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3 NORMAS LINGUÍSTICAS

3.3 HISTÓRIA DA PADRONIZAÇÃO NA LÍNGUA PORTUGUESA

3.3.3 Ensino do português no Brasil como língua materna

O modelo gramatical ensinado no Brasil teria origem na tradição greco-romana, segundo Faraco (2008), ainda no século VI, quando Prisciano produziu uma gramática do latim conforme tal tradição. Para ele, esta seria, no Brasil, a base de todo o ensino de gramática tradicional presente no meio escolar até hoje, pois as primeiras gramáticas escritas nas línguas latinas vernaculares escritas no século XVI seguiram esses exemplares. Ainda que a herança dessa tradição não deva ser ignorada, esse modelo gramatical encontra-se congelado desde então: “É por isso que o arcabouço das gramáticas escolares se assemelha muito e nunca contém inovação significativa quanto à maneira de apresentar a língua” (FARACO, 2008, p. 139). É provável que, como efeito dessa antiguidade, pareça ser este um conhecimento sem autoria, levando autores de LDP a apresentarem conteúdos gramaticais sem referências de gramáticas que os subsidiem. Vejamos como o autor justifica esse ensino tal como ocorre até hoje:

Se pensarmos que o processo de fixação da norma-padrão, nos países latinos, foi artificializante (i. e., o modelo de língua escolhido sempre teve características arcaicas), não é estranho que, naquele momento, se tenha adotado precisamente aquela metodologia. Afinal, estava-se ensinando uma variedade artificial da língua. Com isso, os vícios pedagógicos do normativismo e da gramatiquice se espraiaram pelo ensino de língua materna e estão conosco até hoje (FARACO, 2008, p. 148). Pelo mesmo motivo, Mattos e Silva (2000) remete à escola surgida no Brasil pós-1970 como sendo pseudodemocratizada com relação à língua materna, devido à diversidade linguística existente e a insistente perseguição, pelo sistema escolar, a uma tradição prescritivista. Como consequência, tem-se uma escola onde chegam muitas normas, mas em que o ideal normativo continua sendo almejado. Assim, muitos deixam a escola, continuando uma situação subalterna, que será perpetuada por quem detém o poder e a voz. Nas palavras da autora:

[...] A explosão de matrícula, já referida, da década de setenta deste século foi concomitante à degradação qualitativa do ensino, já que a “falsa democratização” preocupou-se apenas com o aspecto quantitativo, com os percentuais necessários a preenchimento de tabelas de relatórios demagógicos (MATTOS E SILVA, 2000, pp. 33-34).

A autora exemplifica essa situação, nos anos setenta, com o parecer de Abgar Renault no Conselho Federal de Educação, em 1975, em que este considera como princípios gramaticais exigidos pelo pensamento lógico questões de concordância e regência, além de tratar tais casos (dentre outros) como “impurezas” a serem descartadas da língua “pura”. Como consequência, o mesmo Conselho criou, no ano seguinte, uma comissão para estudar a “carência linguística” dos jovens brasileiros, além de pretender sugerir “medidas saneadoras” para tal “carência”.

O período em que a entrada na escola brasileira foi ampliada coincide com as mudanças nos estudos linguísticos, quando o estruturalismo linguístico rompia com o

“primado da língua escrita”79 e com o “primado da variedade culta”, que se justificavam pelos

“grandes autores” ou pelo “bom uso” das elites (MATTOS E SILVA, 2000). No entanto, essa ruptura não chega de imediato às escolas; pelo contrário, no Brasil, mais de vinte anos se passam até que os PCN sejam criados e uma outra perspectiva de língua/ensino de línguas também chegue até a maioria dos professores de línguas.

Tratando da relação língua e império, Mattos e Silva (2000, p. 39) fala que “a língua de dominação tem de impor-se a outras e por isso se desenvolvem discursos e mecanismos

que legitimam a atuação política dos conquistadores”. No Brasil, isso se acentua no século

XVIII com a expulsão dos jesuítas por Marquês de Pombal e se reflete nas políticas atuais por meio, também, do material didático, importante mecanismo no sentido de que fala Mattos e Silva, sendo “conquistadores” hoje os que detêm o poder e procuram controlar a população por meio de uma suposta unidade linguística.

