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3 NORMAS LINGUÍSTICAS

3.3 HISTÓRIA DA PADRONIZAÇÃO NA LÍNGUA PORTUGUESA

3.3.2 Padronização no português brasileiro

Quanto à questão normativa no Brasil, ela só vai se acentuar no século XIX, porque os livros só passaram a ser impressos aqui com a chegada da família Real em 1808. Mesmo assim, as polêmicas cresceram/se fixaram a partir da segunda metade desse século, primeiro em torno da obra de José de Alencar. É a esse ponto da História que se recorre para delimitar a fixação da norma-padrão brasileira, que teve como modelos autores do Romantismo português e do chamado período clássico. Para Faraco e Zilles (2017), quando não há muita discrepância entre a norma-padrão e a norma culta, aquela é mais eficaz, caso de Portugal. No Brasil, ao contrário, a norma-padrão nunca refletiu os usos das pessoas consideradas cultas, daí resultando em fortes discrepâncias, tanto no uso quanto no ensino da língua.

Apesar de a chegada dos maiores representantes da nobreza de Portugal se dar no início do século XIX e, junto com ela, a imprensa brasileira, apenas no ano de 1881 temos a

Grammatica Portugueza, de Júlio Ribeiro, considerada a primeira gramática que trata dos

usos linguísticos no português do Brasil. Segundo Vieira (2018, p. 151), as gramáticas anteriormente publicadas em nosso contexto eram feitas por brasileiros, mas conforme os clássicos portugueses, o que o leva a afirmar: “Em outras palavras, são apenas [instrumentos linguísticos] escritos por brasileiros, mas não são gramáticas brasileiras do português”.

Como vemos em Lucchesi (2015), a formação de uma ideologia da norma-padrão brasileira não está atrelada aos escritores do passado da língua, como Camões ou Vieira, mas

ao português europeu do século XIX. Isso se dava, segundo o autor, devido à visão dominante de que se devia copiar os modelos europeus de civilização, no entanto, para ele, revelava, também, num nível mais profundo, o projeto racista das classes dominantes, defensoras de um branqueamento da população. Consequentemente, “a institucionalização de uma norma de referência linguística está relacionada à dominação de classe” (LUCCHESI, 2015, p. 177).

Por esses motivos, a norma-padrão tem sido estática e nem faz referência aos usos do PE, como por vezes se tenta justificar, mas trata de um determinado momento deste e de períodos anteriores à própria formação literária portuguesa. Nas palavras de Faraco e Zilles (2017, p. 159): “A norma-padrão assim estipulada tem se mostrado inoperante e ineficaz. E os efeitos negativos dessa situação são claramente observáveis no ensino, no uso e no cultivo da língua no Brasil”.

Resgatando a história de como a avaliação quase generalizada a respeito da língua surgiu no Brasil, Lucchesi (2015) entende o século XIX como crucial para tal definição, pois nesse momento havia uma disputa de projeto nacional, em que alguns poucos tratavam da questão linguística, como o escritor José de Alencar. Podemos afirmar que o autor lista uma série de mecanismos de política linguística fundamentais para que a ideia de uma língua pura, ideal, melhor, deveria seguir sua origem mais “civilizada”, a europeia. São eles: a criação da cátedra de Língua Portuguesa no Colégio Pedro II, em 1871; a proliferação das gramáticas normativas, na década de 1880; e a criação da Academia Brasileira de Letras, em 1897 (LUCCHESI, op. cit., p. 184). Tal submissão teria sido danosa, na visão de Lucchesi, principalmente pelo fato de que a língua portuguesa, na Europa, como era de se esperar, não parou de mudar. Como tais mudanças não foram assimiladas pelos conservadores da língua, temos até hoje defesas de formas já obsoletas mesmo em Portugal.

No Brasil, inclusive os defensores de uma norma culta brasileira, como o escritor citado, condenavam os usos próprios das classes populares, do “português popular” (FARACO E ZILLES, 2017). O autor romântico, sempre condenado pelos gramáticos contemporâneos por seu “estilo frouxo”, se não podia recorrer a estes para demarcar o que seria culto e o que seria da ordem dos “abusos” do português popular, recorreu ao critério de ancianidade, remetendo aos clássicos da língua e até mesmo ao latim.

