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SEÇÃO 5 ACTANTES, CONTROVÉRSIAS E DINÂMICA ORGANIZACIONAL

5.1. Actantes organizacionais

5.3.4. Heróis do Vale do Silício

Em continuidade ao tópico “empreendedorismo de palco”, iremos focalizar neste momento alguns “empreendedores de verdade” bastante relevantes para a inspiração dos funcionários da Empresa X. Havia dúvidas se esse tópico deveria ser abordado na subseção de actantes humanos ou de actantes não-humanos, pois os chamados “heróis do Vale do Silício” representam pessoas e não categorias como no caso do “empreendedor de palco”. Estamos falando de membros da população economicamente ativa, com documentos de identidade, necessidades fisiológicas e estruturas biológicas típicas do homo sapiens. Ao mesmo tempo, há

bem mais do que isso em jogo. Os heróis do Vale do Silício são porta-vozes de empresas bilionárias, figuras públicas que “ganharam vida própria” pela sua fama, ícones de sucesso do mundo capitalista. Sendo assim, como as variáveis simbólicas, culturais ou imagéticas desses actantes nos parecem ser muito mais fortes do que as variáveis humanísticas nos discursos dos atores, iremos trata-los dentro do tópico de actantes não-humanos.

Na Empresa X17, as frases de efeito dos heróis do Vale do Silício são repetidas, muitas

e muitas vezes, como mantras que, após algum tempo, se transformam em verdades universais. As imagens empoderadas desses personagens são divulgadas pelos funcionários mais antigos da empresa pelo ciberespaço, bem como internalizadas em pouco tempo pelos estagiários que tentam desvendar os enigmas da cultura no ambiente empresarial que recém adentraram. Tecnologia, dinheiro e irreverência se aglutinam na figura desses ícones que são vistos como entusiastas do mundo da tecnologia, investidores visionários do mercado financeiro ou figuras poderosas que ditam as novas regras do comportamento empresarial. A seguir, vamos analisar algumas falas das personalidades mais citadas na Empresa X. Todas elas estão incorporadas no conjunto de valores internos da empresa (não transcritos integralmente por questões de sigilo) e disponibilizadas em seu website ou escritas na parede lousa do seu escritório, codificadas em siglas e abreviações (Figuras 27 a 29 no Anexo 3).

A primeira citação que dá base para os valores da Empresa X é uma fala de Linus Torvalds, criador do sistema operacional Linux. Ele diz: “falar não tem valor, mostre-me o código”. Veja, a frase resgata uma ideia de eficiência e processos totalmente orientados a resultados. Ela possui um elevado teor de rigorosidade, pois afirma que pouca importa a justificativa dada pelos trabalhadores ou as ideias que eles expressam oralmente, o importante é o resultado final do processo (que, no caso do universo de TI, é o código-fonte). Se você tem uma ideia, mas não sabe operacionaliza-la, seu conhecimento é falho ou irrelevante. O que está nas entrelinhas da fala de Torvalds, é a instrumentalização do conhecimento e do processo produtivo, resgatando valores bastante antigos da administração científica.

A segunda fala que embasa os valores da Empresa X é a de Jeff Bezzos, fundador da Amazon. A sua empresa é quem provém a maior parte da infraestrutura de software utilizada pela Empresa X. A fala diz: “você pode trabalhar muito, trabalhar duro ou trabalhar de maneira

17 Posteriormente, observamos que o fenômeno analisado também se replica a outras empresas da região. Contudo, não traremos esse debate à tona para não alongar muito a extensão e o escopo deste trabalho.

inteligente. Mas, na Amazon.com, você não pode optar por duas dessas três opções (Jeff Bezzos, CEO e presidente da Amazon – tradução livre).

Bezzos defende um ideal de perfeição um tanto quanto utópico. Ele afirma que, dentro da sua empresa, as pessoas trabalham duro, trabalham muito e de maneira inteligente. Não há tradeoff entre quantidade e qualidade, entre planejamento e velocidade. Os trabalhadores procuram sempre dar o seu melhor e atingir a perfeição durante o expediente. Haverá controvérsias se compararmos o discurso de Bezzos com as práticas adotadas em sua empresa. A imagem da Amazon também é associada a regimes de trabalho que se aproximam de condições escravagistas (SRNICEK, 2017). A empresa alia alta carga de atividade física e mental, com serviços alienantes e rigorosos indicadores de desempenho. Esse é o caso do trabalhador Wittler que foi reportado na revista Forbes (FINGLETON, 2013). Durante seu turno, Wittler precisava percorrer um galpão de aproximadamente 75.000m², andar 18km e coletar o produto especificado corretamente em uma média de tempo de 33 segundos. São as mesmas condições de rigorosidade implícitas na frase de Bezzos, mas de uma forma bem menos gloriosa. Os desenvolvedores da Empresa X internalizam a cultura da Amazon pensando no “alto escalão” da empresa, ou seja, engenheiros de software com grandes salários e executivos famosos mundialmente. Contudo, tendem a negligenciar as implicações que isso pode trazer para o “baixo clero”.

