não uma tradução real dos fatos sociais. Sua postura pessoal também contribuiu para que permanecesse na “penumbra” da Sociologia, já que dificultou o processo de tradução do livro para outros idiomas. Sua principal obra “Studies in Ethnomethodology” (GARFINKEL, 1967) foi traduzida para o Espanhol somente em 2006, para o Francês em 2007 e para o Português somente em 2018.

processo se dá através de um esforço exagerado do pesquisador que quer extrair da prática somente o que contribui para as suas categorias teóricas mais amplas. Tais categorias, pela ambição de explicarem muita coisa, acabam não explicando nada, pois ignoram a realidade que está diante dos olhos do pesquisador.

Nas palavras de Latour (2012a): “O etnométodo é a descoberta de que membros possuem um vocabulário completo e uma completa teoria social para entender o seu próprio comportamento”. Assim, os atores não podem ser vistos como meros informantes do pesquisador, mas entidades que se apropriam de sua existência coletiva e elaboram métodos para adequar-se à realidade que vivenciam. A etnometodologia adota, portanto, uma espécie de infralinguagem que não tem outro objetivo além de permitir o deslocamento dos atores de um quadro de referência ao outro. Ela não considera como sua, a função de estabilizar o social em nome das pessoas que se propõe a estudar, pois este é o dever dos próprios atores. Os atores fazem sociologia para os pesquisadores e os pesquisadores aprendem deles do que é composto seu conjunto de associações. Sendo assim, via de regra, em termos de reflexividade, o pesquisador estará sempre um passo atrás daquele que estuda.

Garfinkel e Wieder (1992) reconhecem a importância histórica de teóricos como Durkheim e Mertons, contudo, afirmam que a Etnometodologia8 em relação aos domínios

que nomeiam de “análise formal” da ciência são: “[aparatos conceituais] de análise social incompatíveis e assimetricamente alternados”. Ou seja, para os fundadores da etnometodologia, não é possível vê-la como uma extensão dos clássicos, já que ela é um prisma caleidoscópico que nega toda a sociologia tida como “convencional” ao não aceitar as suas oposições binárias constituintes – note, caro leitor, como a fundamentação pós-moderna está implícita neste raciocínio (GARFINKEL, 2002).

Em termos de concepção, Watson e Gastaldo (2015) classificam a Etnometodologia como: (a) naturalista, por enfatizar o estudo empírico dos fenômenos sociais durante sua

8 Apesar dos termos “etnografia” e “etnometodologia” serem frequentemente utilizados como sinônimos, conceitualmente, eles podem assumir sentidos diferentes. Segundo Bispo e Godoy (2012), se considerada um paradigma intelectual, a etnografia pode assumir uma posição analítica “inocente. Tal “inocência” se dirige ao fato de o pesquisador atribuir muita importância à descrição detalhada do que observa em campo, sem se preocupar em retomar a ordem de significação vivida no seu grupo de investigação. Seu relato, portanto, pode ser distante da interpretação do grupo, fazendo que a etnografia ganhe “vida” por si. A etnometodologia, por outro lado, poderia contribuir com fundamentos para a compreensão da ordem vivida no grupo estudado, chegando ao nível analítico de suas ordens de significação. Vale lembrar que essa distinção só é válida ao encarar a etnografia e a etnometodologia como paradigmas científicos. Contudo, se considerarmos ambas somente como uma metodologia de coleta de dados, já que seguem o mesmo procedimento, não existe diferença substancial entre elas.

ocorrência com o mínimo de interferência dos pesquisadores, (b) fenomenológica, por ter como premissa básica a interpretação daquilo que entendemos como “mundo”; e (c) praxiológica, por enfatizar a superioridade das práticas cotidianas perante o conhecimento teórico. Sendo assim, a Etnometodologia pode ser definida como o estudo (logos) dos métodos utilizados pelas pessoas (ethno) em seu cotidiano nos processos de produção de sentido. O que está implícito nessa definição é a desvalorização do substantivismo em prol da cultura como método de compreensão da dinâmica dos atores sociais. Para esta perspectiva, as ações dos membros são fundamentadas culturalmente, não cognitivamente. Elas expressam o saber das relações culturais ao invés de serem determinadas por uma psicologia individualista.

De forma prática, a coleta de informações no campo de forma etnometodológica defende: (a) o processo de ambientação e naturalização do observador no campo, (b) o extenso relato das interações sociais sem categorizações e de tantas perspectivas quanto possíveis, (c) o domínio da linguagem dos membros para produção de sentido, incluindo idioma nativo e jargões. Ao associar as ideias de Garfinkel (op. cit.) com as ideias apresentadas na leitura do Seção 3 deste trabalho, fica bastante evidente o enraizamento da TAR na etnometodologia. Segundo Latour (2012a), quando traçamos conexões sociotécnicas, na realidade, estamos cruzando princípios da etnometodologia com semiótica. Já que a nossa posição é a de alinhamento com as ideias de Garfinkel (2002), em respeito a seu pensamento e contribuições (op. cit.), achamos pertinente incorporar essas considerações iniciais no presente trabalho.