Nesse embate, entre os defensores de um português brasileiro (em que Alencar foi ator principal) e os gramáticos puristas, que defendiam a manutenção de um português supostamente uno e sem as influências das diversas raças aqui fixadas, esses últimos ganharam a batalha. O apego que estes pregavam às raízes foi o argumento mais forte para a

fixação da norma-padrão no Brasil. Mas, como dizem Faraco e Zilles (op. cit.), o objetivo mesmo era reprimir qualquer possibilidade de rompimento com a ordem social estabelecida, razão sempre apontada pelos autores de PL para que uma língua/variedade se sobreponha a outra(s) em qualquer sociedade.

É seguindo esse raciocínio dos autores em foco que desconfiamos da necessidade de estabelecermos uma outra norma-padrão para o PB. Ao colocarmos em destaque uma variedade da língua, não estaríamos sempre alimentando essa ideia de que uma é melhor que outra? Nosso papel, enquanto estudiosos da língua, não seria promover a diversidade como sendo adequadas, quaisquer que sejam as variedades, em vez de continuar respaldando uma norma privilegiada, mas idealizada?

Fica, então, o desafio de discutirmos, afinal, o que a escola vai ensinar quando se trata de língua portuguesa. Primeiro, concordamos com Faraco (2008, p. 158), quando afirma que, junto com a ampliação do domínio da fala e da escrita pelo aluno, “[...] é necessário realizar sempre uma ação reflexiva sobre a própria língua, integrando as atividades verbais e o pensar sobre elas”. Essa ação reflexiva exige a crítica de como determinadas formas tornaram-se prestigiadas em detrimento de outras.

Defendemos, portanto, a diversidade linguística e isso pode significar que a leitura de textos literários é fundamental, como defende Faraco (op. cit.), mas significa também entender que os textos selecionados pela escola também são construídos histórica e ideologicamente, cabendo questões como: que textos literários chegam à escola? Quem os escreveu? Por que são considerados bons autores? Que outros são excluídos da escola e por quê?

Ser diverso, nesse sentido, exige contato com as variações, expressar-se nelas, reconhecendo as normas cultas, nas modalidades oral e escrita, pelo que representam na sociedade em que vivemos. Ao mesmo tempo, ter consciência de como essas normas são construídas, a que grupos pertencem, além de ser capaz de construir outras normas, de forma consciente. Assumir ou refutar normas também pode advir do estudo de estruturas linguísticas, compreendidas nos contextos sócio-histórico-políticos e não o contrário. Combater o preconceito linguístico, então, é entender que há um agente disso e este não é sua própria vítima, ou seja, dizer que se deve evitar falar/escrever de determinada forma porque ela gera preconceito é o mesmo que responsabilizar mulheres vítimas de violência pela roupa que usam.

Enfim, as implicações disso tudo é que aceitamos pessoas/gramáticos que se pautam meramente na tradição ditarem o nosso modo de falar/escrever, além de tais ideias forjadas no irrealismo da idealização linguística determinarem muitas das políticas linguísticas a regerem os nossos sistemas de ensino. Afinal, onde mora a norma-padrão brasileira?

[...] continua presente e forte o imaginário de que essa língua mora em outro lugar. Desaparecida a imagem de que esse lugar fosse Lisboa, o eixo imaginário se deslocou para um território etéreo, uma indistinta Terra da Promissão idiomática, que, no senso comum, ora atende pelo nome de gramática, ora pelo nome de norma culta, ora pelo nome de norma-padrão (FARACO E ZILLES, 2017, p. 168).

Não é à toa, portanto, que o ensino de questões linguísticas que diferenciam o PB de PE seja tratado, nos LDP/MP, de forma tão irrealista, não atendendo à realidade da modalidade oral da língua (conforme estudos de Duarte, 1989, p. ex.) e nem mesmo da modalidade escrita, como se poderá ver no capítulo de análise. Questões como a abordagem da sintaxe pronominal, além de mostrarem a discrepância entre a oralidade, a escrita e as frases construídas com um fim didático, reforçam a ideia de que há formas linguísticas só utilizadas por quem passa pela escola, desconhecida por crianças na aquisição da língua ou por aqueles que nunca a frequentaram. Por esse motivo, a necessidade de abordar o ensino da língua portuguesa em nosso país e as políticas linguísticas intrínsecas a ele.