A autora faz uma comparação entre a realidade dos avanços da Sociolinguística nas principais universidades brasileiras, a formação dos professores de línguas em tais universidades e a formação precária da maioria dos que têm acesso a esta no que ela chama de cursos superiores periféricos, e trata, ainda, da situação em que os professores têm os mesmos anos de formação de seus alunos, uma realidade marcante até o final dos anos 1980. Tal descrição serve para reforçar, em sua visão, o que Geraldi (1997) chama de “falsa democracia” quando trata do acesso dos filhos de trabalhadores à escola.

É essa realidade precária que impulsiona a produção de livros didáticos, que tiram do professor a autonomia na seleção de conteúdos, trazendo-os já prontos, na exposição, no desenvolvimento de exercícios e na solução destes, no Manual do Professor, ainda que este tenha cumprido essa única função somente em seus primórdios (década de 1970). Posteriormente, como já vimos, ele se torna mais “sofisticado”: apresenta metodologias, discute as novas teorias linguísticas e, também, traz as respostas aos exercícios, com

raríssimas exceções (no nosso corpus, há apenas um material com essa característica –

MP9.4).

A autora remete a um documento criado por uma comissão destinada a aperfeiçoar o ensino da língua materna, em 1986, intitulado “Diretrizes para o aperfeiçoamento do ensino/aprendizagem da língua materna”. Conforme esse documento, a oralidade só deveria

ser trabalhada a partir da 5a série (6o ano atual). Essa atitude revela o apagamento que se faz

do conhecimento linguístico dos alunos anterior à escola. Em outro momento, Mattos e Silva

(2004) chama isso de tabula rasa do saber linguístico desses sujeitos. Essa orientação

estende-se até 1996, quando surgem os PCN. Como os manuais de nosso corpus são todos

dos dois últimos anos do fundamental, é possível verificar ideologiasrelacionadas à oralidade

nestes.

Mattos e Silva (2004) trata do que constantemente se acusa o ensino da língua portuguesa no Brasil: de uma suposta crise. Para ela, só se pode falar em crise da língua em duas circunstâncias: quando seus falantes estão em extinção ou quando eles abdicam de suas línguas, usando outras, como acontece com indígenas brasileiros, que trocam suas línguas de

origem pela portuguesa. Portanto, pode-se falar em crise dessas línguas indígenas e não do português, que tem mais de 170 milhões de falantes.

Por que, então, se fala nessa crise no ensino do português? Para Mattos e Silva (2004), isso se explica pelo fato de a escola pretender que as pessoas aprendam um determinado uso linguístico considerado correto, mas que não é de domínio da maioria dos falantes dessa língua. Nesse sentido, a escola seria um instrumento de ajuste social para a maioria dos sujeitos que passam a ter acesso a ela. Como essa maioria não sairá dominando esse padrão idealizado pela escola, como provavelmente saía antes porque seus usuários eram os únicos a entrarem nela, os sujeitos que ainda almejam esse ideal creditam, ao ensino de língua, uma crise. Portanto, tal crise seria apenas “consequência de uma inadequação do objetivo do seu ensino em face da realidade” (MATTOS E SILVA, op. cit., p. 74).

Indo mais adiante nesse percurso histórico, a autora faz uma crítica pertinente ao surgimento dos PCN, quando questiona a quantidade de professores do ensino fundamental e médio que já teriam lido e compreendido, no início dos anos 1990, as obras de Bakhtin, o autor mais citado em tais documentos (v. 3.2.3, quando exemplificamos com a situação de uma faculdade do interior). Outra crítica da autora diz respeito ao fato de, no final do século XX e início do XXI, os linguistas e professores de língua portuguesa não tratarem explicitamente de “política linguística e política para o ensino da língua portuguesa no Brasil” (MATTOS E SILVA, op. cit., p. 123). Em resumo da questão, a autora afirma:

Nossa socio-história do passado e do presente condicionou o status quo aqui delineado, salvo, é claro, melhor juízo interpretativo. Vem confirmando assim a realidade e a linguística brasileiras o que no inicio [sic] do século dizia sobre o latim Meillet (1928: 51): a história política de um povo e a história de sua civilização explicam a história de sua língua (MATTOS E SILVA, 2004, p. 149).

Desenvolvemos, nesta seção, um breve histórico do que tem sido o ensino de língua portuguesa nas escolas brasileiras. Como a questão gramatical pode revelar a perspectiva de ensino de língua adotada pelo material escolar, mais especificamente os MP/LDP, selecionamos um dos casos mais característicos da diferença entre os usos no PB e as regras

presentes nesse material. Assim, poderemos analisar como ele aparece em nosso corpus, no