Bezzos tem a plena admiração dos funcionários da Empresa X. L2 tem a sua obra “A Loja de Tudo”, como um de seus livros de cabeceira (Figura 41 no Anexo 3). F9 faz referências às tecnologias e serviços da Amazon o tempo inteiro, principalmente GPG, EC2 e lambda. O discurso de F9 parece um discurso de idolatria, a ponto dos demais funcionários da Empresa X, admiradores de Bezzos, se declararem incomodados com o tom de exagero que F9 se refere a tudo o que é desenvolvido pela Amazon.

A terceira citação que dá base para os valores da Empresa X é a do investidor financeiro Ray Dalio, que propõe uma abordagem de aprendizagem interativa: “se você não está falhando, você não está superando os seus limites. E se você não está superando os seus limites, você não está maximizando o seu potencial” (Ray Dalio, bilionário e fundador do fundo de investimento Bridge Water Associates – tradução livre).

Note a paradoxal relação entre a fala de Dario e as falas de Bezzos e Torvalds. Enquanto as duas últimas defendem valores de eficiência e eficácia, a primeira naturaliza o

erro como um processo natural dentro de uma trajetória de sucesso. Mas se algo sai errado dentro de um processo produtivo, tanto eficiência quanto eficácia irão diminuir, não? Logo, como cobrar eficiência e eficácia se o erro é inerente ao processo? Essa dicotomia é parcialmente justificada pelos os trabalhadores da Empresa X com o argumento: tudo bem errar, desde que você esteja dando o seu melhor e buscando a perfeição. Mas há uma ressalva, se você errou, você deve encarar as consequências, compensando seus erros com um trabalhando ainda mais longo e intenso para que não prejudique os prazos e as entregas.

As implicações de aumentar a carga de trabalho são amenizadas por uma apropriação da filosofia oriental dentro dos valores da Empresa X. Isso é feito, não só por ela, mas por várias empresas do Vale do Silício (2000). Roszak discute essa questão mostrando que entre as práticas cada vez mais comuns das empresas californianas, estão contratar pesquisadores especialistas em filosofia oriental e monges para fazer meditação in company. No caso da Empresa X, a apropriação da cultura oriental ocorre na fala de Confúcio: “escolha um trabalho que ame e não precisará trabalhar um dia sequer”. Portanto, não há problema em trabalhar mais, desde que o trabalho seja apaixonante.

Apesar das citações que embasam os valores da Empresa X terem se esgotado, há outros heróis do Vale do Silício cujas falas não são diretamente citadas pelos trabalhadores dessa empresa, mas que exercem muita influência em seus valores. O sul-africano Elon Musk é um exemplo deles. O empresário é fundador e acionista da Tesla Motors (veículos elétricos), Solar City (energia fotovoltaica), Open AI (inteligência artificial), Neuralink (interação homem-máquina), The Boring Company (túneis subterrâneos e suspensos) e a SpaceX (serviços espaciais). Os lançamentos dos foguetes da Space X são assistidos no telão do escritório da Empresa X e as reportagens mais recentes do bilionário sul-africano são compartilhadas no grupo #random da ferramenta de comunicação corporativa Slack. L2, o seu maior admirador na empresa, comenta:

O Elon Musk cuida de uma empresa automotiva, uma empresa de foguetes, uma empresa de infraestrutura urbana, uma fábrica de software em inteligência artificial e uma empresa de energia. Por quê? Porque ser generalista é o novo jeito de ganhar dinheiro, é a nova missão do ser humano (Entrevista 1 com L2)

Veja o peso das palavras de L2. Ele considera Elon Musk um missionário do progresso da humanidade, alguém que ajudará a construir o futuro e mostrará o caminho que deve ser seguido pelas pessoas. Esse caminho alia inovações ousadas e pessoas generalistas. Essa é a visão de L2 e de grande parte dos funcionários da Empresa X sobre Elon Musk, contudo, em uma visão mais abrangente, a figura de Elon Musk é bastante controversa. Sua irreverência já lhe causou muitos problemas. O episódio mais célebre foi o de quando Elon Musk deu uma entrevista fumando maconha e tomando whisky para um podcast de Joe Regan, um comentarista de UFC norte-americano. Também houve um suposto vazamento de informação privilegiada que o empresário teria divulgado pela rede social Twitter, bem como uma ofensa ao médico Joe Harris, um crítico de uma de suas empresas, que resgatou 12 crianças na Tailândia presas em uma caverna inundada (BOMEY, 2018). Essas atitudes polêmicas tendem a ser admiradas ou abrandadas pelos funcionários da Empresa X, devido à suposta genialidade de Elon Musk e suas soluções.

Por fim, há uma admiração a Bill Gates no que diz respeito a sua fortuna e a sua generosidade. Isso se dá pelo fato de ele, sua esposa e outros bilionários terem instituído o

giving pledge, um pacto assinado por pessoas muito ricas apara deixar em seu testamento pelo

menos metade de sua fortuna para instituições de filantropia. Aos olhos de L2, tais atitudes são tidas como genuinamente bondosas e a grande solução para situações de disparidade socioeconômica mundo afora (ver tópico “liberdade e igualdade”). Contudo, há um debate entre os admiradores de Bill Gates e os mais céticos: estamos lidando com assistencialismo para o reforço da legitimidade dos poderosos ou caridade genuína? Essa é uma questão que não pretendemos responder e deixamos para que o leitor reflita.